Cynara Menezes
Imaginem
um lugar com cerca de 110 mil habitantes e quase 5 milhões de metros
quadrados, todo cercado, com um administrador que toma decisões sem
ouvir ninguém, que recorre à repressão policial e ao banimento de
dissidentes e utiliza espiões para se manter informado da atividade dos
adversários. Não, não se trata de nenhuma republiqueta de bananas, mas
da maior universidade do País, a USP, sob a governança do reitor João
Grandino Rodas, também conhecido no campus como “o rei”.
Desde que assumiu a direção da USP, em 2010, uma
série de medidas polêmicas tem colocado na berlinda a gestão de Rodas,
criticada como pouco democrática, para dizer o mínimo. Em janeiro deste
ano, vieram à tona documentos que mostram que o reitor recebe de
arapongas relatórios sobre o que se passa nas reuniões dos funcionários,
professores e alunos. Confeccionados por certa “sala de crise”, os
textos trazem todos os detalhes sobre as assembleias, narradas ponto a
ponto, inclusive com os nomes e ligações partidárias dos envolvidos.
A última das controvérsias envolvendo o reitor ainda está por vir: na
semana passada, os 73 alunos presos durante a ocupação da reitoria, em
novembro do ano passado, começaram a receber a intimação para
apresentarem defesa no processo movido contra eles pela USP. Não se
trata apenas de expulsão, mas da “eliminação” dos estudantes, baseada
num regimento da época da ditadura: se confirmada, nenhum deles poderá
retornar, por meio de vestibular, nem se empregar na universidade. Ou
seja, estarão banidos.
Embora a ocupação da reitoria tenha sido considerada desastrada até
mesmo por representantes dos alunos, também a punição é vista como digna
de quem governa como ditador. Será a primeira vez, desde os anos de
chumbo, que a USP expulsa alunos em massa. Em dezembro do ano passado,
seis estudantes foram expelidos da universidade por terem ocupado o
prédio da Coordenadoria de Assistência Social (Coseas) em 2010. Se os 73
também saírem, a universidade alcançará o impressionante número de 79
alunos eliminados em dois anos de administração Rodas. É o equivalente a
um terço do total de estudantes expulsos durante toda a ditadura no
País: 245, segundo cálculos da Comissão de Mortos e Desaparecidos do
Ministério da Justiça.
Cinco dos alunos expulsos já estão recorrendo da decisão. No mês
passado, o juiz da 10ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo, Valentino
Aparecido de Andrade, mandou a USP readmitir um deles, sob a alegação de
que a pena foi “excessiva”. A universidade anunciou que vai recorrer.
Na terça-feira 10, outro expulso, o estudante de Geografia Yves de
Carvalho Souzedo, assinou um artigo no jornal Folha de S.Paulo
questionando a decisão da USP de defenestrá-lo, às vésperas de receber o
diploma de conclusão do curso, sem que fossem apresentadas provas de
seu envolvimento na ocupação.
“Acordei com a notícia de que tinha sido expulso. Foi uma cacetada:
já havia sido aprovado em concurso para ser professor da rede pública
estadual e não posso assumir o cargo porque não tenho diploma”, disse
Yves a CartaCapital. Ele afirma que nunca pertenceu a partidos
políticos e não ocupou a Coseas. “Estive lá para dar solidariedade aos
colegas quando fui avisado de que a polícia estava chegando. Minha
expulsão foi uma decisão política do reitor, que esperou o momento certo
para intimidar os estudantes. Tanto é que todo mundo pensa que fomos
expulsos por causa da ocupação da reitoria.”
Diretor reeleito do Diretório Central dos Estudantes
(DCE), o estudante de Ciências Sociais Pedro Serrano acusa o reitor
Rodas de seguir uma política de “criminalização” das entidades
representativas dos estudantes, professores e funcionários. “Ele não
debate. Várias medidas que toma não foram sequer submetidas ao Conselho
Universitário. Para nós, a política de militarização da universidade não
é motivada pela insegurança, mas um pretexto para o controle
ideológico”, diz Serrano.
