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sexta-feira, 29 de julho de 2022

“Segundo luto”, diz mãe após PM acusado de matar o filho dela ser absolvido


Adolescente foi baleado a caminho do supermercado, em Santo André (SP). PM acusado foi absolvido no dia do aniversário da mãe da vítima


29/07/2022 2:00,atualizado 28/07/2022 17:59

Arquivo Pessoal


Depois de quase cinco anos de espera por justiça, a família do adolescente Luan Gabriel Nogueira de Souza, de 14 anos, assassinado com um tiro na nuca em novembro de 2017, em Santo André (SP), recebeu a notícia da absolvição do policial militar acusado pelo homicídio, Alécio José de Souza.

A mãe do jovem, Maria Medina Costa Ribeiro, de 48 anos, se diz indignada com a decisão proferida nessa quarta-feira (27/7), depois de dois dias de julgamento. “Ontem foi meu segundo luto. O primeiro foi no dia do enterro do meu filho. O outro foi ontem, quando vi a juíza dizendo que o policial agiu em legítima defesa”, disse ela ao Metrópoles.

Luan foi morto a caminho do suspermercado, no dia 5 de novembro de 2017, no bairro Parque João Ramalho. Era um domingo. Ele havia saído de casa por volta das 13h40, com R$ 4 no bolso, para comprar um biscoito. No trajeto, ao descer uma escada que dava acesso ao local, ele se deparou com uma operação policial.

Justiça entendeu que PM agiu em legítima defesa. Luan havia saído de casa para comprar bolacha no supermercado Arquivo Pessoal


Maria Medina, ao lado do filho, quando mais novoArquivo Pessoal


Luan foi assassinado com um tiro na nuca, aos 14 anosArquivo Pessoal
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Decisão da Justiça absolveu o policial militar acusado de efetuar o disparoArquivo Pessoal

Justiça entendeu que PM agiu em legítima defesa. Luan havia saído de casa para comprar bolacha no supermercadoArquivo Pessoal

Maria Medina, ao lado do filho, quando mais novoArquivo Pessoal
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“A polícia foi fazer uma abordagem ali, naquele local, e foi bem na hora que meu filho estava passando. Não sei por qual motivo um dos policiais começou a atirar. Ele devia ter pensando que poderia acertar qualquer pessoa, um inocente, mas ele não pensou”, lamenta Maria.

O julgamento dessa quarta ocorreu justo na data de aniversário da mãe de Luan. Maria, que trabalha como cozinheira, acordou cheia de expectativas, acreditando que teria, enfim, a justiça desejada para o caso e o alívio, diante do sentimento de impunidade. “Foi o pior presente que eu poderia receber”, diz ela.

Recurso

A mãe tenta se manter forte, depois de tudo que aconteceu, e conta que fará o possível para recorrer e reverter o caso. “Sou a voz do meu filho. Ele estará presente”, afirma.


O policial acusado chegou a ficar alguns meses preso, após a morte de Luan, mas logo foi colocado em liberdade, com a condição de que fosse afastado das ruas e tivesse as atividades restritas à parte administrativa.




Desde então, família, amigos e a comunidade do bairro aguardavam por alguma resposta. O presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, o advogado Ariel de Castro Alves, acompanhou o caso e definiu a decisão como “absurda e inaceitável”.

“A decisão foi totalmente contrária às provas do processo. Ficou muito claro nas investigações que não houve confronto nenhum no local e que o PM jamais agiu em legítima defesa. Luan não tinha antecedentes na Vara da Infância e Juventude. Ele era estudante e não estava armado”, alega Ariel.

Segundo o advogado, laudos técnicos e relatos de testemunhas demonstraram que não houve ocorrência de confronto que pudesse justificar os disparos efetuados pelo policial. “Todas as provas atestaram que foi uma execução praticada por quem deveria proteger, e não matar”, afima o advogado. Ele diz esperar, ainda, algum recurso por parte do Ministério Público de São Paulo (MPSP).
Angústia e esperança

Maria Medina conta que o período de espera pelo julgamento foi angustiante e, ao mesmo tempo, marcado por uma “esperança muito grande” de que o policial fosse condenado pela morte do filho.

Ela revela que, “por saber como funciona a Justiça” brasileira, já imaginava que o PM não fosse ficar preso por muito tempo, “principalmente por ser policial”, mas que acreditava, pelo menos, na condenação.

“Se ele fosse punido, serviria de exemplo para os demais. Eles estão matando cada vez mais. Alguém tem que barrar, acabar com isso, porque senão jovens vão continuar morrendo e mães vão continuar sofrendo”, expõe.

Luan era o filho do meio de Maria. Ela tem outros dois, um homem de 27 e uma menina de 7 anos. Segundo ela, nessa quarta, ela foi ao julgamento, não esperando por vingança, mas contando com a Justiça.

“Tudo para que outras mães não passem pelo o que eu estou passando. Peço a Deus uma saúde imensa e uma vida longa para eu poder ser a voz do meu filho”, diz.

Fonte: METROPOLES

Pensando à frente e propondo desconexão

O governo da Islândia vale-se de 3 cavalos para "avacalhar" com a net, escrevendo correios eletrônicos desconexos e incompreensíveis, visando conscientizar sobre a necessidade de desconexão digital. 

