Polêmica
Em novo livro, o filósofo e neurocientista americano Sam Harris propõe a criação de uma 'ciência da moralidade' para acabar de uma vez por todas com a influência da religião
Marco Túlio Pires
"A tolerância à intolerância nada mais é do que covardia"
"Na ciência não existem dogmas. Qualquer afirmação pode ser contestada de maneira sensata e honesta"
"O Papa é culpável pelo escândalo do estupro infantil dentro da Igreja Católica"
—Sam Harris
Quando o filósofo americano Sam Harris soube que o atentado ao World
Trade Center em Nova York (Estados Unidos), no dia 11 de setembro de
2001, teve motivações religiosas, a briga passou a ser pessoal. Harris
publicou em 2004 o livro A Morte da Fé (Companhia das Letras) —
uma brutal investida contra as religiões, segundo ele, responsáveis
pelo sofrimento desnecessário de milhões. Para Harris, os únicos anjos
que deveríamos invocar são a ‘razão’, a ‘honestidade’ e o ‘amor’.
"A Ciência é capaz de dizer o que é certo e o que é errado", diz Sam Harris
Ao entrar de cabeça em um assunto tão delicado, o filósofo de 43 anos
conquistou uma legião de inimigos e deu início a uma espécie de combate
literário. Em resposta à repercussão de seu primeiro livro, que levou à
publicação de livros-resposta sob as perspectivas muçulmana, católica e
outras, os ataques de Harris à fé religiosa continuaram em 2006, com o
lançamento do livro Carta a Uma Nação Cristã (Companhia das Letras).
Criado em um lar secular, que nunca discutiu a existência de Deus e
nunca criticou outras religiões, Harris recebeu o título de Doutor em
Neurociência em 2009 pela Universidade da Califórnia (Estados Unidos). A
pesquisa de doutorado serviu como base para seu terceiro livro, lançado
em outubro de 2010: The Moral Landscape (sem edição brasileira). Nele, Harris conquista novos inimigos, dessa vez cientistas.
Agora, Harris tenta utilizar a razão e a investigação científica para
resolver problemas morais, sugerindo a criação do que ele chama de
"ciência da moralidade". Ele afirma que o bem-estar humano está
relacionado a estados mentais mensuráveis pela neurociência e, por isso,
seria possível investigar a felicidade humana sob essa ótica — algo com
que a maioria dos cientistas está longe de concordar.
A ciência da moralidade substituiria a religião no papel de dizer o que
é bom ou mau. Esse ‘novo ateísmo’ rendeu a Harris e outros três autores
proeminentes — Daniel Dennet, Richard Dawkins e Christopher Hitchens — o
título de 'Cavaleiros do Apocalipse'.
Em entrevista ao site de VEJA, Harris explica os pontos mais sensíveis
de sua argumentação, e afirma que descrer de Deus é um atalho para a
felicidade.
Por que a moralidade e as definições do bem e do mal não deveriam ser deixadas para a religião?
O problema com relação à Religião é que ela dissocia as questões do bem
e do mal da questão do bem-estar. Por isso, a religião ignora o
sofrimento em certas situações, e em outras chega a incentivá-lo.
Deixe-me dar um exemplo. Ao se opor aos métodos contraceptivos, a
doutrina da Igreja Católica causa sofrimento. É coerente com seus
dogmas, embora eles levem crianças a nascerem na pobreza extrema e
pessoas a serem infectadas pela aids, por fazerem sexo sem camisinha.
Através das eras, os dogmas contribuíram para a miséria humana de
maneira tremenda e desnecessária.
Nem toda moralidade é baseada em religião. Existe uma longa
tradição de pensamento moral secular por meio da filosofia. O que há de
errado com essa tradição? Não há nada de errado com ela a não
ser o fato de que a maior parte das discussões filosóficas seculares são
confusas e irrelevantes para as questões importantes na vida humana.
