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quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

O diabo que nos impariu




HELDER OLIVEIRA


Imparidades é nome técnico mas é de perdas que falamos quando os bancos colapsam, o Estado ajuda e os prejuízos se avolumam. Como os bancos destruíram 40 mil milhões debaixo do seu nariz



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Infografia


Sabe o que vale 40 mil milhões de euros? Os bancos portugueses também não sabiam, pelo que tiveram de abatê-los nos seus balanços nos últimos oito anos. Houve perdas enormes, que destruíram poupança, riqueza e capital. Use a escala que quiser, é sempre uma enormidade: são quatro meses de PIB, uma vez a meia a “pipa de massa” que Durão Barroso chamou aos fundos de Bruxelas para Portugal de 2014 a 2020, equivale a cinco anos de orçamento da Saúde, daria para comprar 400 mil Ronaldos e, se os enfileirássemos em moedas de um euro, daria para mais de duas voltas à Terra. Ou para um colar que fosse e voltasse à Lua, levado por um vaivém, nome escolhido para as naves que não se sepultam no espaço. Os vaivéns vão e voltam. Como as crises financeiras. Mas aprendem pelo caminho. Como nas crises financeiras.


O PROCESSO

Um. Imagine que, no calor da explosão do crédito à habitação, comprou uma casa por 200 mil euros com um financiamento bancário de 160 mil euros. A casa foi então avaliada pelo banco pelos 200 mil euros e o imóvel foi aceite como garantia (ou seja, como colateral ou hipoteca) do crédito. Mais tarde, quando o mercado do crédito à habitação esfria, as regras do Banco Central Europeu obrigam a que o banco reconheça que o imóvel afinal não vale 200 mas sim 150 mil euros. A diferença entre os 200 mil (valor original no balanço do banco) e os 150 mil (novo valor) é uma imparidade. Não pense que o caso é isolado: nos últimos anos, os bancos baixaram os valores de imóveis contabilizados nos livros em milhares de milhões de euros. Quando, em cima disso, o cliente não paga o crédito, o banco fica com a casa e, se a vende por menos do que a dívida, como aconteceu muitas vezes nos últimos anos, a diferença é prejuízo do banco.

Dois. Imagine agora que compra grandes quantidades de ações de empresas em Bolsa com crédito do banco, que aceita as próprias ações como garantia. Quando as ações desvalorizam, o que acontece? Isso mesmo: uma imparidade. Foi o que aconteceu em muitos casos no final da década passada, sendo o caso mais tonitruante o de Joe Berardo, que chegou a ter dívidas de mil milhões de euros para comprar ações cujo valor derreteu. As ações do BCP chegaram a ser compradas por 3,9 euros (cotação ajustada a acontecimentos posteriores). Hoje valem... cinco cêntimos. Estas imparidades monumentais, de quase 90%, já foram em regra assumidas nas contas dos bancos. Assim como os prejuízos, que ocorreram quando os devedores não pagaram o que deviam. Sim, Joe Berardo foi um desses casos. Mas só um.

Três. Agora puxe muito pela imaginação. Mesmo muito. Vale a pena o esforço, pois aqui se explicará grande parte dos últimos prejuízos bancários. Imagine que cria uma sociedade que compra um terreno, para construir um hotel ou um prédio, e que o faz com crédito do banco, que aceita o terreno e o hotel que ainda nem está construído como garantias. Depois, imagine que nem sequer constrói o hotel ou, construindo-o, que ele fica tão caro que o dinheiro gerado pela sua exploração não basta para pagar as dívidas. Bom, então o terreno não valia tanto como o banco contabilizou no balanço... é uma imparidade. E se a dívida não for paga, o banco fica com o terreno e com hotel, que acaba por vender por muito menos: é um prejuízo. Espere, não corte ainda o fio da imaginação, esta história continua já a seguir. Mas para já fique a saber que houve centenas de casos como este, que o país ficou cheio de terrenos de empresas falidas e com estaleiros de obras paradas de hotéis e de prédios. Vamos, puxe ainda mais pela imaginação, imagine que o mundo não é feito só de pessoas boas e prepare-se para entrar no lado negro dos negócios.
A FRAUDE DA DÉCADA

O esquema está desenhado mais abaixo de uma forma simplificada e, nos parágrafos que se seguem, ganha contornos mais complicados. Deixe de imaginar que o caso é seu, afinal ninguém faria semelhante coisa, mas admita que um empresário imaginário percorre os passos que levam ao último tipo de imparidade explicado infra, a do terreno para construir um hotel ou um edifício. O empresário é imaginário mas a reconstituição feita pelo Expresso resulta da confrontação de várias fontes, de bancos, de reguladores, da academia, avaliadores, advogados, financeiros.

