“The best way to destroy an enemy
is to make him a friend”.
Abraham Lincoln
Nos últimos anos o noticiário brasileiro se viu inflado com informações sobre grandes operações policiais que levaram à prisão diversas personalidades do mundo empresarial e político. Nesse contexto de ganho de notoriedade da atuação policial intransigente, as diversas instâncias do judiciário também foram alçadas à fama.
A ciência jurídica foi levada às massas junto com a incessante cobertura midiática do processo penal. Como ponto mais alto da exposição jornalística do direito, é possível destacar a operação “lava jato”, que deixa às claras os mecanismos jurídicos utilizados para desmantelamento do crime organizado.
Sem sombra de dúvidas, os procedimentos conduzidos pelo juiz Sergio Moro foram os propulsores de uma mudança na mentalidade do cidadão brasileiro a respeito da criminalidade econômica organizada e das suas mazelas para com a sociedade. Em especial, serviu de alívio para suprimir a constante impunidade que envolvia esse tipo de delito.
Na cruzada promovida pela Justiça Federal de Curitiba, um instrumento jurídico se mostrou extremamente eficiente na busca de provas dos atos criminosos praticados. Independentemente da compreensão sobre a questão moral inserida na utilização do mecanismo, a cooperação premiada (popularmente conhecida por “delação premiada”) foi decisiva no caso em questão.
Inserida no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei 12.850/2014, a cooperação premiada serve ao acusado que, na previsão de uma penalidade, forneça informações concretas sobre a organização que faz parte, inclusive apontando as formas de crimes praticados, bem como a hierarquia presente no grupo. Sendo o relato consistente, o membro do Ministério Público poderá sugerir a não aplicação de uma pena, a aplicação de uma sanção restritiva de direitos ou de sanção com tempo reduzido de reclusão, cabendo ao juiz homologar ou não o acordo.
Como se viu, a cooperação foi essencial para a ruína de organizações que causaram grande mal ao país, bem como lesaram em grande monta os cofres públicos. Consideramos esse período como a “primeira onda” de aceitação pública dos mecanismos extraordinários de investigação criminal, sendo a configuração da colaboração (delação) o seu pico.
A analogia com a onda não é por acaso. Do mesmo modo que a ondulação marítima, o expediente apresentado passará por revisões e, possivelmente, deixará de ter seu uso massificado. Alguns motivos fazem crer nesse cenário.
Preliminarmente, no caso concreto, a colaboração restará vencida pelo elemento que lhe faz tão peculiar, qual seja, a confiabilidade na palavra do delator. O mecanismo de prova se satisfaz com a confissão de crimes e a exposição clara e efetiva das tramoias envolvendo o delito. Assim, nesse sentido, é fundamental que o delator preste um depoimento confiável, certeiro e que se mostre coerente com o arcabouço probatório colacionado até aquele momento. Pela experiência observada na operação "lava jato", não teremos uma disseminação de honestidade. Ao contrário! Muitos dos delatores mudaram suas versões apresentadas durante o processo.[1]
Ainda que o termo de colaboração seja apenas um meio de prova, entendemos que é extremamente danosa quando originada em depoimento falso, haja vista que pode culminar em medidas restritivas (por exemplo, sequestro de bens e buscas e apreensões), ou ainda prisões preventivas e conduções coercitivas, causadoras de grave constrangimento ilegal ao indivíduo investigado.
Ademais, acreditamos que a colaboração premiada perderá espaço em virtude de sua massificação e utilização desenfreada. Explicamos: a partir do momento em que muitos investigados se utilizam do instrumento, a tutela penal não fará sentido, não ocasionando em benefício social, salvo a busca pela verdade real dos fatos.
A operação "lava jato" demonstra bem as mazelas de um procedimento fundamentado e inundado por delações premiadas. Como se viu naquele conjunto de procedimentos, muitos políticos, empresários e executivos se valeram do instituto e (a grande maioria) foi agraciada com diminuições expressivas na pena privativa de liberdade. Nesse sentido, em que vale a exposição da verdade fática se um número elevado daqueles responsáveis diretos pelos delitos (e que gozaram dos benefícios de sua conduta delituosa) não foram punidos?
As “falhas” do mecanismo corroboram o pensamento de que seu uso será limitado no futuro próximo, subsistindo apenas quando estritamente necessário e com poucos atores envolvidos.
Ao passo em que a colaboração será restringida no dia-a-dia forense, acreditamos no incremento significativo da inteligência policial para a produção de provas, em especial a utilização de métodos atualizados permeados pelo avanço tecnológico[2]. Neste ponto, acreditamos que outro mecanismo ganhará contornos importantes e se mostrará como uma nova “onda” no combate ao crime organizado, qual seja, a infiltração de agentes.
Nos moldes da colaboração premiada, a infiltração de agentes teve seus meandros expostos na Lei n° 12.850/15. Ainda que já presente no ordenamento jurídico[3], apenas com a edição da citada norma referido tema foi regulamentado, sendo possível a observação de suas especificidades e as hipóteses de cabimento.
A infiltração há tempos galgou espaço no ideário popular, seja por influência da cultura pop, dos shows televisivos norte-americanos que registravam a atuação das agências de repressão ao crime, ou pela teledramaturgia hollywoodiana. Ocorre que, apesar da fantasia envolvendo a figura de um agente atuando no seio de um grupo criminoso, a realidade demonstra que o método é extremamente eficaz na produção de provas robustas acerca da materialidade do crime e da autoria delitiva.
