sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Sobre o mundo hídrico (II)



- O que Bloom, amante da água, tirador da água, aguadeiro, voltando para o fogão, admirava na água?

Sua universalidade: sua igualdade democrática e constância em sua natureza ao procurar seu próprio nível: sua vastidão na projeção oceânica de Mercator: sua profundidade desconhecida no fosso de Sundam do Pacífico excedendo 8.000 braças: a agitação de suas ondas e partículas de superfície visitando sucessivamente todos os pontos de sua orla marítima: a independência de suas unidades: a variabilidade dos estados do mar: sua quietude hidrostática na calmaria: sua turgidez hidrocinética em maré morta e fortes marés: sua subsidência depois da devastação: sua esterilidade nas calotas circumpolares, árticas e antárticas: seu significado climático e comercial: sua preponderância de 3 a 1 sobre a terra seca do globo: sua hegemonia indiscutível se estendendo em léguas quadradas por sobre toda a região abaixo do trópico subequatorial de Capricórnio: a estabilidade multissecular de sua bacia primitiva: seu leito lúteofulvo: sua capacidade de dissolver e conservar em solução todas as substâncias solúveis inclusive milhões de toneladas dos metais mais preciosos: suas erosões lentas de penínsulas e ilhas, sua formação persistente de ilhas homotéticas, penínsulas e promontórios propensos à inclinação: seus depósitos aluviais: seu peso e volume e densidade: sua imperturbabilidade nas lagoas e lagos pequenos nas regiões montanhosas: sua gradação de cores em zonas tórridas e temperadas e frígidas: suas ramificações veiculares em correntes continentais contendo lagos e rios confluentes fluindo para o oceano com seus afluentes e correntes transoceânicas, golfos, cursos norte e sul equatoriais: sua violência nos maremotos, trombas-d’água, poços artesianos, erupções, torrentes, torvelinhos, cheias, enchentes, vagalhões, bacias hidrográficas, divisores de água, gêiseres, cataratas, redemoinhos, turbilhões, inundações, dilúvios, aguaceiros: sua vasta curva ahorizontal em volta da Terra: seu segredo das fontes e umidade latente, revelado por instrumentos rabdomânticos ou higrométricos e exemplificado pelo poço pelo buraco no muro do portão de Ashtown, saturação do ar, destilação do orvalho: a simplicidade de sua composição, duas partes componentes de hidrogênio com uma parte componente de oxigênio: suas virtudes curativas: sua flutuabilidade nas águas do mar Morto: sua perseverante penetrabilidade em córregos, ravinas, represas inadequadas, fendas em navio: suas propriedades de limpar, matar a sede e apagar o fogo, alimentar a vegetação: sua infalibilidade como paradigma e modelo de perfeição: suas metamorfoses em vapor, névoa, nuvem, chuva, saraivada, neve, granizo: sua força em hidrantes rígidos: sua variedade de formas em lagos e baías e golfos e angras e desfiladeiros e lagoas e atóis e arquipélagos e estreitos e fiordes e canais entre ilhas e estuários de maré e braços de mar: sua solidez em geleiras, icebergs, banquisas: sua docilidade ao trabalhar com rodas de azenha hidráulicas, turbinas, dínamos, centrais elétricas, agentes descoradores, curtumes, fábricas de linho: sua utilidade em canais, rios, se navegáveis, docas flutuantes e revestidas de alcatrão: sua potencialidade derivável de marés utilizadas ou cursos de água caindo de um nível para o outro: sua fauna e flora submarinas (anacústicas e fotofóbicas), numericamente, se não literalmente, os habitantes do globo: sua ubiqüidade ao constituir 90% do corpo humano: a nocividade de seus eflúvios em brejos lacustres, pântanos pestilentos, vasos de flores murchas, poças estagnadas sob a lua minguante.

Tendo colocado a chaleira cheia pela metade sobre os carvões agora ardentes, por que ele retornou à torneira com a água ainda escorrendo?

Para lavar suas mãos sujas com um sabonete de limão Barrington parcialmente consumido, ao qual o papel ainda aderia (comprado treze horas antes por quatro pence e ainda não pago), numa água fresca e fria sempre mudando e nunca mudando e secá-los, rosto e mãos, num longo pano de algodão debruado de vermelho passado por um rolo giratório de madeira.

Qual foi o motivo que Stephen alegou para recusar a oferta de Bloom?

Que ele era hidrófobo, detestando contato parcial por imersão ou total por submersão em água fria (seu último banho tendo tido lugar no mês de outubro do ano anterior), detestando as substâncias aquosas de vidro e cristal, desconfiando de aquacidades de pensamento e linguagem.

O que impedia Bloom de dar a Stephen conselhos profiláticos e de higiene aos quais deveriam ser acrescentadas sugestões relativas à preliminar molhadela da cabeça e contração dos músculos com rápido borrifo do rosto e pescoço e regiões torácica e epigástrica no caso de banho de mar ou de rio, as partes da anatomia humana mais sensíveis ao frio sendo a nuca, o estômago e tênar ou sola do pé?
A incompatibilidade da aquacidade com a originalidade caprichosa do gênio. (...) águas efluentes e refluentes - JAMES JOYCE - Ulisses.

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