Nenhum país das Américas tem história tão marcada pela presença do povo judeu como o Brasil.
Ligado à epopéia dos Grandes Descobrimentos Marítimos, em 1500, D.
Manoel I, rei de Portugal, conhecido como “O Venturoso”, “Rei da
Pimenta” e “Rei dos Judeus” (pela formidável presença destes últimos nas
frotas descobridoras), determinou a Pedro Álvares Cabral e ao
intérprete Gaspar da Gama (judeu, batizado católico) procederem a
contatos formais com representantes das terras descobertas por Vasco da
Gama, primeiro português a chegar nas Índias, em 1498. O trajeto de
Cabral, em frota de 13 navios, incluía deslocamentos para o Ocidente,
objetivando possível encontro com novas terras. Cristóvão Colombo, em
nome da Espanha, chegara em terras da América Central em 1492, pensando
estar nas Índias. O proposital desvio da rota de Cabral levou ao
encontro de terra baiana em 22 de abril, segundo informa a carta do
escrivão da armada, Pero Vaz de Caminha.
Descendentes de judeus chegaram ao Brasil, a partir de 1503. Fernando
de Loronha ou Noronha, convertendo-se ao catolicismo, foi designado
pelo rei D. Manoel para donatário da grande ilha do Nordeste brasileiro
que hoje leva o seu nome. Noronha foi responsável pela arrematação do
primeiro contrato de monopólio do pau-brasil. Com a madeira produziam-se
pequenas peças de mobiliário e com sua resina coloriam-se tecidos.
Deve-se a cristãos novos a introdução da cana do açúcar no Brasil,
trazida das ilhas portuguesas de Açores e Madeira. Entre os que se
dedicavam ao cultivo da cana no Nordeste, citamos o cristão novo, senhor
de engenho, Ambrósio Soares Brandão, autor de um importante ensaio
econômico intitulado “Diálogos das Grandezas do Brasil”. Outro que se
distinguiu na Capitania de São Vicente foi o jesuíta José de Anchieta,
fundador de um Colégio, em 1554, que deu origem à cidade de São Paulo.
José de Anchieta, considerado o “Apóstolo do Brasil”, era filho de
Mência Dias de Clavijo, cristã nova da ilha de Tenerife.
Ligados aos poder e à vida econômica, os judeus da Península Ibérica,
conhecidos como sefaraditas, aprofundaram-se nos estudos religiosos,
filosóficos, da medicina e em sistemáticos trabalhos das ciências
náuticas, astronomia e matemática, transformando-se, inclusive, em
navegadores e intérpretes das expedições portuguesas. As cartas
marítimas, o astrolábio e a bússola foram por eles aperfeiçoados. O
ponto alto dos estudos náuticos foi realizado pelo astrônomo Abraham
Zacuto, autor do “Almanach Perpetuum”, no final do século 16. Esses
conhecimentos permitiram a Portugal, frente ao Atlântico, preparar-se
para a busca das especiarias e dos metais preciosos, especialmente
procurados. Politicamente centralizado e contando com o apoio de uma
burguesia predominantemente judaica, Portugal pôde desde o início do
século 14 desbravar, explorar e colonizar o litoral dos continentes
africano, asiático e americano.
Os Grandes Descobrimentos Marítimos, associados a processos
transformadores da vida político-econômica européia, ocorreram em
período de enorme conturbação social na Península Ibérica. A Espanha,
depois da expulsão dos muçulmanos e judeus da Espanha, em maio de 1492,
buscava acomodar os 50 mil conversos, que permaneceram no reino
centralizado, sob a supervisão do Tribunal da Inquisição instalado em
1480. A formidável entrada de judeus espanhóis em Portugal acarretou,
poucos anos depois (1497), ação inesperada e dramática de D. Manoel: a
conversão forçada de todos os judeus de Portugal, obedecendo a uma
cláusula de seu casamento com a princesa espanhola. Embora o extremo ato
tenha sido contrabalançado por legislação protetora aos conversos, o
sucessor, D. João III, assentiu em instalar o Tribunal da Inquisição no
reino, autorizado pelo papa Paulo III, em 1536.
Discriminados, perseguidos e vendo limitadas as possibilidades de
crescimento nos domínios ibéricos, os cristãos novos buscaram emigrar
para terras da Itália, França e, no final do século 16, para a Holanda,
quando a liberdade de consciência foi instituída na República. Em
Amsterdã, judeus e cristãos novos de origem portuguesa estavam ligados à
comercialização do açúcar brasileiro pela Europa. A Holanda,
tradicional parceira de Portugal, financeiramente se responsabilizara
pelo sucesso da empresa açucareira no Brasil.