A notícia foi dada por EL PAIS.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Escritório que atuou ciente que licitação seria necessária deve devolver honorários

27 de julho de 2022, 17h51

Por Danilo Vital


Ainda que o serviço contratado indevidamente sem licitação tenha sido eficientemente prestado, os valores recebidos devem ser devolvidos à administração pública se quem o executou concorreu 
para a nulidade ou agiu de má-fé.
Advogados foram contratados sem licitação para representar municípios em demandas sobre cobrança de royalties do petróleo

Com esse entendimento, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou provimento aos recursos especiais ajuizados por dois escritórios de advocacia, que fecharam contratos milionários para defender o município de Niterói (RJ) em causas ligadas ao pagamento de royalties de petróleo.

A licitação foi dispensada em ambos os casos porque, supostamente, envolveria serviços técnicos de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, conforme prevê o artigo 25, inciso II da Lei 8.666/1993.

Para o Ministério Público do Rio de Janeiro, tais serviços não eram singulares, e o fato de dois escritórios diferentes terem sido contratos é demonstração cabal disso. Assim, ajuizou ação de improbidade administrativa, que culminou na anulação dos contratos e na ordem de devolver o pagamento pelos serviços prestados.

Ao STJ, os dois escritórios contestaram a condenação e destacaram que a devolução dos honorários implicaria em enriquecimento ilícito do município. Para eles, essa ordem só seria cabível em caso de dano ao erário. O que houve, por outro lado, foi um aumento da receita, com o recebimento dos royalties do petróleo graças à atuação eficiente dos advogados.

Ao decidir o tema, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro entendeu que os honorários deveriam ser devolvidos porque os escritórios atuaram sabendo que as causas não tinham qualquer singularidade. Ou seja, concorreram diretamente para a nulidade dos contratos.

O acórdão aponta que os contratados assumiram o risco, mesmo cientes do vício insanável. “Ainda que se admita a notória especialização dos réus, não seria difícil apontar, apenas no estado do Rio de Janeiro, diversas outras firmas de advocacia que ostentam similar expertise.”
Relator, ministro Herman Benjamin manteve conclusões do TJ-RJ no sentido de que os escritórios concorreram para a nulidade
Gustavo Lima

Devolva já

Por unanimidade, a 2ª Turma manteve a anulação dos contratos, mas divergiu sobre a necessidade de devolver os honorários pagos aos escritórios. Em voto divergente, o ministro Mauro Campbell sustentou que o pagamento pelo serviço devidamente prestado deve ser mantido.

“O entendimento do Tribunal de origem vai de encontro à jurisprudência desta Corte Superior segundo a qual a restituição dos valores recebidos por serviços prestados, ainda que maculados por ilegalidade, importa em enriquecimento ilícito da administração pública”, afirmou.

Relator, o ministro Herman Benjamin concordou com a premissa, mas destacou que as decisões do STJ trazem duas ressalvas: se houve má-fé ou se o contratado concorreu para a nulidade. Se os escritórios atuaram sabendo que a licitação seria necessária, então agiram de má-fé e devem devolver os honorários.

Em voto-vista, o ministro Og Fernandes acompanhou o relator e apontou que o STJ, há muito tempo, se posiciona no sentido de que o dever de moralidade não vale apenas para os administradores públicos, mas também àqueles que prestam e executam serviços no âmbito da administração.

Se, por um lado, é fundamental garantir o pagamento daqueles que, de boa-fé, contrataram com a administração e entregaram o prometido, por outro isso não pode ser usado para beneficiar quem participou, concordou e enriqueceu com o ato ilegal.

“Torna-se ilegítima a possibilidade de invocar a responsabilidade do Estado quando a contratada age com intuito de fraudar a lei ou beneficiar-se através de situação qualificada como ilícita, a que, justamente, dera causa”, disse o ministro Og. A ministra Assusete Magalhães também votou com o relator.

Clique aqui para ler o acórdão
REsp 1.721.706

segunda-feira, 25 de julho de 2022

Tirania da opinião

Nesses tempos bicudos, da política brasileira, com uma bipolarização acentuada e, porque não dizer, até perniciosa para a democracia, é preciso que não se perca de vista a tiranização da opinião. 

A tirania da opinião – e que opinião! – é tão estúpida nas pequenas cidades da França quanto nos Estados Unidos da América. A frase aparenta estar deslocada do contexto da política brasileira, mas explico o motivo: é de STENDHAL, na famosa obra  O vermelho e o negro, que muita gente, de cara (em face do título, mesmo sem tê-la lido, por um julgamento apressado) irá achar repugnante, coisa de comedores de sanduíches de mortadela.

É sempre tentador o desejo de parecermos o dono absoluto da suposta verdade, rotulando o outro, de opiniões contrárias, como "desinformado", "burro", "infantil", "mimizento", "terrorista", "comunista", "ladrão", "preconceituoso", "miliciano", "fascista", "nazista", "gado", "corrupto", "entreguista", "traidor", "pobre de direita", "vendido", "interesseiro", dentre tantos outros "elogios".

Tenhamos a ideologia que tivermos, a força que nos atrai para impor nossa opinião é sobremaneira humana. Ninguém gosta de perder uma discussão, de dar o braço a torcer, mesmo que se considere um empedernido democrata. 

(...) tal é a tendência do homem para o despotismo, que ele procura sem cessar, não só retirar da massa comum sua porção de liberdade, mas ainda usurpar a dos outros. - CESARE BECCARIA - Dos delitos e das penas.

Boca maldita, paga, alugada,  intolerante, grosso, incivilizado, truculento, agressivo, é sempre o outro. 

A nossa opinião, sempre tenderemos  a considerar lúcida, brilhante e irretocável.