Em fevereiro, dez diretores da Associação dos Docentes da USP (Adusp)
foram interpelados judicialmente pelo reitor por causa de frases
atribuídas à entidade em editorial de O Estado de S. Paulo. “É
uma tentativa de calar vozes críticas à forma como ele vem
administrando, gerindo e representando a USP. Demonstra a opção por um
método de viés autoritário, cuja principal característica é a
intolerância”, acusa César Minto, vice-presidente da Adusp.
“O consenso não é uma das virtudes do reitor Grandino Rodas. Os
conflitos aumentam quando chegam às mãos dele”, opina o professor da
Faculdade de Ciências Humanas, Filosofia e Letras Vladimir Safatle,
colunista de CartaCapital. “Infelizmente, ele não é a pessoa
adequada para ocupar o cargo de reitor. Precisávamos de alguém que
diminuísse os conflitos, que tivesse uma ascendência acadêmica clara. Um
reitor deve lembrar que a universidade não funciona graças a ele, mas
independentemente dele. Não é o caso de Rodas.”
A questionada convocação de policiais militares para cuidar da
segurança na USP foi decidida pelo Conselho Gestor, em caráter
emergencial, em maio de 2011, após o assassinato de um aluno dentro da
Cidade Universitária, em tentativa de assalto. Em outubro, depois que
três alunos do curso de Geografia foram presos pela PM por estarem
fumando maconha no estacionamento, aconteceu a ocupação da reitoria, que
acabou com a chegada de 400 policiais da tropa de choque da PM,
expulsando e prendendo os estudantes.
As entidades representativas de alunos, professores e funcionários
sempre defenderam que o policiamento deveria ser feito pela Guarda
Universitária e que faltou debater o assunto, como ocorre em outros
países – no México, por exemplo, um grupo de reitores discute atualmente
como resolver o problema dos assaltos, sequestros e do narcotráfico
dentro dos campi universitários. Segundo o professor de Planejamento
Urbano da Faculdade de Arquitetura da USP Nabil Bonduki, trata-se de um
problema complexo, porque o modelo para as universidades foi pensado nas
décadas de 1940 e 1950, e está superado.
“As cidades universitárias são enormes e distantes, uma área cercada
que não se integra e não incorpora usos urbanos. Isso leva à
desertificação nos horários e dias em que não há aulas”, opina Bonduki,
para quem o policiamento é só parte da solução. “Deveria haver novos
espaços residenciais, para povoá-la mais, um sistema de transporte
público eficiente para reduzir a presença de automóveis no campus,
conexão entre a estação de trem próxima e a universidade, e que a USP
voltasse a ser um espaço de lazer para a cidade, como já foi. Atualmente
está fechada ao público nos fins de semana. Mas tudo isso tem de ser
discutido com a comunidade, inclusive com seu entorno.”
Na vizinhança da USP, a Favela São Remo foi
recentemente alvo de uma denúncia da TV Bandeirantes: um relatório da
Polícia Civil de São Paulo revelou conexões entre o tráfico de drogas
ali exercido, e ninguém menos que o batalhão que policia a universidade.
Uma pesquisa feita pelo instituto Datafolha em novembro do ano passado
mostrou que 58% dos estudantes da universidade apoiam o policiamento,
mas 57% deles também disseram que a presença da PM não havia alterado a
sensação de falta de segurança no campus.
Não bastasse ter chamado a polícia para dentro da universidade, há
duas semanas foi noticiada a contratação, pela reitoria, de um coronel
reformado da PM para ser o responsável pela segurança da universidade,
na recém-criada Superintendência de Segurança (SS).
Uma das primeiras polêmicas envolvendo o reitor foi justamente a
utilização do termo “revolução de 1964” em uma placa no monumento em
homenagem aos mortos e desaparecidos da ditadura que está sendo erguido
na Cidade Universitária, em parceria com a Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência. Denunciado o ato pela imprensa, a placa foi
retirada, mas o próprio Rodas costuma utilizar a expressão “revolução”
em entrevistas. A CartaCapital o reitor se recusou a falar:
exigiu que as perguntas fossem enviadas por e-mail, o que se deu, mas
elas não foram respondidas até o fechamento desta edição.