Deveria ser consenso o apreço ao bem-estar humano. Se alguma coisa é má,
é porque ela causa um grande e desnecessário sofrimento ou impede a
felicidade das pessoas. Se alguma coisa é boa, é porque ela faz o
contrário. Mas existem filósofos seculares batendo cabeça em debates
entediantes, dizendo que não podemos falar de verdade moral. Segundo
eles, cada cultura deve ser livre para inventar seus ideais morais sem
ser perturbado por outros. Isso é loucura. Hoje reconhecemos que a
escravidão, que era praticada por muitas culturas, era fonte de
sofrimento. Nesse caso, deixamos para trás o relativismo. Por que não
podemos fazer o mesmo em outros casos?
Você parece sugerir que a tolerância a outros credos não é uma virtude, como a maioria pensa. Por quê?
É um posicionamento inicial muito bom. A tolerância é a inclinação para
evitar conflito com outras pessoas. É como queremos que a maioria se
comporte a maior parte do tempo quando se depara com diferenças
culturais. Mas quando as diferenças se tornam extremas e a disparidade
na sabedoria moral se torna incrivelmente óbvia, então, a tolerância não
é mais uma opção. A tolerância à intolerância nada mais é do que
covardia. Não podemos tolerar uma jihad global. A ideia de que
se pode chegar ao paraíso explodindo pessoas inocentes não é um arranjo
tolerável. Temos que combater essas coisas por meio da intolerância às
pessoas que estão comprometidas com essa ideologia. Não acredito que
seria possível sentar à mesa com, por exemplo, Osama Bin Laden e
convencê-lo que a forma como ele enxerga o mundo é errada.
Por que a ciência deveria ditar o que é certo e o que é errado?
Temos que reconhecer que as questões morais possuem respostas corretas.
Se o bem-estar humano surge a partir de certas causas, inclusive
neurológicas, quer dizer que existem formas certas e erradas para
procurar a felicidade e evitar a infelicidade. E se as respostas
corretas existem, elas podem ser investigadas pela ciência. Chamo de
ciência o nosso melhor esforço em fazer afirmativas honestas sobre a
natureza do mundo, tendo como base a razão e as evidências.
O que é a ciência da moralidade e o que ela quer conquistar? É
a ciência da mente humana e das variáveis que afetam a nossa
experiência do mundo para o bem ou para o mal. Ela pretende discutir,
por exemplo, o que acontece com mulheres e garotas que são forçadas a
utilizarem a burca [vestimenta muçulmana que cobre todo o corpo
da mulher]. São efeitos neurológicos, psicológicos, sociológicos que
afetam o bem-estar dos seres humanos. Com a burca, sabemos que é
ruim para as mulheres e para a sociedade. Se metade de uma sociedade é
forçada a ser analfabeta e economicamente improdutiva, mas ter quantos
filhos conseguir, fica óbvio que essa é uma estratégia ruim para
construir uma população que prospera. O objetivo é entender o bem-estar
humano. Assim como queremos fazer convergir os princípios do
conhecimento, queremos que as pessoas sejam racionais, que avaliem as
evidências, que sejam intelectualmente honestas e que não sejam guiadas
por ilusões. A Ciência da Moralidade pretende aumentar as possibilidades
da felicidade humana.
O senhor afirma que há um muro dividindo a ciência e a moralidade. No que ele consiste?
Existem razões boas e ruins para a existência desse muro. A boa é que
os cientistas reconhecem que os elementos relevantes ao bem-estar humano
são extremamente complicados. Sabemos muito pouco sobre o cérebro, por
exemplo, para entender todos os aspectos da mente humana. A ciência
espera um dia responder essas questões e isso é muito bom. A razão ruim é
que muitos cientistas foram confundidos pela filosofia a pensar que a
ciência é um espaço sem valores. E a moralidade está, por definição, na
seara dos valores. Esse muro não será destruído enquanto não admitirmos
que a moralidade está relacionada à experiência humana, que por sua vez
está relacionada com o cérebro e com a forma pela qual o universo se
apresenta. Ou seja, por elementos que podem ser investigados pela
ciência.