Assim como ocorre entre os crentes de alguma religião, para os quais a outra é sempre uma "seita", tão somente. O outro, somente ele, é o herege. O deus do outro (Alá, por exemplo) é desprezível. A Igreja, não tolera a sinagoga, que detesta a mesquita. Os evangélicos abominam os umbandistas, os católicos têm ódio visceral pelos evangélicos e por aí afora. A tirania da opinião não é só política, como religiosa. 

Nós pretendemos ser a antítese do outro, mas incidimos nos mesmos excessos e pecado da tirania da intolerância. 

Este texto é uma confissão? 

Sim. Conforta-me admitir o meu grave defeito e, a partir dessa reflexão, buscar corrigir meu comportamento, para ficar em paz com minha consciência. 

Não sei se você, que me está lendo, conseguirá tomar idêntica decisão, qual seja, a de abdicar da condição de tirano.

Mulheres negras estão 'à deriva', diz diretora de ONG; 6 a cada 10 lares chefiados por pretos ou pardos enfrentam insegurança alimentar


A cada 10 lares chefiados por mulheres ou por pessoas negras de ambos os gêneros, 6 têm algum tipo de restrição de acesso a alimentos, de acordo com pesquisa da Rede PENSSAN. Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha é celebrado nesta segunda (25).


Por Carolina Andrade e Mara Puljiz, g1

25/07/2022 04h00 Atualizado há uma hora



Filas por comida na Lapa, região central do Rio, em 2020 — Foto: Marcos Serra Lima - G1



Desde o início da pandemia de Covid-19 no Brasil, a diretora do Quilombo Casa Akotirene, Joice Marques, notou uma diferença no tipo de público que passou a procurar sua organização, localizada no bairro Ceilândia Norte, no Distrito Federal. Inaugurada em 2018, a casa começou os trabalhos com foco em atividades culturais voltadas para a comunidade – que é majoritariamente negra.

No entanto, com o começo da pandemia, conta Joice, que também é produtora cultural e educadora, moradores da região passaram a procurar a casa em busca de ajuda para acessar alimentos e itens de higiene pessoal. E mesmo com a queda no desemprego – em maio, o país registrou a menor taxa desde o trimestre encerrado em janeiro de 2016 –, a Casa Akotirene segue arrecadando e doando alimentos. De acordo com a diretora, a maior parte das famílias atendidas são chefiadas por mulheres negras que são mães solo.


“São realidades bem duras. São mães de quatro, cinco crianças, algumas delas são crianças especiais, mas falta creche, atenção à saúde, educação, emprego e renda. A gente tem buscado potencializar a oferta de cursos, atividades de formação e capacitação para romper essa estrutura”, explica.


Para Joice, as mulheres negras "hoje se encontram nesse lugar muito à deriva, nessa corda bamba". No Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, comemorado nesta segunda-feira (25), os dados mostram que o que Joice percebeu na prática se reflete nas estatísticas.


Segundo o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan), a cada 10 lares chefiados por mulheres ou por pessoas negras de ambos os gêneros, 6 têm algum nível de insegurança alimentar, de acordo com a pesquisa. Entre famílias chefiadas por homens, independentemente de raça, o índice é de 53,6%; entre lares chefiados por pessoas brancas, é de 46,8%.




Diretora no quilombo urbano Casa Akotirene, Ong de mulheres negras do DF


O levantamento, capitaneado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), foi feito nos 26 estados e no DF, tanto em áreas urbanas quanto rurais. Foram entrevistados 35.022 indivíduos em 12.745 domicílios, entre novembro de 2021 e abril de 2022.


De acordo com estudo da Rede de Pesquisa Solidária em Políticas Públicas e Sociedade, as mulheres negras que têm ocupações na base do mercado de trabalho foram o segmento da sociedade que mais morreu de Covid-19 em 2020.


Elas também foram as mais afetadas pela recessão gerada pela pandemia – mais presentes em setores não essenciais e sem vínculos formais de trabalho, muitas mulheres negras perderam parte significativa de sua renda durante a pandemia.


Crianças participam de atividade no Quilombo Casa Akotirene, em Ceilândia (DF) — Foto: Divulgação


As taxas de desocupação e de subutilização (situação em que a pessoa trabalha por menos horas do que gostaria) deste grupo, por exemplo, são maiores do que as verificadas entre mulheres não negras, segundo dados da PNAD Contínua do 2º trimestre de 2021, do IBGE, analisados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Em rendimentos médios no mesmo período, as mulheres negras recebiam 46,6% da remuneração de homens não negros.


Uma das consequências da combinação desses fatores é a insegurança alimentar.


A economista e titular da cátedra Josué de Castro da USP, Tereza Campello, entende que os efeitos negativos da pandemia sobre fatores como renda, acesso a empregos e a políticas públicas têm sido mais graves entre pessoas negras, mas ressalta que a situação de maior vulnerabilidade das mulheres negras não é nova. “Piorou muito [a situação das mulheres negras], mas já era uma característica da situação da fome no Brasil em outros momentos da história”, pondera.



O que é insegurança alimentar


Fome passou por ‘nacionalização’

Para Tereza Campello, a volta do país ao mapa da fome se deveu a uma escolha política e não foi causada pela pandemia. “Em 2018, dois anos antes da pandemia chegar, o Brasil já tinha invertido os principais indicadores de segurança alimentar”, diz.

Na visão da pesquisadora, este caminho começou a ser trilhado em 2016, quando foi aprovado o teto de gastos. De lá para cá, uma série de políticas públicas que poderiam mitigar a situação deixaram de existir ou funcionar, “justamente no período em que a pobreza aumentou, que a vulnerabilidade aumentou”.

