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sábado, 2 de julho de 2022

Nada como um dia atrás de outro - Em busca de petróleo, Ocidente tenta se reaproximar da Venezuela


No G7, França fala em reincorporar petróleo venezuelano ao mercado; estadunidenses visitam Caracas pela 2ª vez no ano
Lucas Estanislau
Caracas (Venezuela) | 02 de Julho de 2022 às 11:57

Maduro acolheu sinais dos EUA e da Europa, mas também quer integrar inciativas russas e chinesas - Prensa Presidencial


Após mais de quatro meses de combates, os efeitos geopolíticos e econômicos da guerra na Ucrânia extrapolaram as zonas de conflito e passaram a influenciar cada vez mais os movimentos das potências europeias e dos EUA, que apoiam Kiev, e as decisões de Moscou e de seus aliados no chamado Sul Global. Se por um lado o Ocidente e suas instituições, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e o G7, seguem com uma postura beligerante e fracassam na construção de saídas diplomáticas, a Rússia, que também não dá sinais de encerrar a guerra, se aproxima da China e de outros parceiros para buscar alívio às sanções impostas pelos rivais, apostando em um discurso de multipolaridade e no possível enfraquecimento da hegemonia estadunidense.

A conjuntura também tem implicações para a América Latina, com destaque para a Venezuela, que pode atuar em duas frentes devido a sua importância no mercado de combustíveis e sua aproximação com potências euroasiáticas. Dona das maiores reservas certificadas de petróleo do mundo, o país surge como uma possível alternativa para suprir a demanda europeia e principalmente norte-americana diante da crise energética causada pelas interrupções no fornecimento de petróleo e gás russos. Por outro lado, há anos Caracas vem costurando acordos com países não alinhados aos ditames da Casa Branca e busca se colocar como um agente estratégico em novas iniciativas econômicas encabeçadas por Moscou e Pequim.

Para o pesquisador venezuelano Sergio Rodríguez Gelfenstein, embora a guerra na Ucrânia tenha forçado o Ocidente a lidar de maneira mais pragmática com a Venezuela, colocando no horizonte a possibilidade de suspensão de algumas sanções, o país não pode esquecer de aliados que forneceram apoio político e econômico nos anos mais duros da crise e do bloqueio.

"É claro que nessa situação de conflito, as maiores possibilidades vêm dos países amigos, da Rússia, do Irã, da China, da Turquia, ou seja, de países com os quais temos relações, seja porque somos membros da Opep ou porque temos alianças estratégicas. Todo o armamento das nossas Forças Armadas é russo e isso faz com que tenhamos uma relação estratégica com a Rússia. Além disso, a Rússia e a China nos ajudaram muito nos momentos difíceis", afirma Gelfestein.

Na última semana, dois dos maiores grupos que reúnem países do Ocidente, o G7 e a Otan, realizaram reuniões e anunciaram planos que visam fazer ainda mais oposição aos movimentos russos e chineses. Além da promessa de novas sanções contra a Rússia e mais ajuda militar à Ucrânia, a resolução final do encontro do G7 destacou a continuidade dos planos de investimentos em infraestrutura em países em desenvolvimento para fazer frente à Iniciativa do Cinturão e Rota, plano desenvolvido pela China que também é conhecido como Nova Rota da Seda.

A Venezuela não passou despercebida durante as reuniões de organismos ocidentais. Durante a cúpula do G7, que ocorreu na Alemanha, um representante do governo francês disse a repórteres, segundo a Reuters, que Paris estaria trabalhando pela diversificação de fontes de combustíveis e pela reincorporação do petróleo iraniano e venezuelano ao mercado ocidental. As duas nações são alvos de sanções por parte dos EUA.

"Há recursos em outros lugares que precisam ser explorados. Portanto, há um nó que precisa ser desfeito, se for possível, para trazer o petróleo iraniano ao mercado. Há o petróleo venezuelano, que também precisa voltar ao mercado", disse o oficial francês. O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, por sua vez, respondeu os comentários e garantiu que o país "está pronto para receber todas as empresas francesas que queiram produzir petróleo e gás para o mercado mundial".

Apesar de ser abundante em petróleo, a Venezuela e sua indústria petroleira passam por uma crise desde 2019, quando a queda dos preços internacionais aliada às sanções dos EUA contra o setor levaram a produção do país a despencar, saindo de uma média anual de cerca de 2,5 milhões de barris por dia em 2014, para cerca de 500 mil barris diários em 2020. Os abalos no setor energético venezuelano fizeram com que o PIB do país se contraísse em mais de 86% na última década, segundo dados do FMI.