Quais avanços científicos lhe fazem pensar que, agora, a moralidade pode ser tratada a partir do ponto de vista do laboratório?
Temos condição de dizer quando uma pessoa está olhando para um rosto,
ou uma casa, ou um animal, ou quais palavras ela está pensando dentro de
uma lista. Esse nível cru de diferenciação de estados mentais está
definitivamente ao alcance da ciência. Sabemos quando uma pessoa está
sentindo medo ou amor. Por causa disso podemos, em princípio, pegar uma
pessoa que diz não ser racista, colocá-la em um medidor e verificar se
ela está falando a verdade. Não apenas isso, podemos descobrir se ela
está mentindo para si mesma ou para as outras pessoas. A tecnologia já
chegou a esse nível, mas não conseguimos ler a mente das pessoas com
detalhes. É possível que futuramente possamos descobrir coisas sobre a
nossa subjetividade de que não temos consciência, utilizando
experimentos científicos. E isso tudo se relaciona ao bem-estar humano e
o modo como as pessoas ficam felizes e como poderemos viver juntos para
maximizar a possibilidade de ter vidas que valham a pena.
Por que deveríamos confiar a educação dos nossos filhos aos valores científicos? Os cientistas não se transformariam, com o tempo, em algo como padres, mas com uma ‘batina’ diferente?
Cientistas não são padres. Os médicos, por exemplo, agem sob o
pensamento da medicina, que, como fonte de autoridade, não se tornou
arrogante ou limitou a liberdade das pessoas de maneira assustadora. É
uma disciplina que está concentrada em entender a vida humana e
minimizar o sofrimento físico. Seu médico nunca vai até você ‘pregar’
sobre os preceitos da ciência, você vai até ele quando precisa. Pais que
se deixam guiar por dogmas religiosos não dão remédios aos filhos e os
deixam morrer. Na ciência não existem dogmas. Qualquer afirmação pode
ser contestada de maneira sensata e honesta.
Fonte: http://veja.abril.com.br
O que dizer dos experimentos neurológicos que sugerem que a crença religiosa está embutida nos nossos cérebros?
Não acho que a crença religiosa esteja embutida no cérebro humano. Mas
digamos que esteja. Façamos um paralelo com a bruxaria. Pode ser que a
crença em bruxaria estivesse embutida em nossos cérebros. A bruxaria
matou muitos seres humanos, assim como a religião. Todas as culturas
tradicionais acreditaram em algum momento em bruxas e no poder de magia
e, na verdade, a crença na reza possui um conceito semelhante. Algumas
pessoas dizem que sempre acreditaremos em bruxas, que a saúde humana
será afetada pela 'magia' de vizinhos. Na África, muitas pessoas
realmente acreditam em bruxaria e isso é terrível porque causa
sofrimento desnecessário. Quando não se entende porque as pessoas ficam
doentes, ou porque as crianças morrem antes dos três anos, você está num
estado de ignorância que a crença em bruxaria está suprindo uma
necessidade de maneira nociva. Superamos isso no mundo desenvolvido por
causa do avanço da Ciência. Sabemos como a agricultura é afetada, por
exemplo. Entendemos os fenômenos meteorológicos e a biologia das
plantas. Não é algo que a religião resolve, e sim a ciência. Mas
costumava ser assim. A crença na regência de um deus sobre a lavoura era
universal.
As pessoas deveriam parar de acreditar em Deus? Se eu
acho que as pessoas deveriam parar de acreditar no Deus da Bíblia? Com
certeza. Da mesma forma que as pessoas pararam de acreditar em Zeus, em
Thor e milhares de deuses mortos. O Deus da Bíblia tem exatamente o
mesmo status desses deuses mortos. É um acidente histórico estarmos
falando dele e não de Zeus. Poderíamos estar vivendo num mundo onde os
suicidas muçulmanos se explodiriam por causa de ideias dos deuses do
Monte Olimpo. A diferença entre xiitas e sunitas muçulmanos é a mesma
diferença entre seguidores de Apolo e seguidores de Dionísio.