O empresário imaginário compra um terreno para construir um hotel ou um edifício por um milhão. Depois, vende o mesmo terreno por cinco milhões a uma sociedade imobiliária, que ele próprio controla, em conjunto com vários cúmplic... sócios. Essa sociedade tem como único objeto a gestão do projeto de construção, como único ativo o terreno e como único passivo uma dívida: a compra por cinco milhões é feita com crédito do banco, que aceitou o terreno como garantia, e que financiará a construção subsequente em face de um plano de negócios que prevê receitas elevadas no futuro com a exploração do hotel ou com a venda de apartamentos ou escritórios do edifício. A construção começa e o empresário imaginário e os seus sócios inventam mais um expediente para lucrar, criando um intermediário entre a sociedade que está a construir o imóvel e os fornecedores.

Por cada 100 euros que compra de cimento, de ferro, de mosaicos ou de caixilharias a fornecedores, esse intermediário cobra 110 euros à sociedade imobiliária. O lucro da intermediação, de 10%, fica no intermediário. Ou seja, nos bolsos do empresário imaginário & sócios. Ou melhor, em contas offshore. Como se percebe, o empresário lucrou quatro milhões com o terreno inicial e 10% do custo da obra, dinheiro que esconde do fisco num paraíso fiscal e que mais tarde “lava” no Regime Excecional de Regularização Tributária: houve três RERT na última década, que amnistiaram quase seis mil milhões de euros que estavam irregularmente depositados no estrangeiro, grande parte dos quais na Suíça. O problema é que este lucro do empresário imaginário inflacionou o custo de construção de tal forma que o projeto se tornou inviável: as receitas das vendas dos apartamentos ou das diárias dos hotéis são insuficientes.

Quando chega a hora de pagar a dívida, o dinheiro não chega. Até porque o banco deu, no início, uma carência de cinco anos para dar tempo à construção: durante todo esse tempo, o empresário não teve de pagar, embora o banco registasse todos os meses a receita dos juros que seriam pagos mais tarde. O pior cenário concretiza-se: a sociedade abre falência, o banco fica com o terreno e o imóvel em dação de pagamento, tem de anular os juros contabilizados nos anos anteriores (um prejuízo), é obrigado a registar a imparidade nas contas até que, mais tarde, vende o terreno e o imóvel a um novo comprador, por muito menos do que o crédito inicial (outro prejuízo). Como a dívida do novo comprador é menor, o hotel já é viável.

A falha neste processo está na concessão do crédito. Por que razão o banco concedeu um crédito inicial tão acima do que os valores de mercado recomendavam? Há duas respostas: a benigna é excesso de otimismo na avaliação do projeto de investimento, tendo-se acreditado que ele geraria receitas que não se confirmariam; a segunda é maligna, ter havido troca de favores ou mesmo de dinheiros. No caso do Banco Espírito Santo, sabe-se hoje, vários dos maiores clientes do banco eram acionistas do Grupo Espírito Santo, perguntando-se se havia correlação entre uma coisa e outra: os clientes do BES tinham facilidades no acesso ao crédito em troca de investirem no GES? Ou, inversamente, por serem acionistas do GES tinham preferência no crédito do BES? Outra pista: lembra-se do presente de 14 milhões de José Guilherme a Ricardo Salgado? O construtor tinha vários empréstimos do BES para projetos imobiliários mas o antigo líder do império BES sempre negou qualquer relação ou que a prenda fosse uma comissão.

Quantos presentes terão sido trocados entre empresários e banqueiros? Quantos se ajudaram em benefício recíproco mas em prejuízo do banco?


