segunda-feira, 4 de novembro de 2019

O gordo também tem direito à indignação?


02.11.2019 às 19h56

A sociedade continua a encarar o gordo como um ser inferior. É como se formassem a única minoria sem direito ao véu protetor da indignação

O romance “A Gorda”, de Isabela Figueiredo, arranca assim: “Quarenta quilos é muito peso. Foram os que perdi após a gastrectomia (...) Ainda penso como gorda. Serei sempre gorda. Sei que o mundo das pessoas normais não é para mim (...) Mesmo que já ninguém me exclua, excluo-me eu, à partida. Conheço bem os meus limites. Aquilo a que posso aceder e o que me está vedado para sempre. Os aleijados são, como se diz dos diamantes, eternos.” É um arranque extraordinário, até porque retrata o gordo como um aleijado, como o grande enjeitado. Não é aleijado segundo as leis da natureza, mas segundo as leis da crueldade humana. Maria Luísa, personagem central de “A Gorda” é, no fundo, como Philip de “Servidão Humana”. Ter peso a mais é como ter um pé a menos; a barriga proeminente é uma característica percecionada como uma deformação equiparável a um pé boto. É assim que um gordo se sente perante a sociedade que o encara como um ser inferior, a sociedade que insiste em fazer da obesidade uma metáfora sobre falhas morais.
Na escola da Belle Époque inglesa, Philip é gozado e humilhado pelos outros rapazes, que não lhe perdoam o pé defeituoso; a piedade não é natural ao homem, tem de ser aprendida. No Portugal contemporâneo, Maria Luísa também é destratada como a badocha de serviço. Reparem, por favor, que estou a usar o presente do indicativo. Uso o presente devido ao tempo narrativo dos romances, Philip e Maria Luísa estão a sofrer neste momento. Mas há outra razão: utilizo o presente do indicativo porque o gordo é, nos dias que correm, o único ideal-tipo que pode ser abertamente gozado e humilhado em público. O que é espantoso. Vivemos no meio de uma barragem constante de indignação de grupos e minorias que recusam ser criticados ou parodiados. Do humor à literatura, há um policiamento permanente da linguagem que confunde duas coisas: uma coisa é combater preconceitos e ódios; outra coisa, bem diferente, é diabolizar críticas, perguntas difíceis e, sim, piadas sobre grupos, etnias, tribos, minorias ou maiorias.

Fonte: https://expresso.pt/sociedade/2019-11-02-O-gordo-tambem-tem-direito-a-indignacao-

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