Mulheres e crianças participam de atividade no Quilombo Casa Akotirene, em Ceilândia (DF) — Foto: Divulgação


Para a professora, a situação que o país atravessa hoje tem algumas diferenças em relação a crises anteriores. Hoje, diz, a fome passou a ser um fenômeno nacionalizado. Se antes o problema era localizado em algumas regiões, hoje está presente em todo o país.

Como exemplo, ela cita a pequena diferença em números absolutos de pessoas que vivem em situação de insegurança alimentar grave no Nordeste (12,1 milhões) e no Sudeste (11,7 milhões), de acordo com o II Vigisan.

“Se você olhasse esse dado na década de 1980, 1990, essa situação não teria essa mesma peculiaridade”, afirma, ressaltando que proporcionalmente a fome segue mais grave no Norte e no Nordeste.

Questionada sobre o que o país pode fazer para enfrentar a crise da fome, a professora faz avaliação semelhante à de Joice: é preciso uma rede de políticas integradas de proteção social, que incluam a oferta de alimentos saudáveis, a ampliação da renda da população, a geração de empregos e a retomada de medidas de inclusão que foram abandonadas nos últimos anos.

Na opinião da professora, o país não pode esperar 2023 para resolver o problema. “A gente precisa começar agora a reverter esse quadro, investir em políticas públicas. Isso não é gasto. As pessoas tratam como gasto de saúde, educação, assistência social, alimentação escolar – isso é um investimento”, afirma.

‘Meritocracia’

Para Kelly Quirino, professora e pesquisadora de relações raciais da Universidade de Brasília (UnB), historicamente as mulheres negras são as mais fragilizadas e ficam na base da pirâmide social em razão do racismo, do patriarcado e do capitalismo.

Com a pandemia, o cenário ficou ainda mais grave. "Muitos postos de emprego acabaram. A gente já estava em um contexto de desemprego altíssimo e com a pandemia essa questão piorou muito e fez com que as pessoas negras acabassem se contaminando mais porque tiveram que sair de casa para os trabalhos informais como camelô e de doméstica". explica.

A falta de políticas públicas que permitam que as mulheres consigam emprego e cuidar dos filhos também é um fator que, segundo Kelly, faz o ciclo de vulnerabilidade se repetir.

"Quem é rico continua mais rico e quem é pobre sofre cada vez mais. Cada vez mais os trabalhos ficam precarizados. O racismo que estrutura essa ordem das coisas as prejudica, mas tem que levar em consideração também o sexismo e o classismo. É um ciclo de violência que se repete. Se ela teve uma vida com pouca educação, sem saúde e moradia, os filhos tendem a reproduzir isso", explica.

Ela critica ainda a chamada "meritocracia".

"Muitos olham o negro na rua como vagabundo, como quem não quer trabalhar. A questão da meritocracia é perversa, porque parte do pressuposto que se a pessoa se esforçar ela vai conseguir, mas ninguém pensa que o negro não sai da mesma linha de largada. O estado não dá condições, há muita insegurança alimentar, um lar ou rua violenta. Como se pode sonhar com um futuro se tudo ao redor é precário, é ausência?", analisa.

'Marginalizados pelas políticas públicas'

Entre as mulheres da Casa Akotirene está Zilda Bahia de Oliveira, de 54 anos. No início da pandemia de Covid ela viu a fome bater à porta, foi quando conseguiu ajuda da ONG com cestas básicas, além de apoio psicológico.

“Cheguei a não ter nada em casa. Fazia cuscuz com ovo quase todos os dias e sofria calada”, diz. Zilda lembra que na infância, após a morte do pai, a mãe dela teve que cuidar sozinha dos 10 filhos. Foram muitos dias sem ter o que comer em casa.

“A gente ia para a Ceasa [Central de abastecimento] pegar frutas e verduras que as pessoas jogavam fora e também pegávamos osso para comer em um mercado. Hoje quando eu vejo as reportagens de pessoas na fila do açougue para pegar osso me dói muito porque eu lembro o que eu passei”, diz.

Quando a mãe conseguiu emprego de cozinheira foi que Zilda e os irmãos passaram a se alimentar um pouco melhor.

“A gente esperava ela chegar para poder comer. Ela trazia comida pronta dentro de sacos e então a gente comia, mas tínhamos que deixar um pouco para o café da manhã e almoço do dia seguinte”, conta Zilda.

A mãe retornava do trabalho às 23h, por isso, como os filhos eram pequenos demais, ela não conseguia garantir que eles fossem para a escola porque não tinha ninguém para levá-los ou buscá-los. Os maiores cuidavam dos menores.

Zilda foi alfabetizada depois de adulta. Recentemente, ela conseguiu finalizar o Ensino Médio e, agora, pretende estudar para ser técnica em gesso ortopédico. “O racismo, a desigualdade afetam mais a classe negra e aqueles que não têm estudo. Eu vou conseguir vencer”, garante.

Em 2023, Joice espera que a casa volte a focar em atividades culturais e sociais. “A gente não quer ficar entregando cesta básica, isso não é o nosso propósito. Isso só mostra o quanto nós estamos marginalizados pelas políticas públicas. A gente quer que os nossos não precisem de cesta básica, que consigam ter seu trabalho, seu emprego, que os jovens tenham estudo e fiquem longe da violência”, diz.

“Enquanto a estrutura não muda, a gente vem construindo”, finaliza.

