Cracolândia
Wálter Maierovitch
São Paulo insiste na repressão e usa o crack como desculpa para segregar pobres. Foto: Agência Brasil
O fenômeno representado pelas drogas ilícitas é complexo. Desde o
fracasso do proibicionismo, convencionado na sede nova-iorquina das
Nações Unidas em 1961, vários países, preocupados com os direitos
humanos e com a possibilidade de colocar a segurança pública na rota da
civilidade, buscaram políticas próprias a fim de:
(1) contrastar a oferta pelo combate à economia das organizações
criminais, (2) reduzir danos e riscos causados pelo consumo, (3) tratar
sem crueldade os dependentes químicos, (4) eliminar os confinamentos
territoriais, a exemplo das cracolândias, e (5) promover a reinserção
social. A dimensão desse fenômeno foi mostrada na sexta-feira 6 pelos
pesquisadores da University of New South Wales, na Austrália. Em um
mundo com 7 bilhões de habitantes, uma pessoa em cada 20 consome
habitualmente alguma droga proibida pela ONU. Temos um mínimo de 149
milhões de usuários e um máximo de 271 milhões. Por ano, as drogas
ilícitas matam 250 mil pessoas.
A maconha é a droga proibida mais usada no mundo, consumida entre 125
milhões e 203 milhões de habitantes. A propósito de escolhas políticas,
a Holanda admitiu, em 1968, para cortar o vínculo entre o traficante e o
usuário, a venda de maconha em coffee shops. No primeiro dia de 2012, e
com a volta dos conservadores ao poder, proibiu-se a venda ao turista
estrangeiro. Segundo os economistas, haverá perda anual de 10 bilhões de
euros, afetando o produto interno bruto holandês.
Na Suíça, não deram certo os espaços abertos para livre consumo. Dado
o grande número de extracomunitários, que fizeram dos parques
residências permanentes, com aumento de roubos, furtos e violência
física, ocorreu uma correção de rota: desde 1995 o país fornece aos
usuários drogas em locais fechados, com assistência médica.
Sobre extinção de áreas de confinamento, em Frankfurt foram
implantadas as narcossalas em 1994, ou melhor, salas secretas para uso
com apoio sociossanitário. Conforme apontei neste espaço em artigo
intitulado “Cracolândia, a hora das narcossalas”, houve em Frankfurt e
em outras oito cidades alemãs recuperações, reduções de uso e volta ao
trabalho e às famílias. O sucesso levou, na Alemanha, as federações da
Indústria e do Comércio a investirem 1 milhão de euros no projeto de
narcossalas.
A política exitosa de Frankfurt foi copiada na Espanha. Nas grandes
cidades dos EUA, aumentou o número de postos de saúde que ofertam
metadona, droga substitutiva, para dependentes de heroína controlarem as
crises de abstinência. Sobre as narcossalas, a Nobel de Medicina
Françoise Barre Sinoussi luta pela implantação, em Paris, do modelo de
Frankfurt.
As narcossalas foram fundamentais para o resgate social dos
dependentes, antes empurrados para áreas urbanas degradadas, depois
transformadas em confinamentos. Na capital paulista, a região central da
Luz foi, por duas vezes, território de confinamento de prostitutas, ou
seja, área onde os governos fizeram vista grossa para a exploração e o
desfrutamento sexual de seres humanos.
Nos anos 1950, as prostitutas foram obrigadas a migrar da Luz para o
bairro do Bom Retiro. Passados alguns anos, a prostituição e o
rufianismo voltaram à Luz, em um confinamento chamado de Boca do Lixo.
Nos anos 90, a Boca do Lixo cedeu lugar à Cracolândia. Um quadrilátero
onde habitam ao menos 400 dependentes químicos e, diariamente, 1.664
usuários compram crack de pessoas a serviço de uma rede de abastecimento
que as polícias estaduais nunca incomodaram.
Na Itália, conforme atestado pela ONU, a comunidade terapêutica
denominada San Patrignano (Rimini), que acolhe 1,6 mil jovens, consegue
recuperar 7 entre 10 que passam voluntariamente (não se aceita
internação compulsória) pelos seus programas. San Patrignano é um centro
de acolhimento sem discriminações ideológica, social e religiosa. É
gratuito e não são aceitas verbas governamentais. Como empresa
produtiva, banca as despesas.
Para acabar com uma Cracolândia, e sem um único posto de apoio
médico-assistencial no local, a dupla Alckmin-Kassab, governador e
prefeito, partiram para ações policialescas. Mais uma vez, assistiu-se à
Polícia Militar atuando violentamente, sem conseguir expulsar os
visíveis e expostos vendedores de crack.
A dupla busca a tortura físico-psicológica. Inventaram um novo tipo
de pau de arara. Procuram, com o fim da oferta, provocar um quadro
torturante e dramático de abstinência nos dependentes químicos. E, pelo
sofrimento e desespero, os dependentes, na visão de Alckmin e Kassab,
iriam buscar tratamento oficial. Esse torturante plano só é integrado no
rótulo. A meta é “limpar o território” com ações militarizadas e
empurrar para a periferia distante os “indesejados”.
Pano rápido. Nesse cenário desumano, que já dura mais de uma semana,
percebe-se o sepulcral silêncio do ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso, que buscou no tema das drogas um palanque para se mostrar vivo
politicamente. O silêncio de FHC é a prova provada da atuação farsante,
própria de oportunistas.
Fonte: CARTA CAPITAL
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