O senhor sempre foi ateu? Nunca me considerei um ateu,
nem mesmo ao escrever meu primeiro livro. Todos somos ateus em relação a
Zeus e Thor. Eu era um ateu em relação a eles e ao deus de Abraão. Mas
nunca me considerei um ateu, como a maioria das pessoas não se considera
pagã em relação aos deuses do Monte Olimpo. Foi no 11 de setembro de
2001, dia do atentado ao World Trade Center em Nova York, que senti que
criticar a religião publicamente havia se tornado uma necessidade moral e
intelectual. Antes disso eu era apenas um descrente. Eu nunca havia
lido livros ateus, ou tivera qualquer conexão com a comunidade ateísta. O
ateísmo não é um conceito que considere interessante ou útil. Temos que
falar sobre razão, evidências, verdade, honestidade intelectual — todas
essas coisas são virtudes que nos deram a ciência e todo tipo de
comportamento pacífico e cooperativo. Não é preciso dizer que você é
contra algo para advogar em favor da honestidade intelectual. Foi
justamente isso que destruiu os dogmas religiosos.
O senhor cresceu em um ambiente religioso? Cresci em
um ambiente completamente secular, mas não havia crítica às religiões ou
discussões sobre ateísmo, existência de Deus etc. Quando era
adolescente, fiquei muito interessado em religiões e experiências
religiosas. Coisas como meditação, por exemplo. Aos vinte, comecei a
estudar espiritualidade e misticismo. Ainda me interesso por essas
coisas, mas acho que, para experimentar, não precisamos acreditar em
nada que não possua evidencias suficientes.
Como o senhor se sente em ser rotulado como um dos ‘Quatro Cavaleiros do Apocalipse’?
Estou muito feliz com a companhia! É uma honra. A associação não me
desagrada de forma alguma. Acho que os quatro lucraram por terem sido
reunidos e tratados como uma pessoa de quatro cabeças. Em alguns
momentos é um desserviço porque nossos argumentos não são exatamente os
mesmos e não acreditamos nas mesmas coisas em todos os pontos. Mas tem
sido útil sob o ponto de vista das publicações e admiro muito os outros
cavaleiros — os considero mentores e amigos. A parte do apocalipse tem
um efeito cômico.
Se o senhor tivesse a chance de se encontrar com o Papa para um longo e honesto bate-papo, qual seria sua primeira pergunta?
Gostaria de falar imediatamente sobre o escândalo do estupro infantil
dentro da Igreja Católica. Acho que o Papa é culpável por tudo que
aconteceu. A evidência nesse momento sugere que ele estava entre as
pessoas que conseguiram fazer prolongar o sofrimento de crianças por
muitos anos. Acho que ele trabalhou ativamente para proteger a Igreja do
constrangimento e no processo conseguiu garantir que os estupradores
tivessem acesso às crianças por décadas além do que deveria ter sido. O
Papa deveria ser diretamente desafiado por causa disso. Contudo, é algo
que seu status como líder religioso impede que aconteça. Ele nunca seria
protegido dessa forma se ele estivesse em qualquer outra posição na
sociedade. Imagine o que aconteceria se descobrissem que o reitor da
Universidade de Harvard [uma das universidades americanas mais
respeitadas do mundo] tivesse permitido que empregados da universidade
estuprassem crianças por décadas e ele tivesse mudado essas pessoas de
departamento para protegê-las da justiça secular? Ele estaria na cadeia
agora. E isso é impensável quando se fala do Papa. Isso acontece por que
nos ensinaram a tratar a religião com deferência.
Fonte: REV. VEJA
Fonte: REV. VEJA
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