PL usou dinheiro público para carro que desapareceu e R$ 1 mi para frete de sogra de dirigente


Publicado por Jeniffer Andrade
- Atualizado em 25 de julho de 2022 às 8:58

Valdemar Costa Neto e Jair Bolsonaro, Foto: Reprodução


Desde novembro, o PL, partido do presidente Jair Bolsonaro, gastou parte do dinheiro público que teve direito no ano passado com empresas dirigentes da legenda e seus familiares. Com base nas prestações de contas entregues à Justiça Eleitoral mostra que a sigla desembolsou cerca de R$ 1 milhão em despesas como serviço de frete da sogra de um comandante de diretório, aluguel de um imóvel pertencente a um deputado e consultoria de um membro da agremiação. Além disso, os recursos foram utilizados para comprar um carro que sumiu do mapa e um curso virtual que está fora do ar.

Os recursos do fundo partidário são administrados pelo comando nacional de cada legenda, que fica com uma parte e distribui o restante entre os diretórios dos estados. De acordo com a legislação, esses recursos devem ser aplicados para despesas como aluguéis de suas sedes e salários de funcionários, mas também podem bancar gastos de campanhas eleitorais neste ano. No ano passado, o PL, chefiado pelo ex-deputado Valdemar Costa Neto, recebeu R$ 53 milhões, mas declarou ter gastado menos da metade, R$ 19 milhões, deixando o valor restante no caixa da legenda.

Esses gastos constam nos relatórios do PL enviados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), embora as notas fiscais não tenham sido anexadas ao processo. O diretório do Piauí foi o que mais recebeu: R$ 1,6 milhão. Parte desse valor foi usada para contratar serviços prestados por empresas de integrantes da família do então presidente da sigla no estado, o deputado estadual Fábio Xavier: a legenda desembolsou R$ 43,5 mil por “materiais impressos”, para uma microempresa que pertence à mulher de Xavier.

O partido também pagou R$ 55 mil em aluguel imobiliário para a cunhada do dirigente do partido. E gastou mais R$ 72 mil em um serviço de fretes e carretos prestado pela empresa da sogra dele. Todas essas despesas ocorreram no período em que Xavier presidia o PL no estado. Hoje, porém, ele não está mais no partido. No início deste ano, após Bolsonaro ingressar no PL, Xavier deixou a legenda e se filiou ao PT. Desde então, o diretório da sigla no Piauí é presidido por Samantha Cavalca, apoiadora do presidente.

Ela relatou ao GLOBO não saber o paradeiro de um carro de R$ 179 mil comprado pelo partido durante a gestão de seu antecessor. Disse ainda que nem sequer sabe qual é a marca do automóvel e que só tem conhecimento do gasto porque ele está no extrato entregue ao TSE.

Xavier confirmou a compra do carro. De acordo com ele, o automóvel é utilizado pelo diretório municipal de Regeneração (PI), cidade de 17 mil habitantes a 145 quilômetros de Teresina. Ele alega que nunca foi procurado pela atual presidente do partido para tirar qualquer dúvida a respeito do assunto.
Gastos do PL em 2021

'Questão gravíssima' e 'falta de planejamento': crise de medicamentos afeta a soberania do Brasil?

 

09:00 21.07.2022 

Dispositivo de soro - Sputnik Brasil, 1920, 21.07.2022
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A prolongada crise da falta de medicamentos no Brasil pode ganhar contornos mais graves caso nenhuma atitude seja tomada. Até soro fisiológico, insumo básico para tratamentos de saúde, está faltando em unidades hospitalares. A Sputnik explica como o sumiço de remédios nas gôndolas de farmácias e em enfermarias afeta a soberania nacional.
Dados coletados por entidades de saúde e municípios apontam para a seriedade da situação: levantamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM) feito com 2.469 prefeituras mostra o cenário do desabastecimento de remédios no Brasil. Segundo a pesquisa, mais de 80% dos gestores relataram sofrer com a falta de medicamentos para atender a população.
falta de amoxicilina (antibiótico) foi apontada por 68%, ou 1.350 municípios que responderam à pergunta. A ausência de dipirona (anti-inflamatório, analgésico e antitérmico) na rede de atendimento municipal foi apontada por 65,6% — isto é, em 1.302 cidades da amostra consultada.
Caixas de remédios de amoxicilina (foto de arquivo) - Sputnik Brasil, 1920, 20.07.2022
Dispositivos de soro. Foto de arquivo
dipirona injetável esteve na resposta de 50,6% e a prednisolona, usada no tratamento de alergias, distúrbios endócrinos e osteomusculares e doenças dermatológicas, reumatológicas, oftalmológicas e respiratórias, foi mencionada por 45,3% dos municípios consultados.
A magnitude do problema também foi mensurada pela Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde): 87,6% de 113 unidades de saúde consultadas relataram que estão com dificuldades de aquisição de soro de volumes variados, sendo que 53% delas estão com estoques desse insumo fundamental abaixo de 25%.
Em meio a essa escassez, uma reportagem do Jornal Nacional de terça-feira (19) mostrou, com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), que quase 22 milhões de medicamentos perderam a validade em centros de distribuição que ficam em São Paulo e no Rio de Janeiro — um prejuízo calculado em R$ 243,7 milhões.
DNA (imagem ilustrativa) - Sputnik Brasil, 1920, 10.01.2022
Sociedade e cotidiano
Cientistas criam nanoantena capaz de ajudar no desenvolvimento de remédios e descoberta de doenças

Afinal, como a soberania brasileira é afetada pela crise de medicamentos?