O empresário do negócio anterior era imaginário mas também pode ser imaginado. A banca não era essencialmente este negócio mas foram muitos destes negócios que rebentaram como persistentes bombinhas nas contas dos bancos. Sobretudo em cinco bancos, BES, CGD, BCP, Banif e BPN. BPI e Santander, os outros “grandes”, tinham muito menos crédito à construção e imobiliário. Por alguma razão, os seus nomes não estão nos escândalos financeiros dos últimos oito anos (ver texto relacionado).

Quando o Expresso revelou no início do verão deste ano quais eram os 50 maiores devedores do BES antes do colapso (ver texto relacionado), mostrou que eles agregavam mais de 700 empresas que tiveram um crédito total de dez mil milhões de euros. Muitas dessas empresas faliram, em prejuízo do então ainda chamado BES, que ora é nome de banco mau. O peso de construtores e promotores imobiliários nessa lista de 50 é avassalador, incluindo o Grupo Mota-Engil, que era chamado “construtora do regime” na década passada, e o Grupo Lena, que foi colocado sob suspeita pelo Ministério Público num alegado esquema de favorecimentos envolvendo José Sócrates.

Mas se muitos dos maiores devedores ao BES são conhecidos, a maioria dos “50 mais” nunca teve notícia em jornal. Sabe quem é Emídio Catum? É um desses empresários da construção, que estava na lista de créditos do BES com empresas que entretanto faliram. Curiosamente, Catum também estava na lista dos maiores devedores ao BPN, com empresas de construção e imobiliário que também faliram.

Há várias empresas ligadas ao grupo SLN e aos empresários Emídio Catum e Fernando Fantasia no rol dos perdidos do BPN, tento entrado dezenas de processos em tribunal contra eles. O padrão é o mesmo: empresas pedem créditos, não os pagam, vão à falência, têm administradores judiciais (nas empresas de Catum, o mesmo administrador judicial “gere” a massa falida de várias), não pagam nem têm mais ativos para pagar, o prejuízo fica no banco, o banco é intervencionado, o prejuízo passa para o Estado. E dezenas de terrenos à volta de Lisboa ficam abandonados. No BPN, mais de 500 grandes clientes com dívidas superiores a meio milhão de euros deixaram de pagar. Muitos deles entraram em insolvência e como tinham poucas ou nenhumas garantias, as hipóteses de recuperação do crédito mesmo com ações interpostas nos tribunais são reduzidas.

Outro caso famoso é o de Luís Filipe Vieira, atual presidente do Benfica, cujas empresas deixaram uma dívida de 17 milhões do BPN à Parvalorem, do Estado, e acumulavam 600 milhões de crédito ao BES, parte dos quais sairiam para uma seguradora do grupo. Note-se que nem todos os casos acabam mal. Carlos Saraiva acumulou uma dívida de quase mil milhões a vários bancos (incluindo BES e BCP), que passaram para o fundo de reestruturação ECS Capital, deixando prejuízos nos bancos (e nos fornecedores). Ainda assim, neste caso a ECS tem concluído vários projetos hoteleiros que está a comercializar, viabilizando-os e evitando “elefantes brancos” espalhados pelo país. Ainda agora abriu em Lisboa o Hotel Palácio do Governador, um cinco estrelas herdado de Carlos Saraiva onde as ervas cresciam e as caves alagavam.

Outro nome que também deixou perdas tanto no BPN como no Novo Banco foi o de Duarte Lima — sim, esta história também tem políticos. Duarte Lima foi condenado em primeira instância a dez anos de prisão por financiamentos do BPN para fins ilícitos para comprar terrenos em Oeiras, tendo recorrido da decisão. Arlindo de Carvalho está acusado de burla, abuso de confiança e fraude fiscal também por ilícitos relacionados com crédito concedido pelo BPN para compra de terrenos. Dias Loureiro foi constituído arguido em 2009 por negócios que envolveram compras de empresas em Porto Rico e Marrocos, por suspeita de crimes fiscais, falsificação de documentos e burla. Seis anos depois, ainda não foi acusado pelo Ministério Público. Nem o processo arquivado. Estes nomes, a que se juntou o de Oliveira Costa, estão ligados ao PSD, mas outros nomes há ligados ao PS, começando pelo de Armando Vara, que foi condenado em primeira instância a cinco anos de prisão por três crimes de tráfico de influência no âmbito do processo ‘Face Oculta’.