Outro acontecimento digno de dúvida sobre a visão do reitor em
relação à ditadura aconteceu no julgamento, em 1997, do processo da
estilista Zuzu Angel pela Comissão de Mortos e Desaparecidos, da qual
Rodas era membro. O advogado negou a participação do Estado na morte mal
explicada de Zuzu em um acidente de carro em 1976, por considerar que
não foram demonstradas conexões do governo da ditadura com sua morte.
Foi voto vencido. Em 2007, o futuro reitor da USP seria condecorado com a
medalha de mérito Castello Branco da Associação Campineira de Oficiais
da Reserva do Exército.
Quando ainda era candidato a reitor, em 2009, O Estado de S. Paulo
interpelou Rodas sobre os rumores de que seria ligado às organizações
de direita Opus Dei e Tradição, Família e Propriedade (TFP). Dizendo-se
“apolítico”, ele respondeu: “Sou católico, mas, embora respeitando
movimentos mais específicos dentro do catolicismo, nunca me filiei a
nenhum deles”.
A rejeição ao reitor, na verdade, nasceu de uma decisão por si pouco
democrática: Grandino Rodas foi o segundo candidato mais votado de uma
lista tríplice, mas acabou sendo escolhido pelo então governador José
Serra, quebrando uma tradição que vinha desde a volta da democracia.
Hoje presidente do CNPq, o físico Glaucius Oliva, que venceu a disputa,
mas não levou, chegou a se declarar “desapontado”, e disse na época: “É
muito ruim quando as cabeças são pequenas o bastante para contaminar
questões acadêmicas com o viés político”. Imediatamente após a decisão
de Serra, os estudantes fariam o primeiro protesto contra Rodas,
ocupando o prédio da antiga reitoria.
As críticas sobre o “autoritarismo” do reitor vinham, porém, de
antes, do período em que foi diretor da faculdade de Direito do Largo de
São Francisco (2006-2009) e terminou como persona non grata.
Isso porque, no apagar das luzes de sua gestão, vieram à tona decisões
tomadas sem consulta à congregação: uma delas foi a transferência da
biblioteca da faculdade para um prédio vizinho, de 11 andares e sem
elevador. A outra, dar nomes a salas de advogados ilustres que fizeram
doação de 1 milhão reais cada um à faculdade. Uma terceira e prosaica
razão foi a doação de dois tapetes persas da faculdade para a reitoria,
que iria ocupar em seguida.
“Ele doou os tapetes a si mesmo”, critica o professor Sérgio Salomão Schecaira, porta-voz da Faculdade de Direito no processo que declarou Rodas persona non grata.
Em março, o reitor entrou com recurso para revogar o título, mas
perdeu. Após pedido da congregação ao Ministério Público Estadual, Rodas
mandou devolver os tapetes. Em pé de guerra com sua faculdade de
origem, é atualmente alvo de um processo movido pela congregação na
Promotoria do Patrimônio Público e Social do MP por suposta malversação
de verbas públicas, porque utilizou boletins produzidos pela assessoria
de imprensa da USP para criticar os diretores da São Francisco.
Schecaira é irônico ao falar do desafeto. “Não tenho nada
pessoalmente contra o professor Grandino. Até porque ele é um diplomata.
Diplomata formado na escola americana de diplomacia, que primeiro
ataca, mas um diplomata”, provoca. “Ele saiu da São Francisco com uma
imagem bastante desgastada no seio da faculdade. O título de persona non grata,
concedido por unanimidade, revela que não temos apreço por ele. Não se
diz que quando alguém não é querido é porque ‘os santos não batem’? Pois
bem, nossos santos estão em desacordo. O professor Grandino conseguiu
antipatia total da faculdade de Direito, seja de docentes, seja de
alunos ou funcionários.”
Sobre a administração Rodas à frente da reitoria, Schecaira é
taxativo. “A gestão dele é catastrófica no aspecto democrático e sem
eficiência no aspecto gerencial. No caso da PM, novamente tomou a
decisão solitária de fechar o convênio, queimando o cartucho de uma
discussão séria sobre a questão da segurança. O professor Grandino, em
vez de governar com a comunidade universitária, preferiu assumir o papel
de antagonista. Como se o fato de ser reitor o tornasse rei”, alfineta.
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