Na obrigação de escrever alguma coisa, tentarei dar uma arrumação
nova a avaliações que vez por outra andei fazendo neste espaço.
Na área econômica, eu penso que Lula acertou em cheio ao jogar no
lixo as idéias do PT e manter a política do governo anterior . De fato,
ao assumir, em 2003, Lula não alterou o tripé de política econômica que
encontrou : metas de inflação, câmbio flutuante e Banco Central livre de
interferência política ; para presidir o BC, teve inclusive o cuidado
de buscar um banqueiro acima de qualquer suspeita, com o que evitou
prevenções nos mercados financeiros e conservou a estabilidade a duras
penas alcançada no período anterior.
Por mais que falasse em “privataria” e em “auditoria”, Lula não moveu
uma palha no sentido de reverter as privatizações efetuadas nos anos
90. Ao contrário, instruiu o PT a abortar no Congresso uma proposta do
PSOL, que queria um plebiscito sobre a privatização (e eventual
reestatização) da Vale. Nos últimos dois anos, já sob a influência de
Dilma Rousseff e em conexão com o pré-sal, o espírito estatizante voltou
forte; até onde irá, não sabemos.
Mas aí acabam os acertos, ou não-erros. Para começar, o legado de
Lula para Dilma inclui índices de inflação já bastante incômodos e uma
situação fiscal preocupante, necessitando de sério ajuste.
Na infra-estrutura – energia elétrica, rodovias, portos,
aeroportos…-, a presidência Lula pode ser considerada desastrosa. Uma
das causas do desastre foi a qualidade manifestamente deficitária da
gestão, mas que dizer do financiamento?
Oito anos atrás, a inexistência de recursos públicos para os
investimentos necessários era de conhecimento geral. Que foi feito das
PPPs (Parcerias Público-Privadas), cuja lei foi aprovada no Congresso
logo no inicio do primeiro mandato? No ambiente internacional favorável
daquele período, por que não se tratou de atrair capital estrangeiro
para essa área?
Estou falando do passado, mas o desastre ficará ainda maior se os
trabalhos relacionados com a realização da Copa do Mundo e da Olimpíada
se atrasarem – e por ora é difícil crer que isso não vá acontecer.
Chegando ao final de seus dois mandatos, Lula parece convencido – e
isto é grave – de haver descoberto a pedra filosofal. Pensa que a
economia brasileira cresceu vigorosamente nos últimos anos graças a
méritos inexcedíveis de seu governo. Às vezes fala como se não se desse
conta de que o motor do nosso crescimento é o progresso da Ásia, em
especial o da China. Dir-se-á que o governo soube aproveitar tal
oportunidade. Ora, espantoso seria se não tivesse sabido. Seria como não
perceber um elefante entrando numa residência de dois cômodos.
Na área social, também, Lula acertou, e muito, ao manter e expandir
programas iniciados pelo governo anterior. Foi rápido no gatilho quando
se desfez do Fome Zero, que não iria a lugar nenhum, e adotou o
Bolsa-Família. Não vem ao caso inquirir aqui por que Lula nunca deu o
devido crédito ao governo Fernando Henrique – cálculo eleitoral, certa
inclinação de personalidade, sabe-se lá.
Mas chega a ser desfrutável, convenhamos, a pretensão de elevar as
políticas sociais do período Lula à condição de um “novo modelo de
desenvolvimento”, como consta na tese de doutoramento em economia do
senador petista Aloísio Mercadante, defendida dias atrás na Unicamp.
De corrupção, eu talvez nem precisasse falar, mas não posso passar
batido sobre o que Lula disse anteontem numa entrevista. Segundo ele,
pior que o mensalão teria sido o acidente com o avião da TAM em
Congonhas. Eu não estou seguro de haver captado a mensagem que Lula
pretendeu passar. Quereria ele talvez dizer que não houve corrupção em
seu governo, ou que a corrupção, se aconteceu, foi desimportante,
insuficiente para lhe causar algum abalo? Sem faltar ao respeito com
S.Exa., atrevo-me a indagar se não haverá em sua fala um quê de autismo,
considerando-se que a corrupção em seu governo começou com Valdomiro
Diniz e culminou em Erenice : o mensalão foi o meio do caminho.
Na área propriamente política, as últimas declarações de Lula vêm
sendo mais uma vez instrutivas. Um dia ele diz que não descarta voltar
em 2014. No dia seguinte, diz que Dilma será sua candidata em 2014. A
imprensa correrá atrás, tentando adivinhar quais são afinal as reais
intenções de Luís Inácio.
Eu me limito a lembrar um ilustre comunicólogo de cujo nome não me
lembro: “o meio é a mensagem”. Lula passará os próximos dois ou três
anos propalando ambigüidades, disseminando contradições, afirmando uma
coisa e seu contrário, com um único objetivo – manter sua imagem
permanentemente associada a uma palavrinha de sete letras: eleição.
Para concluir, direi três ou quatro palavras sobre os desafios que
Dilma irá enfrentar a partir de sábado. Inflação, ajuste fiscal,
reformas, Congresso? Sim, isto é óbvio.
Mas o que me chamou a atenção esta semana foram dois números que
apareceram na imprensa: no governo Lula, 83% dos cargos de livre
nomeação foram preenchidos por petistas, e 49% por sindicalistas. São
números eloqüentes. Eles mostram que Lula e o PT montaram no governo uma
subestrutura – um aparelho – do qual Dilma dificilmente conseguirá se
livrar. Quer queira mesmo voltar em 2014 ou não, o ponto de referência e
principal interessado nessa subestrutura é evidentemente Lula.
Os fatos mencionados sugerem duas hipóteses. Primeiro, como é óbvio, a
presidente Dilma Rousseff corre o risco de ter um poder paralelo
permanentemente nos calcanhares. O bom relacionamento dela com Lula pode
atenuar, mas não elimina por completo os problemas a que essa situação
pode levar.
Segundo, por aí se pode apreciar o amplo panorama histórico da
evolução do PT. A fase da pureza ética e do discurso
proto-revolucionário (“contra tudo o que aí está”) acabou. Era uma
“doença infantil”. Sobrevive apenas nas margens, como uma canção de
ninar ainda útil para embalar o sono dos ingênuos.
Na fase atual, o que há é um projeto de poder, um guarda-chuva
remunerativo sob o qual militantes, sindicalistas, ONGs e apparatchiks
de vários tipos e origens se acomodam. Para maior glória do lulismo e
sob os auspícios do contribuinte.
Fonte: Rev. EXAME