Órgão fiscalizador da saúde pública do Brasil, o Conselho Nacional de Saúde emitiu um parecer a autoridades e municípios com orientações acerca da reposição dos remédios em 30 de junho, que também pede ao Tribunal de Contas da União (TCU) uma inspeção de contratos e licitações, além de citar a questão da crise dos medicamentos como um atributo da soberania nacional prevista pela Constituição Federal de 1988.

Em seu primeiro parágrafo, o documento cita o artigo "1º da Constituição Federal de 1988, que prevê como fundamentos do Estado a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana".

Medicamentos (foto de arquivo) - Sputnik Brasil, 1920, 20.07.2022
Medicamentos. Foto de arquivo
O Brasil não é um produtor de princípios farmacológicos ativos, mas sim um importador deles. Para ser autossuficiente nessa questão, precisaria de um investimento maciço e bilionário em alta tecnologia e robôs de produção.
Enquanto isso não acontece, a solução seria manter os estoques abastecidos, segundo opinou Paulo César Alves Rocha, especialista em infraestrutura, logística e comércio exterior, à Sputnik Brasil.

"Quando há falta de soro fisiológico para o hospital, se é feito na China e não há alternativa senão importar, afeta a soberania do país. Mas, no caso de medicamentos, manter estoques garantidores é uma questão estratégica", analisou.

Especialistas atribuem a falta de medicamentos ao fechamento dos portos chineses por um período de dois meses, medida tomada em razão de uma nova onda da pandemia de COVID-19.

"Dependemos muito do mercado externo no segmento de insumos médicos. Com a pandemia isso ficou muito evidente, devido à falta de EPI [equipamento de proteção individual], de respiradores, de anestésicos para intubação. Agora há essa situação de falta dos soros hospitalares, que afeta diretamente pessoas que precisam de diálise, um tratamento que ocorre de duas a três vezes por semana. As unidades não estão conseguindo comprar", observou Breno Monteiro, médico e presidente da CNSaúde. "Mais de 95% dos insumos médicos dependem da China por causa do IFA [Ingrediente Farmacêutico Ativo, que faz com que a medicação produza o efeito desejado]."

Profissional da saúde mexe em frascos com soro separado do sangue, em 20 de março de 2021 - Sputnik Brasil, 1920, 20.07.2022
Profissional da saúde mexe em frascos com soro separado do sangue, em 20 de março de 2021
operação militar especial da Rússia na Ucrânia também é apontada como uma das razões pelo Ministério da Saúde.
No entanto, ambas as hipóteses são colocadas sob questionamento pelo presidente da Confederação Nacional de Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski, que compilou os dados sobre a crise.

"Que não venham com a desculpa de que o conflito na Ucrânia é o motivo, pois ele não tem nem quatro meses ainda. Isso é um problema crônico, já vem desde o ano passado ou retrasado. Não é de agora e vai continuar. Não é o lockdown que tem na China que está emperrando tudo. Alguma coisa está equivocada, e a União tem que responder para nós o que está acontecendo", cobrou Ziulkoski.

Farmácia popular na região central de São Paulo em 14 de julho de 2022; falta de medicamentos como antibióticos, analgésicos e antialérgicos chegou a ser registrada - Sputnik Brasil, 1920, 20.07.2022
Farmácia popular na região central de São Paulo em 14 de julho de 2022; falta de medicamentos como antibióticos, analgésicos e antialérgicos chegou a ser registrada
O presidente do CNM sublinhou a necessidade de uma política de contingência nacional para cobrir a falta de medicamentos no Brasil e, desse modo, garantir a soberania de produção.

"É uma questão gravíssima. É falta de planejamento. Compete à União, ao governo federal obter os insumos e os remédios e a nós aplicar lá na ponta. As prefeituras são as operadoras para a aplicação de vacinas, de remédios, e para a internação na ponta. Por isso é muito complexa e gravíssima a situação, porque o sistema todo está sendo afetado. São centenas, milhares de pessoas que estão vindo a óbito ou então [dependem] de internações onde não há vagas, ainda mais quando isso se afunila com a pandemia pela qual estamos passando. É um diagnóstico que estamos fazendo, e agora nos resta denunciar e dar transparência a isso. Estamos protocolando esses estudos e pedindo às autoridades que imediatamente encontrem uma solução", alertou.

Focada no social, nova Constituição pode mudar o Chile, mas enfrenta resistência



24 de julho de 2022, 10h00

Por Rafa Santos



O povo do Chile terá no próximo dia 4 de setembro uma oportunidade de mudar a sua história. Nessa data, será feito um plebiscito sobre o novo texto constitucional do país, que, se aprovado, reformará profundamente o Estado chileno e certamente causará desdobramentos políticos, econômicos e sociais.
Baixos índices de aprovação do governo de Boric têm afetado percepção sobre o texto
Reprodução / Instagram

"Quando eu saí do Chile, em 15 de fevereiro, a minha impressão era de que o desafio seria a Convenção Constitucional terminar o texto dentro do prazo, mas, para minha surpresa, tudo foi terminado no prazo e o desafio agora é fazer com que essa nova Carta Magna ganhe os corações e as mentes do povo chileno nesse plebiscito", contou a professora do Curso de Gestão de Políticas Públicas da EACH-USP Ester Gammardella Rizzi.

Ester acompanhou in loco os trabalhos da Convenção Constitucional chilena e relatou parte de sua experiência em uma série de artigos publicados na ConJur. Para entender o impacto que a nova Constituição pode ter no país, basta recordar que o texto vigente data de 1980 — tendo, portanto, sido formulado durante a ditadura sangrenta capitaneada pelo general Augusto Pinochet (1915-2006) — e é marcado por um viés liberal.

