Ivan Martins
Ele existe, mas é uma coisa obsoleta
IVAN MARTINS
É editor-executivo de ÉPOCA
É editor-executivo de ÉPOCA
No dia de Natal revi Volver,
do Almodóvar, na casa da minha mãe. Confirmou-se a impressão que eu já
tinha: o filme é um majestoso manifesto anti-homens. As mulheres são
criaturas coloridas, dignas, corajosas e lutadoras. Os homens são
canalhas inúteis e sombrios, que estupram ou tentam estuprar as próprias
filhas. Merecem ser mortos. E são.
Almodóvar não está sozinho.
O filme americano Minhas mães e meu pai,
da diretora Lisa Cholodenko, sugere coisa parecida. Apresenta um casal
de lésbicas com dois filhos adolescentes que entra em convulsão quando o
menino e a menina conhecem o sujeito que doou o sêmen para que eles
fossem concebidos. Essa presença masculina arrebenta a família. Ao fim
do filme, o “doador de sêmen” (para que mais servem os homens?) é
expulso como um invasor destrutivo, um germe egoísta e inconsequente.
Esses dois filmes fazem parte do que eu identifico como um
movimento de ataque ao masculino. Homens são violentos, homens são
egoístas, homens são negligentes. Homens têm de ser educados e
domesticados pelo bem da sociedade. Homens têm de ser controlados.
Será mesmo?
Ontem eu comecei a ler a biografia de Barack Obama, escrita pelo jornalista David Remnick. Chama-se A Ponte,
e foi publicada pela Companhia das Letras. Ali se aprende que o pai do
presidente dos Estados Unidos era um economista queniano que caberia
direitinho no perfil de homem-bicho-papão. Um sedutor ególatra e
falastrão, ele enganou três mulheres, casou com as três, fez filhos com
todas e não cuidou de ninguém além dele mesmo.
Como ele, há milhões de homens soltos pelo mundo, vários deles na nossa vizinhança geográfica e existencial.
Então eu penso no Obama filho, que parece ser um pai amoroso, um
marido dedicado e um cidadão preocupado em transformar o mundo em que
vive. Ele é da minha geração, que mudou muito em relação à geração dos
nossos pais. Os homens mais jovens, de 20 e 30 anos, estão literalmente
reinventando as relações de família – são presentes, participativos,
envolvidos de modo prático e afetivo com a casa e os filhos. São os
homens novos, sobre os quais eu já escrevi nesta coluna.
É injusto tratar esse macho solidário como se ele fosse o mesmo
predador social das gerações anteriores. Injusto e incorreto.
Tenho a impressão de que por trás desse discurso antimasculino
existe (além da incompreensão da mudança) o ressentimento e o medo
provocado por um fato da vida: os homens vivem há mais tempo e de forma
muito mais profunda a sua própria liberdade. Têm há séculos o poder de
escolher o que fazer com a própria existência, de forma radical. Isso
está impregnado na cultura masculina.
Ao
contrário das mulheres, que têm vivido cercadas por amarras sociais e
biológicas, os homens sempre puderam ficar no casamento ou sair andando.
Cuidar dos filhos ou virar as costas. Dedicar-se à família ou encher a
cara. Arar o campo ou esmolar na rua. Homens puderam ser Buda, Stalin ou
Paulo Leminski. Ou ninguém.
Essa liberdade faz
dos homens seres humanos menos previsíveis e muitas vezes menos
responsáveis do que as mulheres. Assustadores, às vezes.
Quem era o pai do bebê que a garota de Belém jogou no quintal do
vizinho na noite de Natal? Ninguém pergunta. Para todos os efeitos, o
bebê era apenas dela. A maternidade é um fato biológico, enquanto a
paternidade (até mesmo isso) pode ser apenas uma escolha social.
Algum filósofo já disse que o valor moral das virtudes
obrigatórias é baixo. O que vale são escolhas feitas em liberdade e
relativo destemor. Os homens têm vivido com isso há muito tempo. Agora
as mulheres estão chegando à mesma situação.
Suspeito que a compreensão mútua vai melhorar. Os homens parecem estar
abraçando de forma voluntária as responsabilidades históricas das
mulheres, enquanto as mulheres exploram com menos temor a liberdade que
agora pertence a elas.
Já não me parece o caso
de insuflar um movimento antimasculino. Precisamos de um movimento por
seres humanos solidários e responsáveis. De qualquer sexo. De todos os
sexos.
(Ivan Martins escreve às quartas-feiras)
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