20 de maio de 2021, 17h08
A 1° Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento dos Recursos Especiais Repetitivos n°s 1.770.760, 1.770.808 e 1.770.967, afetados pelo Tema 1.010, ocorrido no último dia 28 de abril, decidiu a relevante controvérsia relativa à norma aplicável para extensão da faixa non aedificandi a partir das margens de cursos d'água naturais em trechos caracterizados como área urbana consolidada.
O julgamento fixou a tese no sentido de que o afastamento mínimo das margens dos cursos d'água, ainda que em áreas urbanas, deve respeitar o artigo 4°, inciso I, da Lei n° 12.651/2012 (Código Florestal) [1], que prevê a largura de 30 a 500 metros, e não o recuo de 15 metros estipulado pelo artigo 4°, inciso III, da Lei n° 6.766/1979 (Lei de Parcelamento do Solo Urbano) [2] [3]:
"Tese fixada — Tema 1010/STJ: Na vigência do novo Código Florestal (Lei n° 12.651/2012), a extensão não edificável nas Áreas de Preservação Permanente de qualquer curso d’água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo seu artigo 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade".
Malgrado a polêmica que permeava tal matéria perante os tribunais pátrios, os quais defendiam a aplicabilidade da Lei de Parcelamento do Solo Urbano justamente por se tratar de áreas urbanas consolidadas, já havia posição consolidada do Superior Tribunal de Justiça, antes da entrada em vigor do novo Código Florestal, no ano de 2012, no sentido de que a largura mínima dessas faixas marginais em meio urbano era disciplinada pelas normas do antigo Codex.
Esse foi um dos motivos evocados pelo ministro relator, Benedito Gonçalves, para justificar não apenas a primazia de incidência do Código Florestal às margens de rios e córregos localizados em áreas urbanas, mas também a ausência de nova interpretação da norma discutida. Para tanto, se valeu da citação de fartos precedentes do tribunal, mormente o externado no Recurso Especial nº 1.518.490, pelo ministro relator Og Fernandes, que solucionou a antinomia entre tais normativos quanto à disciplina destas faixas [4].
O ministro Gonçalves ressaltou ainda que, pelo critério da especialidade, além de a norma contida no Código Florestal garantir a mais ampla e eficaz proteção ao meio ambiente, tanto em áreas rurais quanto em áreas urbanas, e à coletividade, também observa o princípio do desenvolvimento sustentável e as funções social e ecológica da propriedade, em completa consonância com os artigos 170, inciso VI, e 225, ambos da Constituição Federal, razão pela qual deve prevalecer.
Não restam dúvidas de que a decisão foi assertiva ao esclarecer que os normativos em referência têm propósitos completamente distintos: ao passo que um trata da infraestrutura urbana, o outra tutela a proteção e o uso sustentável das florestas e demais formas de vegetação nativa (biodiversidade) em harmonia com a promoção do desenvolvimento econômico.
Destarte, vê-se que o artigo 4°, inciso I, do Código Florestal, ao prever medidas mínimas superiores para as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente [5], é o que deverá reger a proteção das áreas de preservação permanente (APPs) ciliares ou ripárias em áreas urbanas consolidadas tidas como espaços territoriais especialmente protegidos, que não se condicionam a fronteiras entre o meio rural e urbano.
Nada obstante, se por um lado a tese fixada traz a devida segurança jurídica para os projetos e empreendimentos urbanos futuros, por outro cria dificuldades àqueles já aprovados e edificados, podendo, na realidade, causar maiores inseguranças.
Ainda que o procurador da Câmara Brasileira da Indústria da Construção Civil, participante do processo na condição de Amicus Curiae, tenha pleiteado a proteção dos imóveis construídos com fundamento na Lei de Parcelamento do Solo Urbano, o Superior Tribunal de Justiça decidiu por não modular os efeitos da decisão, sob a justificativa de que não havia "surpresa ou guinada jurisprudencial a justificar a atribuição de eficácia prospectiva ao julgamento".
Portanto, a tese ora fixada define o alcance de seus efeitos indiscriminadamente a todo e qualquer caso, passados ou futuros. É dizer, todas as construções anteriormente aprovadas pelos órgãos ambientais com recuo de 15 metros das margens d’água em área urbana agora se encontram em disparatada posição de risco, ao poderem ser declaradas retroativamente irregulares.
A ausência de modulação dos efeitos pode ainda gerar potencial conflito nessa situação, na medida em que abre margem para os órgãos ambientais, na tentativa de defesa do meio ambiente, buscarem judicialmente a demolição de todas as edificações em desconformidade com a extensão preconizada pelo Código Florestal, dado o cenário já pacificado nos tribunais brasileiros acerca da imprescritibilidade de reparação dos danos ambientais e da inexistência de fato consumado em matéria ambiental [6].
Não se pode negar que a decisão poderá trazer vastos impactos econômicos e sociais, sobretudo às construtoras, incorporadoras e loteadoras cujos empreendimentos estejam em desarmonia com as normas do Código Florestal.
Logo, vislumbra-se um cenário de verdadeiro "cobertor curto", pois, ao pacificar a controvérsia em tela, definindo a observância do Código Florestal em áreas urbanas consolidadas, auxilia os futuros empreendimentos, mas pode acarretar insegurança jurídica àqueles que utilizaram a Lei de Parcelamento do Solo Urbano como parâmetro, ante a negativa de aplicação dos efeitos ex nunc a esses casos, nos restando acompanhar as repercussões da decisão.
[1] "Artigo 4º - Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei: I — as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de: a) 30 metros, para os cursos d’água de menos de 10 metros de largura; b) 50 metros, para os cursos d’água que tenham de 10 a 50 metros de largura; c) 100 metros, para os cursos d’água que tenham de 50 a 200 metros de largura; d) 200 metros, para os cursos d’água que tenham de 200 a 600 metros de largura; e) 500 metros, para os cursos d’água que tenham largura superior a 600 metros".
[2] "Artigo 4º - Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos: [...] III — ao longo das faixas de domínio público das rodovias, a reserva de faixa não edificável de, no mínimo, 15 metros de cada lado poderá ser reduzida por lei municipal ou distrital que aprovar o instrumento do planejamento territorial, até o limite mínimo de cinco metros de cada lado".
[3] Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=126499530®istro_numero=201802631242&peticao_numero=-1&publicacao_data=20210510&formato=PDF. Acesso em 14 de maio de 2021.
[4] Nas palavras do ministro relator Benedito Gonçalves: "Deve-se, portanto, manter o entendimento desta Corte Superior de que não se pode tratar a disciplina das faixas marginais dos cursos d’água em áreas urbanas somente pela visão do Direito Urbanístico, enxergando cada urbis de forma isolada, pois as repercussões das intervenções antrópicas sobre essas áreas desbordam, quase sempre, do eixo local."
[5] Vale destacar que, para o ministro relator, o entendimento fixado não é afetado pela nova redação dada pela Lei nº 13.913/2019, que suprimiu a expressão "salvo maiores exigências da legislação específica" do inciso III, do artigo 4º, da Lei de Parcelamento do Solo Urbano, precisamente em função do critério da especialidade cuja observação demonstra que o normativo do novo Código Florestal é o que garante maior proteção ao meio ambiente, em áreas urbana e rural, e à coletividade.
[6] Respectivamente, Tema de repercussão geral n° 999/STF e Súmula 613 do STJ.
Revista Consultor Jurídico, 20 de maio de 2021, 17h08
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