Apesar das proibições legais, grande número de cristãos novos buscou
as possessões americanas. No Brasil, podiam ser encontrados em todas as
capitanias, posicionados em diversas ocupações. Conhecidos como “homens
de negócios”, cristãos novos assumiram contratos reais nas transações
comerciais do pau-brasil, do açúcar, do tabaco, de escravos negros e
outros monopólios. Dominando a leitura e a escrita, posicionaram-se em
cargos públicos administrativos, militares e religiosos, apesar de
proibidos pelas leis discriminatórias dos Estatutos de Pureza de
Sangue.(1)
A união das coroas ibéricas (1580-1640) determinou o fim das
formidáveis relações com a Holanda. Inimiga da política expansionista da
Espanha católica, a alta burguesia holandesa da Cia. de Comércio das
Índias Ocidentais decidiu, em 1630, com apoio das autoridades políticas,
conquistar a Capitania de Pernambuco, maior produtora de açúcar, depois
da fracassada invasão na Bahia em 1624. Angola, porto de escravos
negros, foi igualmente tomada, revelando o real interesse da Cia.
Holandesa em manter funcionando a produção, preservando a atividade das
20 companhias holandesas encarregadas do branqueamento e refino do
açúcar, antes de comercializá-lo pela Europa.
A tolerância religiosa foi imposta pelo invasor protestante onde o
catolicismo era predominante. Diante da imposição da liberdade de
consciência, grupos de famílias judias de Amsterdã, de origem
portuguesa, mostraram interesse em se estabelecer no Brasil-Holandês.
Dominando o português, o grupo transformou-se em intermediário de todos
os negócios que se efetuavam na terra conquistada. Cuidando de suas
comunidades, fundando sinagogas e organizações beneficentes, os judeus,
apoiados pelo Príncipe Maurício de Nassau, administrador das terras
conquistadas, transformaram-se em agentes do crescimento econômico da
região, especialmente de Recife, transformada na mais importante cidade
de todo o Atlântico de meados do século 17. Esclarecido e homem de seu
tempo, Nassau trouxera consigo artistas, pintores, biólogos,
naturalistas, cartógrafos e mais cientistas que produziram obras, hoje
admiradas e consultadas por especialistas interessados em conhecer as
primeiras obras escritas sobre a América e as belas pinturas de
silvícolas, negros e de espécies nativas da flora e fauna brasileira.
As conquistas holandesas se ampliaram para o litoral Norte, permitindo o
nascimento de pequenas comunidades judaicas, entre as quais a da
Paraíba e de Penedo, nas imediações do Rio São Francisco. Isaac Abuhab
da Fonseca e Moisés Raphael de Aguillar, eminentes rabinos de Amsterdã,
foram convidados a dirigir o culto religioso nas sinagogas “Zur Israel” e
“Maguen Abraham”, de Pernambuco, e supervisionar o funcionamento
beneficente da “Santa Companhia de Dotar Órfãs e Donzelas”. A
preocupação com os horário dos rituais litúrgicos levou a que esses
religiosos consultassem sábios de Salônica, cidade grega, referencial
judaico do Império Otomano, esclarecendo-se sobre os horários das
cerimônias em hemisfério diferente.
Com a Restauração Portuguesa de 1640, Salvador, então capital da
metrópole portuguesa, continuava intensamente vigiada pelo Santo Ofício
da Inquisição. No ano de 1647, membros da comunidade judaica holandesa
ficaram consternados com a prisão de Isaac de Castro Tartas, sobrinho do
rabino Raphael de Aguillar. De origem portuguesa, Isaac de Castro,
nascido em terras da França, chegara ao Brasil em 1640. Depois de
visitar a Paraíba, buscou a cidade de Salvador, apresentando-se ao bispo
como judeu. Pouco depois, acusado de ensinar judaísmo aos cristãos
novos, Tartas foi preso e encaminhado a Lisboa para responder processo
inquisitorial. Durante os interrogatórios, os juízes tentaram demovê-lo
de sua crença e convertê-lo ao catolicismo, chamando eminentes teólogos
para tal tarefa. Castro recusou-se a deixar sua fé, continuando a
praticar, na prisão, os rituais judaicos diários. Torturado, manteve-se
obstinado.
Negando tudo, foi sentenciado à morte pela justiça comum, proferida
na cerimônia do Auto de Fé de 1647. Considerado mártir do judaísmo,
Isaac de Castro foi conduzido ao patíbulo recitando o “Shemá Israel”.