O célebre ilustrador chileno Guillermo Bastías, conhecido como Guillo, tem publicado uma série de tiras sobre as diferenças entre o texto constitucional vigente e o que será votado. Em uma delas, o artista retrata a Constituição da ditadura em um quadrinho que mostra uma mulher em frente a um carrinho de supermercado com itens como bens de consumo, saúde, educação e Previdência Social. No quadro que representa o novo texto constitucional, direitos sociais são representados em um guarda-chuva multicolorido segurado pelo braço do Estado, protegendo a população. Batizado de "el rechazo" ("a recusa") pela mídia local, o plebiscito tem sido marcado por um debate público polarizado, com direito a fake news, como a de que o aborto passará a ser permitido até o nono mês de gestação.

A Convenção Constitucional foi criada após uma onda de protestos, em 2019, que levou milhares de pessoas às ruas e resultou em 23 mortes. A mobilização popular por melhores condições de vida só chegou ao fim quando o então presidente Sebastián Piñera costurou um acordo que permitiu a realização do plebiscito de 2020 sobre um novo processo constitucional. Na ocasião, 80% dos chilenos votaram por uma nova Constituição.

O trabalho da constituinte chilena resultou em uma proposta de Carta Magna com 388 artigos (clique aqui para ler o texto na íntegra), sem contar as disposições transitórias. O documento foi o primeiro da história do país a ser redigido de forma paritária entre homens e mulheres e, se aprovado, vai mudar o sistema político do Chile e consagrar uma série de direitos sociais.

Entre os constituintes estão muitas lideranças que não participavam do debate político convencional. Um dos exemplos mais famosos é o de Giovanna Jazmín Grandón Caro, conhecida como Tía Pikachu. Ela é uma condutora de van escolar que mora na periferia de Santiago e ganhou popularidade durante os protestos de 2019 por usar uma fantasia do famoso personagem do desenho Pokémon. Ela foi eleita de forma independente, sem vínculo com partidos políticos, e integra um grupo que foi uma das grandes surpresas da formação da Convenção Constituinte. Dos 155 parlamentares eleitos para elaborar a nova Constituição, 48 se apresentaram por listas independentes dos partidos políticos. Essa ala dos constituintes canalizou anseios populares por mais direitos sociais durante a elaboração do texto e atuou alinhada aos eleitos por partidos de esquerda. 
Tia Pikachu ganhou fama nos protestos e foi eleita constituinte de maneira independente
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Uma das grandes mudanças do novo texto é que o Chile é definido como um Estado social democrático de Direito. "Essa palavra social transforma muito o papel do governo na sociedade chilena. Se aprovada, o Chile deixa de ter um Estado subsidiário para ter um que se responsabiliza pela diminuição das desigualdades e pelos direitos sociais. Então é uma mudança muito profunda", explica Ester.

A nova Carta também diz que o Chile é um Estado paritário e, por isso, determina que 50% dos cargos de todos os órgãos do governo e de empresas públicas devem ser ocupados por mulheres. Além disso, define o Estado chileno como plurinacional — que reconhece as populações indígenas com demarcação de terras, representação política e autonomia administrativa —, intercultural, regional e ecológico.

O Senado será extinto para dar lugar à Câmara das Regiões, composta por até três representantes das 16 regiões do país. O novo órgão terá como função principal avaliar o impacto regional das novas leis. A idade mínima para se candidatar ao cargo de presidente foi reduzida de 35 para 30 anos e a reeleição será permitida — a Constituição vigente permite a reeleição, mas não de modo consecutivo.

Outra mudança impactante proposta pelo novo texto constitucional é a criação de um sistema público de saúde, educação e previdência social. Também estabelece a garantia de direitos como trabalho e moradia dignos, além de "remuneração equitativa, justa e eficiente".

Meio ambiente
A nova proposta de Constituição dedica atenção especial ao meio ambiente. "O texto vigente é uma constituição antropocêntrica, que de certa maneira criou condições para um espécie de mercado ambiental. Em 1981, foi publicado um Código de Águas que é bem problemático, já que o país passa por uma crise hídrica e o direito ao uso da água está submetido ao direito da propriedade", explica Fabiola Girao Monteconrado, professora da Universidade de Valparaíso e coordenadora do Observatori del proceso constituyente chileno de la Universidad de Valparaiso.

Fabiola é advogada, mestre em Direito de Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em Direito pela Universidade Católica de Valparaíso. Ela conta que a ecologia é um dos elementos que definem o Estado chileno, estabelecendo direitos da natureza.

"Na nova proposta entram palavras que não existiam, como garantir e promover direitos. Em matéria ambiental, temos determinações para preservação e conservação do meio ambiente. Os animais também passam a ser detentores de direitos por serem seres sencientes. O uso da água passa a ser um direito humano e o uso prioritário dela passa a ser o consumo humano". Caso seja aprovada, a nova Constituição quebrará o monopólio privado do uso da água no Chile.

Também será criada a figura do defensor público da natureza, que terá como missão a preservação do meio ambiente nos casos em que ocorra ação ou omissão de órgãos públicos ou privados em detrimento do meio ambiente. A matéria ambiental surge em outros capítulos da nova Constituição, além do que é exclusivamente dedicado ao meio ambiente, e entra também no sistema de Justiça, cujos órgãos jurisdicionais passam a ter o dever de zelar pelos direitos humanos e da natureza.