O sucesso da empreitada reside em alguns fatores:além da obediência estrita aos ditames da lei e ao comando da operação de infiltração, apontamos o comprometimento do agente e o sigilo das investigações como elementos fundamentais para o sucesso do ato.
Caso famoso ocorrido nos Estados Unidos da América demonstra o nível de profissionalização do instituto e do comprometimento do agente. Um membro do Departamento Federal de Investigações (FBI) penetrou em uma das mais antigas famílias ítalo-americanas do crime de Nova Iorque (Famiglia Gambino), devido ao seu porte físico avantajado, modo de falar (forte sotaque italiano) e forma como guardava seu dinheiro e documentos pessoais (enrolava-os com o auxílio de um elástico usualmente utilizado para agrupar talos de brócolis nos supermercados da cidade de Nova Jersey). Através dessa conduta ganhou a confiança da chefia do grupo, fato que auxiliou na coleta de evidências criminais.
No mesmo caso, o sigilo da longa operação garantiu que o agente contemplasse seus superiores com informações precisas e relevantes sobre o modo como aquele grupo atuava. Ele acabou se tornando uma peça importante na Famiglia, resultando no íntimo conhecimento de suas entranhas e, consequentemente, no desmantelamento do grupo e na expedição de diversos decretos prisionais.[4]
Aproximando o exemplo à realidade brasileira, imaginamos o quão bem-sucedida seria a iniciativa em operações como a Lava-Jato. Ora, a figura de um agente infiltrado não só garantiria bases sólidas sobre a materialidade criminosa, como também afirmaria categoricamente a autoria, sem qualquer dúvida ou desvio ocasionado pelo relato desviado de um delator desonesto.
O sucesso em potencial das operações infiltradas, juntamente com a possível decadência da colaboração premiada, servirá como estímulo para a sua utilização, mas para isso é necessária a observância de seus requisitos.
Os artigos 10 a 14 da norma brasileira estabelecem os termos em que a infiltração se dará. A partir da leitura dos dispositivos é possível concluir o seguinte: (I) o agente infiltrado deverá pertencer aos quadros de um grupamento policial; (II) a medida somente se dará após autorização judicial, mediante representação do delegado de polícia ou requerimento do membro do Ministério Público; (III) caberá ao juiz determinar os limites da infiltração; (IV) o ato terá prazo de 6 (seis) meses, com possibilidade de renovação, desde que fundamentada sua necessidade; e (V) é extinta a culpabilidade do agente que cometer crimes durante a infiltração, desde que demonstrada a proporcionalidade do ato em face do delito sob investigação.
Logicamente que a infiltração representa grande interferência do Estado na vida particular. Ter um agente estatal participando do cotidiano do cidadão lembra-nos um controle exacerbado sobre as liberdades individuais. Entretanto, a característica excepcional da medida justifica sua realização, acarretando mais benefícios do que malefícios. Como disposto na própria norma, a infiltração somente poderá subsistir quando não for possível a obtenção de provas por nenhum outro meio possível, ou seja, em nítida posição subsidiária em virtude de sua especificidade.
Apesar de entender que o instituto sob estudo será utilizado de forma mais incisiva nos próximos anos, não é possível admitir que seu uso seja supedâneo para o rebaixamento de direitos e garantias individuais. Nesse contexto, o sigilo do mecanismo não pode subjugar o contraditório e a ampla defesa. Ainda, o resultado da infiltração (aí entendido todos os relatórios e as provas obtidas – áudios, vídeos, documentos) deve ser submetido à avaliação da defesa. Mesmo sendo eficaz no combate à criminalidade organizada, a infiltração não é absoluta, necessitando de análise externa quanto à sua parcialidade e coerência. Imaginemos uma situação em que o agente infiltrado fomente a realização de crimes, ou que apenas relate fatos delituosos cometidos por alguns membros do grupo, ocultando outros? Assim teríamos um mal maior patrocinado pelo Estado!
Dessa forma, à defesa caberá avaliar oportunamente todo o material produzido no ato e examinar a sua legalidade e constitucionalidade. .
Assim, diante de todo o exposto, concluímos e apostamos que a próxima onda no combate à criminalidade organizada será protagonizada por uma maior organização dos entes policiais, que se utilizarão do expediente do agente infiltrado para desmantelar organizações criminosas. Esperamos, contudo, que essa onda não acabe por atingir o due process of lawconsolidado a duras penas no Brasil.
[1] Citamos, por exemplo, o depoimento (já público) do delator Sr. Fernando Moura Hourneaux: . Acesso em 20 de maio de 2016.
[2] Análise informática, criptografia e o uso do ácido desoxirribonucleico (DNA) como elemento científico primordial (inclusive já foi criado banco de dados para a sistematização de informações sobre perfil genético como forma de identificação criminal – Lei n° 12.654/2012).
[3] A infiltração já havia sido introduzida no ordenamento pátrio por meio das Leis n° 9.034/95, 10.217/01 e 11.343/2006.
[4] Notícia obtida no sítio da rede televisiva estadunidense CBS: Acesso em 18.05.2016.
Gabriel de Freitas Queiroz é advogado, graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), pós-graduado em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e auxiliar de ensino na disciplina de Direito Processual Penal na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Revista Consultor Jurídico, 28 de maio de 2016, 8h30
Nenhum comentário:
Postar um comentário