Morreu queimado vivo, aos 24 anos de idade. (2)
As comunidades judaicas do Brasil holandês subsistiram por 24 anos,
até a expulsão final pelas forças luso-brasileiras, em 1654. Embora a
maioria dos judeus tenha retornado a Amsterdã, pequeno número
instalou-se nas colônias holandesas de Suriname, Barbados e Curaçao, na
América Central. Outro pequeno grupo, com mais de duas dezenas de
pessoas, estabeleceu-se em Nova Amsterdã, organizando o núcleo inicial
comunitário judaico de Nova York, hoje a maior cidade da diáspora.
Embrenhar-se pelas matas em busca de aldeias para escravizar índios e
vendê-los à produção de subsistência, nas capitanias sulinas, foram
ocupações dos bandeirantes do século 17 e 18, alguns de origem judaica,
como Raposo Tavares e Garcia Rodrigues Paes. Na busca dos índios, os
bandeirantes paulistas desbravaram e estabeleceram-se em terras
inexploradas, delineando os atuais contornos do território brasileiro.
Em novas áreas – distanciando-se dos agentes da Inquisição – os
bandeirantes acabaram por encontrar os primeiros veios do ouro, metal
ansiosamente procurado pela Coroa desde o início da colonização. A
exploração do ouro na Capitania das Minas Gerais, a partir de 1695,
transformou a cidade do Rio de Janeiro, porto de entrada de exploradores
portugueses e de mercadorias, fatores que conduziram a uma intensa
vigilância sobre a cidade. A primeira metade do século 18 foi o período
da maior atuação do Tribunal da Inquisição no Brasil. Denúncias – que
não precisavam ser comprovadas – levaram à prisão numerosos mercadores,
senhores de Engenho, mineradores, advogados e médicos, todos cristãos
novos, que viviam nas capitanias do Rio de Janeiro, Bahia, Minas, São
Paulo e São Vicente. O seqüestro dos bens dos “envolvidos pela heresia
judaizante” era procedido assim que os suspeitos eram presos e
conduzidos pelas embarcações à Lisboa.
No grupo dos envolvidos pela Inquisição de Lisboa estava a família do
advogado e procurador da Coroa, João Mendes da Silva, cristão novo, pai
do famoso dramaturgo António José da Silva, processado e queimado em
1743. Entre seus denunciantes estava o capitão-mor da Capitania da
Conceição de Itanhaém, Miguel Telles da Costa, cristão novo, também
preso. Bem posicionada no Rio de Janeiro, a família Mendes da Silva
viu-se obrigada a abandonar a cidade, instalando-se em Lisboa para
acompanhar processos de seus familiares.
Entre outros cristãos novos envolvidos pela Inquisição, na primeira
metade do século 18, citamos os irmãos Alexandre e Bartholomeu Lourenço
de Gusmão, originários de Santos, cidade do litoral paulista. Embora de
origem judaica, Alexandre e Bartholomeu Lourenço ocuparam significativos
cargos na administração pública da metrópole e do Brasil. Alexandre de
Gusmão foi secretário de Estado de D. João V e, seu irmão, Bartholomeu
Lourenço, o “Padre Voador”, pela invenção do aeróstato, ocupou cargos
político-religiosos na metrópole.
A miscigenação é fato inconteste na história colonial brasileira,
especialmente pela ausência de mulheres brancas, e disso não se furtou o
colonizador cristão novo que, comumente, se uniu a negras e índias.
Tentando encontrar na cultura brasileira conteúdo herdado dos cristãos
novos, o conhecido pesquisador Câmara Cascudo lembra alguns costumes,
ainda prevalecentes no meio rural(3). Aponta o abate de aves,
sangrando-as, e o resguardo familiar no luto, por exemplo, como práticas
de influência judaica. Além de Câmara Cascudo, especialistas de estudos
do “mental coletivo brasileiro” afirmam que, a “religião de verniz” ou
“ir para a igreja sem convicção interior”, expressas por alguns clérigos
no país, possam ter-se originado do acomodado comportamento religioso
dos cristãos novos no período colonial.
Notas:
(1) Legislação que impedia a negros, índios, mestiços, judeus,
cristãos novos e ciganos a ocupação de cargos públicos, militares e
religiosos.
(2) Seu processo foi estudado e publicado por Elias Lipiner, sob o
título: Izaque de Castro: um mancebo que veio preso do Brasil”. Recife:
Fundaj-Massangana, 1992.
(3) Luis da Câmara Cascudo. Mouros, Franceses e Judeus. Três presenças no Brasil. Editora Perspectiva, São Paulo, 1984.
Rachel Mizrahi é autora de A Inquisição no Brasil: Miguel Telles da
Costa. O capitão judaizante de Paraty. (2ª Ed., no prelo) e Imigrantes
no Brasil: Os judeus.São Paulo: Lazuli/Ed. Nacional, 2005
Fonte: Revista Morashá, via
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