"Passa-se de uma visão eminentemente mercadológica para uma mais alinhada ao Direito Internacional e aos direitos humanos, elevando a natureza em si a uma entidade detentora de direitos", conta Fabiola.

Direitos indígenas
Em contraposição à Constituição vigente, o novo texto reconhece 11 etnias e nações indígenas: Mapuche, Aymara, Rapa Nui, Lickanantay, Quechua, Colla, Diaguita, Chango, Kawashkar, Yaghan e Selk'nam.

Também reconhece os povos indígenas como comunidades autônomas, com a validação de seus idiomas, símbolos e instituições educacionais. O limite da autonomia, contudo, é a não violação do caráter "único e indivisível" do Estado do Chile e das leis chilenas.

Além disso, a nova carta valida o direito dos indígenas de manter suas práticas de saúde e usar seus medicamentos tradicionais.

Trabalho e previdência
Em relação à legislação trabalhista, o novo texto constitucional representa uma revolução. Esse diagnóstico é do professor de Direito do Trabalho da Universidade de Valparaíso e PHD em Direito pela Universidade de Bristol Matias Rodriguez Burr.

O texto que será votado no plebiscito estabelece, entre outras coisas, a liberdade de organização sindical e a liberdade de escolha do trabalhador de se sindicalizar. Prevê também que as organizações sindicais têm direito a participar das decisões das empresas e são titulares exclusivas do direito de negociação coletiva. "Isso no Brasil pode não significar muito, mas no Chile representa uma verdadeira revolução. Isso vai melhorar o nível de negociação entre trabalhadores e empresas em nosso país, já que temos índices de sindicalização muito baixos. E isso será um belo incentivo", diz o professor.

Ele sustenta que a própria definição de trabalho no Chile vai mudar no caso de aprovação da nova Constituição. "Na Constituição vigente existe uma definição do que é trabalho decente de maneira vaga. O novo texto define, entre outras coisas, o que é um salário justo, que permite ao trabalhador e sua família uma vida digna. Também é estabelecido o direito à desconexão para os profissionais que atuam no regime de teletrabalho e o direito de greve".

Segundo Burr, outro aspecto revolucionário do novo texto é a paridade de salários, que determina que todos os profissionais — homens e mulheres de qualquer orientação sexual e identidade de gênero — devem receber o mesmo salário se desempenharem funções iguais.

O direito de greve será estendido a todos. "Esse tema será difícil de regular na prática, já que na Constituição vigente, apesar da proibição de greve, os funcionários públicos negociam coletivamente da maneira mais dura em nosso mercado de trabalho".
Chilenos se manifestam contra o
sistema de previdência privada do país
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Sobre a previdência, o novo texto atende a uma das principais demandas da sociedade chilena, que é a criação de um sistema público. Fabiola explica que o atual sistema previdenciário chileno resulta em muitos aposentados vivendo na miséria.

"É possível receber um quarto do salário mínimo. Então, parar de trabalhar no Chile muitas vezes significa ser jogado na miséria".

Burr, por sua vez, opina que a transição entre esses dois sistemas de previdência representará um desafio. "Temos 40 anos de previdência privada, então será preciso definir muito bem como iremos trocar esse sistema. As pessoas se sentem donas dos seus fundos de pensão".

Fake news e debate poluído
Apesar da cara moderna do novo texto constitucional chileno, a proposta corre o risco de não ser aprovada por causa de uma discussão polarizada e contaminada por uma série de notícias falsas disseminadas por grupos de interesse.

Dados do instituto de pesquisa Cadem, do último dia 27 de junho, mostram que a aprovação ao novo texto constituinte é de apenas 33%. Número muito inferior aos 56% de janeiro deste ano. A resistência ao novo texto constitucional acompanha a queda de popularidade do presidente Gabriel Boric, que registrou 59% de desaprovação no último levantamento. Esse é o pior resultado desde que ele assumiu a presidência, em março deste ano (clique aqui para ler o levantamento na íntegra).

Para Burr, não é possível apontar pessoas ou empresas que venham atuando na disseminação de mentiras sobre o novo texto constitucional. A resistência à mudança vem de uma parcela da sociedade preocupada com o impacto econômico da novidade e de grupos católicos e evangélicos que discordam dos aspectos morais.

"Uma das maiores fake news é a de que é preciso reprovar esse texto constitucional para que seja formulado outro. Dizem que esses constituintes não entendem nada e que é preciso eleger uma nova constituinte. Só que não há nada definido para um novo processo constituinte", explica Fabiola Girao.

Outra mentira é que o povo mapuche poderá vender parte do território chileno para a Argentina. Esse componente patriotico no debate sobre a nova Constituição não é necessariamente vinculado à elite econômica do país, ganhando muita capilaridade entre os cidadãos comuns.

'Outro argumento que tem sido muito debatido é o de que a nova Carta Magna representa uma cópia da Constituição boliviana. Parte da população do Chile enxerga a Bolívia apenas como um povo pobre. Se dissessem que o texto constitucional era uma cópia da Carta Maior alemã, essa alegação não teria tanto peso", diz Fabiola.

No entanto, segundo ela, a comparação até faz sentido em matéria ambiental. "A Constituição boliviana é muito boa nessa matéria. Também existem referências aos textos constitucionais do Equador e da Costa Rica. Mas o que se força aqui é uma super-representação dessas semelhanças. Como se tivessem ficado um ano copiando outra Constituição, mas não foi isso que aconteceu", diz ela.



Rafa Santos é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 24 de julho de 2022, 10h00