Vara, que recorreu desta condenação, está a também a ser investigado por alegado envolvimento em operações de financiamento do empreendimento de Vale do Lobo. Armando Vara era então administrador da Caixa Geral de Depósitos (seria depois vice-presidente do BCP), que esteve por trás de financiamentos imobiliários e em ações que deixaram um rasto de imparidades e prejuízos. A ligação da então administração ao poder político (José Sócrates era primeiro-ministro) suscitou polémica.
E, PORTANTO, MAIS CAPITAL

As imparidades reduzem o valor do ativo dos bancos; os prejuízos reduzem a sua situação líquida; ambos implicam reforços de capital dos bancos, para cumprir rácios mínimos, cujos níveis foram aliás aumentados pelo Banco Central Europeu. Desde 2008, os bancos portugueses realizaram aumentos de capital no total de quase 14 mil milhões de euros. Além disso, o Estado foi chamado a ajudar com 6,5 mil milhões de euros, parte dos quais ainda não foi devolvida. O desfecho do Banif implicou mais dois mil milhões de euros. O Novo Banco, que será de novo colocado à venda em 2016, recebeu uma injeção de 4,9 mil milhões, quase todos financiados pelo Estado.

Toda esta informação está detalhada em tabelas e gráficos em texto relacionado, que mostram claramente três períodos na banca: fortes lucros entre 2000 e 2007, redução com a crise financeira internacional de 2008 a 2010, e prejuízos após a crise portuguesa de 2011 a 2014. As mesmas informações mostram que, durante duas décadas, mais de um terço dos lucros foi distribuído aos acionistas. É mais do que os mesmos bancos pagavam de impostos.

É possível afirmar que os prejuízos pós-2011 são o reverso dos lucros anteriores.

Conforme se vê noutro gráfico publicado neste trabalho, quase metade dos créditos em incumprimento nos bancos em 2012 tinha sido concedida em 2006, 2007 e 2008. Precisamente anos de fortes lucros. Porque os juros de um crédito, enquanto são pagos, são lucro do banco; quando deixam de ser pagos são prejuízo. O excesso de otimismo na concessão de crédito deu anos de prosperidade aos bancos — e aos seus acionistas; quando os devedores deixaram de pagar, o que foi agravado pela crise financeira e pela recessão, ficaram os prejuízos. É por isso que se pode argumentar que, na verdade, os bancos não andaram a distribuir lucros pelos acionistas, mas sim capital, por terem artificialmente inflacionado os lucros. E por terem recebido prémios de gestão por isso: o caso mais evidente era o do BCP na era de Jardim Gonçalves, quando o banco chegava a distribuir 10% dos lucros pelos seus administradores.
CAPITAL QUE FALTOU

É a dar crédito que os bancos geram lucro e, com a criação do euro, a descida das taxas de juro permitiu um banho de financiamento bancário. Nem tudo são negociatas, os incentivos ao endividamento existiam com um crédito barato e com a pressão dos acionistas dos bancos (que queriam dividendos), destes sobre os administradores (que recebiam prémios) e destes sobre os gestores de balcão (que tinham objetivos) para conceder crédito. As máquinas comerciais venderam cartões de crédito, créditos automóvel e contas-ordenado como se vivêssemos hoje o amanhã. Mas nada foi tão grande como o crédito à habitação, a preços baratíssimos, que deixou um pesado legado: o dinheiro era emprestado com spreads inferiores a 1% a 40 anos, mas como os bancos se financiam a prazos muito inferiores, mais tarde começariam a pagar pelo dinheiro com que se financiavam mais do que pelo dinheiro que emprestaram.

