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domingo, 9 de setembro de 2012

A poesia





Jorge Luis Borges

O panteísta irlandês Escoto Erígena disse que a Sagrada Escritura encerra um número infinito de sentidos e comparou-a com a plumagem furta-cor do pavão. Séculos depois, um cabalista espanhol disse que Deus fez a Escritura para cada um dos homens de Israel e que, por conseguinte, há tantas Bíblias quanto leitores da Bíblia. O que é admissível se pensarmos que Ele é o autor da Bíblia e do destino de cada um de seus leitores.

Pode-se pensar que essas duas sentenças, a da plumagem furta-cor do pavão de Escoto Erígena e a de tantas Escrituras quanto leitores do cabalista espanhol, são duas provas, da imaginação celta a primeira e da imaginação oriental a segunda. Mas ouso dizer que são exatas, não apenas em relação à Escritura, mas em relação a qualquer livro digno de ser relido.

Emerson disse que uma biblioteca é um gabinete mágico em que há muitos espíritos enfeitiçados. Despertam quando os chamamos; enquanto não abrimos um livro, esse livro, literalmente, geometricamente, é um volume, uma coisa entre coisas. Quando o abrimos, quando o livro dá com seu leitor, ocorre o fato estético. E, cabe acrescentar, até para o mesmo leitor o mesmo livro muda, já que mudamos, já que somos (para voltar a minha citação predileta) o rio de Heráclito, que disse que o homem de ontem não é o homem de hoje e o homem de hoje não será o de amanhã.

Mudamos incessantemente e é possível afirmar que cada leitura de um livro, que cada releitura, cada recordação dessa releitura renovam o texto. Também o texto é o mutável rio de Heráclito.

Isso pode nos levar à doutrina de Croce, que não sei se é a mais profunda, mas sim a menos prejudicial à ideia de que a literatura é expressão. O que nos leva à outra doutrina de Croce, que se costuma esquecer: se a literatura é expressão, a literatura é feita de palavra e a linguagem também um fenômeno estético. Isto é algo que costumamos a aceitar: o conceito de que a linguagem é um fato estético. Quase ninguém professa a doutrina de Croce e todos a aplicam continuamente.

Dizemos que o espanhol é um idioma sonoro, que o inglês é uma idioma de sons variados, que o latim tem uma dignidade singular à qual aspiram todos os idiomas que vieram depois: aplicamos aos idiomas categorias estéticas. Erroneamente, supõe-se que a linguagem corresponde à realidade, a essa coisa tão misteriosa que chamamos realidade. A verdade é que a linguagem é outra coisa.

Pensemos em uma coisa amarela, resplandecente, mutável; essa coisa às vezes está no céu, circular; outras vezes tem a forma de um arco, outras vezes cresce e decresce. Alguém – nunca saberemos o nome desse alguém – , nosso antepassado, nosso comum antepassado, deu a essa coisa o nome de “lua”, diferente em diferentes idiomas e diversamente feliz. Eu diria que o vocábulo grego Selene é complexo demais para a lua, que o vocábulo inglês moon tem algo pausado, algo que obriga a voz à lentidão que convém à lua, que se parece com a lua, porque é quase circular, começa e termina quase com a mesma letra. Quanto à palavraluna, essa bela palavra que o espanhol herdou do latim, essa bela palavra comum ao italiano, consta de duas sílabas, de duas peças, o que talvez seja demais. Temos lua, em português, que parece menos feliz; elune,em francês, que tem algo de misterioso.

Já que estamos falando em castelhano, tomemos a palavra luna. Pensemos que alguém, em um dado momento, tenha inventado a palavra luna. Sem dúvida, a primeira invenção deve ter sido muito diferente. Por que não nos detemos no primeiro homem que pronunciou a palavra luna com esse ou com outro som?

Há uma metáfora que tive ocasião de citar mais de uma vez (desculpem a monotonia, mas minha memória é uma velha memória de setenta e tantos anos), aquela metáfora persa que diz que a lua é o espelho do tempo. Na sentença, “espelho do tempo” está a fragilidade da lua e a eternidade também. Está essa contradição da lua, tão quase translúcida, tão quase nada, mas cuja medida é a eternidade.

Em alemão, a palavra “lua” é masculina. Por isso Nietzsche pôde dizer que a lua é um monge que olha com inveja para a terra, ou um gato, Kater, que pisa tapetes de estrelas. Dizer “lua” ou dizer “espelho do tempo” são dois fatos estéticos, só que a segunda, é uma obra de segundo grau, porque “espelho do tempo” é feita de duas unidades, enquanto “lua” nos dá, talvez mais eficazmente, a palavra, o conceito de lua. Cada palavra é uma obra poética.

(… o texto continua)

[Borges, Jorge Luis – Obras Completas – volume 3 – São Paulo – Editora Globo, 1999 – Texto: A poesia. Página 284].

via site do Ricardo Gondim
foto: Terra

Fonte: PAVABLOG

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