Foi apenas em 2021 que a indústria começou a apresentar sinais de recuperação, apesar de ainda estar distante dos melhores momentos de produção observados há uma década. O país fechou o ano produzindo mais de 870 mil barris diários e em maio de 2022, segundos os últimos dados da Opep, a Venezuela produziu 715 mil barris por dia. Um retorno de empresas estrangeiras ao país poderia alavancar a produção petroleira aos níveis pré-crise e aumentariam as chances de se tornar uma possível fonte para suprir suas demandas do Ocidente.

Ao Brasil de Fato, Gelfestein confirma que o interesse do Ocidente em retomar o comércio de petróleo com a Venezuela está diretamente ligado à guerra na Ucrânia, mas alerta para o desafio que EUA e Europa terão em convencer sua opinião pública de que as hostilidades contra a Venezuela foram um erro.

"O problema é como eles vendem a questão à sua opinião pública. Depois de dizerem que Maduro era o pior do mundo, que ele deveria ser derrubado, depois de tentarem invasões marítimas, invasões terrestres, agressões partindo da Colômbia, tentativas de assassinato do presidente, tentativas de dividir as Forças Armadas, eles fracassaram. Agora como vão vender à opinião pública que estão vindo conversar com a Venezuela porque precisam, de alguma maneira, dar resposta à inflação crescente no preço dos combustíveis e dos alimentos?", questiona o pesquisador.

Desde o início dos conflitos na Ucrânia, delegações do governo estadunidense visitaram a Venezuela em duas ocasiões. Em março, representantes do governo de Joe Biden se reuniram com Maduro em Caracas e, após o encontro, Washington suspendeu algumas sanções petroleiras contra o país. A decisão permitiu que a norte-americana Chevron iniciasse negociações com a estatal PDVSA para a retomada de operações no país e que a espanhola Repsol e a italiana Eni voltassem a enviar petróleo à Europa. O segundo encontro aconteceu na última segunda-feira (5) e, segundo o próprio presidente venezuelano, deve dar "continuidade à agenda bilateral" entre os EUA e a Venezuela.

A postura da Casa Branca marca uma mudança no tratamento que vinha sendo dado ao governo venezuelano. Embora não tenha abandonado o reconhecimento oficial ao autodeclarado presidente Juan Guaidó e seu governo fictício, iniciado pelo ex-presidente Donald Trump durante sua campanha de "pressão máxima" contra Caracas, a gestão Biden passou a dialogar diretamente com representantes de Maduro e parece estar disposta a iniciar uma revisão em sua política de sanções.

A estatal de petróleo da Venezuela, PDVSA, está sob sanções dos EUA / Luis Robayo / AFP

Em entrevista ao Brasil de Fato, a professora Bárbara Motta afirma que, apesar de alguns sinais de ruptura do governo Biden em relação a estratégias na política externa da gestão Trump, há um ponto em comum entre o democrata e o republicano que diz respeito a um declínio da hegemonia de Washington.

"Por mais que as estratégias de engajamento internacional sejam diferentes entre Trump e Biden, me parece que essas administrações compartilham uma visão de mundo de que talvez eles estejam frente a uma mudança na ordem internacional e que talvez isso seja inevitável. Para onde esse ordem internacional vai, se vai para uma ordem mais multipolar ou se estamos diante de uma transição hegemônica, com o declínio dos Estados Unidos e a subida da China, acho que ainda não temos o diagnóstico e essas administrações ainda não têm o diagnóstico concreto de como esse futuro vai se apresentar", diz Motta.

Venezuela aposta em mundo multipolar

Já a reunião da Otan, que ocorreu em Madri, na Espanha, e se encerrou na última quinta-feira (30), foi marcada pela definição da China como uma ameaça potencial e a autorização da entrada da Suécia e da Finlândia na aliança militar. As resoluções podem simbolizar uma tentativa do Ocidente de responder aos movimentos de aproximação entre Moscou e Pequim e que devem contar com a participação da Venezuela.

Para Motta, a aproximação entre Moscou e Pequim como uma consequência da guerra na Ucrânia é encarada pelos EUA como a criação de "um novo inimigo para chamar de seu". Por outro lado, tal movimento possibilita a formação de uma comunidade de países sancionados com a qual invariavelmente Washington terá que dialogar para manter suas zonas de influência e principalmente para suprir demandas energéticas de petróleo e gás.

"Esse bloco dos sancionados pode até vir a surgir, mas os Estados Unidos terão que conversar com ele, porque esse bloco é fundamental para pelo menos garantir alguma substituição imediata para esse recurso fundamental que a Rússia tem em abundância, o petróleo, e que acaba sendo importante para fazer a economia europeia funcionar. Inclusive eu acho que os Estados Unidos vão ter que conversar com Venezuela e com o Irã se eles quiserem se apresentar mais uma vez como líderes da ordem internacional, como garantidores da estabilidade internacional, não só do ponto de vista da segurança, mas do ponto de vista da economia também", afirma.

A aproximação do governo venezuelano com países fora do eixo ocidental não responde apenas aos efeitos da guerra na Ucrânia e a uma orientação da política externa chavista, mas também a atitudes hostis tomadas por organismos multilaterais da região que são hegemonizados pelos EUA. A Organização dos Estados Americanos (OEA), por exemplo, não reconhece o governo de Maduro e apoia o ex-deputado Guaidó em sua tentativa de construir um governo paralelo, que protagonizou tentativas de golpes de Estado e pedidos de intervenção contra o país. Durante a 9ª Cúpula das Américas, que ocorreu em Los Angeles entre os dias 6 e 10 de junho e excluiu Cuba, Nicarágua e Venezuela, o país deixou evidente seu esforço por criar novas rotas de integração quando Maduro visitou e assinou acordos com Turquia, Irã, Argélia, Kuwait, Catar e Azerbaijão na mesma semana em que Biden recebia mandatários latino-americanos nos EUA.

Durante os primeiros governos do ex-presidente Hugo Chávez, Caracas estreitou laços com Rússia, China e Irã, assinando importantes acordos em matéria petroleira. Entretanto, foi só durante o governo do atual presidente Maduro, já sob o bloqueio econômico dos EUA e atravessando uma crise econômica que reduziu mais de 80% do seu PIB em menos de 6 anos, que a Venezuela passou a sentir de fato o peso do apoio político e econômico de potências euroasiáticas.

Durante esse período, a China passou a ocupar a primeira posição na lista de compradores de petróleo venezuelano, posto que era dos estadunidenses até 2019, quando a Casa Branca decidiu interromper as importações do país. Além disso, as relações entre Caracas e Moscou, que já contemplavam acordos bilionários em matéria petrolífera, avançaram para as áreas de defesa e tecnologia militar. O Irã, país que também sofre com sanções impostas por Washington, fornece apoio técnico a refinarias venezuelanas e chegou a enviar carregamentos de gasolina quando a Venezuela passava por um forte período de escassez. Vale lembrar que todos esses governos condenam constantemente o bloqueio econômico norte-americano e não reconhecem Guaidó como "presidente interino" do país.

"Desde o primeiro momento, Chávez entendeu a necessidade de avançar para um mundo multipolar, ou pluripolar, como ele mesmo dizia. Maduro continuou com isso e é por isso que eu reafirmo a importância da continuidade. Essa série de viagens que o presidente acaba de fazer se insere na lógica de romper com esse pensamento colonial que supõe que o centro do mundo está na Europa e em Washington", argumenta Gelfestein.

Agora, a Venezuela não deve ficar de fora de iniciativas elaboradas por Rússia e China, principalmente financeiras, como respostas aos efeitos da guerra na Ucrânia. Após ser banida do sistema internacional de transações bancárias SWIFT, Moscou demonstrou suas intenções de criar um mecanismo alternativo ao utilizado pelo Ocidente. Apesar de possuir um sistema próprio, o Sistema para Transferência de Mensagens Financeiras (SPFS, na sigla em inglês), o plano deve contar com a cooperação da China e do seu Sistema de Pagamentos Interbancários entre Fronteiras (CIPS, na sigla em inglês). Ambos os sistemas utilizam as moedas nacionais - rublos e yuans, respectivamente - para realizar as transações, marcando o esforço dos países de sair da hegemonia do dólar.

Cédula de dólar e yuan, a moeda nacional da China. / Fred Dufour / AFP

Além disso, o governo russo quer aumentar ainda mais a utilização do MIR, seu sistema de cartões de crédito internacional, já que bandeiras como Visa e MasterCard saíram da Rússia após a guerra, levando o projeto para países como a Venezuela. Em março, o embaixador russo em Caracas, Sergey Melik-Bagdasarov, afirmou que as negociações já começaram e que a implementação do MIR no país seria “uma oportunidade muito útil”.

Bárbara Motta diz acreditar que um processo de saída da esfera do dólar de vários países pode ocorrer a curto prazo. O fenômeno, diz a pesquisadora, pode ser explicado pela crise econômica desencadeada pela pandemia do novo coronavírus, pela guerra entre Rússia e Ucrânia e pelo alcance de investimentos a serem feitos pela China no seu projeto de infraestrutura chamado Nova Rota da Seda.

"Esses podem ser alguns pontos que mostram o quanto a gente pode olhar para uma possível desdolarização mais rápida da economia, seja por conta da crise na Ucrânia e por conta da pandemia. Se a gente pensar que esse projeto chinês do Cinturão e Rota pode ser mais atrativo para países do Sul Global e pensando que esse projeto é em grande parte financiado pelo Banco Asiático de Infraestrutura e Investimento e pelo Banco de Desenvolvimento da China, pode ser que essa iniciativa contribua ainda mais para essa desdolarização, já que esses investimentos podem vir em moeda chinesa e não necessariamente em dólar", afirma a professora.

Edição: Thales Schmidt

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