Muitos bancos foram vendendo carteiras de crédito com desconto, antecipando prejuízos. A maioria deixou o problema ser mastigado lentamente ao longo de anos — e anos é o que ainda falta para digerir todo o prejuízo desses créditos tão baratos. Essa perda, somada à dos créditos empresariais por pagar, gerou prejuízos superiores a sete mil milhões de euros depois da intervenção da troika. O processo teve também impactos sociais: desde 2008, quase mil balcões fecharam em Portugal e foram despedidos quase sete mil bancários, contagem que será avolumada com os esperados despedimentos no Novo Banco e no ex-Banif, cujos ativos foram comprados pelo Santander. Na construção, pior, muito pior: nos últimos cinco anos encerraram 36 mil empresas e perderam o emprego 262 mil trabalhadores. Poderia ter sido diferente?
A REGULAÇÃO AOS PAPÉIS

O papel do Banco de Portugal em todos estes anos está no centro no debate. Até 2008, pela “supervisão de secretária”, focada em rácios e em relatórios enviados pelos bancos mas sem “sujar as mãos” dentro dos bancos. Depois do colapso do BPN e do BPP, a pressão social, política e mediática mudou este comportamento, mas mesmo assim os bancos continuaram a endividar-se alegremente até 2011. Hoje, a imagem do Banco de Portugal deixou de ser pura e intocável.

Quando a troika chegou, em 2011, os bancos tinham créditos concedidos muito mais elevados do que os depósitos recolhidos: estavam “alavancados”. Assim se explica que Portugal seja, proporcionalmente, um dos países mais endividados do mundo. A dívida pública é enorme mas a dívida privada é ainda maior. E se a dívida pública dificilmente pode ser paga na totalidade e em condições normais, como mesmo hoje o FMI reconhece, o mesmo se aplica à dívida privada, que também vai sendo reestruturada, mas aos poucos, com sucessões de falências, de imparidades, de prejuízos nos bancos. Só que, a partir de um certo nível, a linha que separa a dívida privada da dívida pública é ténue.

Quando, em 2011, os bancos pressionaram publicamente José Sócrates para pedir ajuda externa, fizeram-no porque as taxas de juro portuguesas estavam altas e a dívida descontrolada. Mas é hoje possível dizer que também o fizeram por necessidade própria. Embora passassem mais de um ano a repetir que o Estado estava mal mas os bancos estavam bem, isso não era verdade. O corte dos ratings oneraria os custos dos bancos, que estavam muito endividados e tinham ativos que hoje sabemos ser tóxicos. Sem apoio do Estado, os bancos não teriam conseguido fazer os aumentos de capital necessários. A relação entre Estado e banca é indissociável, nos dois sentidos.

A intervenção dos poderes públicos no sistema financeiro foi feita devagar, apoiando aumentos de capital sucessivos, o que teve o mérito de não provocar instabilidade no sistema: não houve fuga de depósitos em Portugal, ao contrário do que se passou na Grécia. Mas soluções seguidas noutros países foram mais rápidas. Em Inglaterra, houve nacionalizações. Em Espanha, que tinha um problema imobiliário muito maior, a intervenção foi curta e grossa: criaram-se “bancos maus” para isolar os ativos tóxicos, deles libertando os bancos, que hoje estão recompostos. Em Portugal, esse cenário chegou a estar em cima da mesa em 2011 mas preferiu-se a alternativa que politicamente era menos polémica, mas que não resolveu o problema como se de um penso rápido se tratasse. A separação do BES em banco bom e banco mau, bem como o isolamento dos ativos tóxicos do Banif, seguem já o modelo espanhol. Isolar o mau para não contaminar o bom.
PODE REPETIR-SE?

As crises financeiras são sucessivas ao longo das décadas, formando bolhas de crédito que acabam por rebentar. Mas a mudança da supervisão já em janeiro terá impactos grandes, com a passagem dos maiores bancos portugueses para a alçada da União Bancária. Daí em diante, será o Banco Central Europeu a vigiar esses bancos, impondo rácios de capital apertados, realizando testes de stresse regulares, criando modelos de intervenção pública dissuasores. Vítor Bento dizia há dias que os bancos portugueses vão acabar por ser todos estrangeiros, por falta de capital em Portugal para os controlar. Mas a própria União Bancária terá efeitos nas transferências de capital internas na União Europeia, com provável concentração de bancos em grupos financeiros europeus. Neste momento, já há transferências de movimentos de capital (e de depósitos) para países como a Alemanha, por perceção de segurança do seu sector financeiro, e isso pode deixar os bancos em Portugal cada vez mais regionais.

Deve a regulação intervir de modo a controlar não só a quantidade mas também o tipo de crédito concedido? Nos Estados Unidos, onde a concorrência é desembestada, o banco central controla-o através da observação do cumprimento dos modelos de negócios. Na Europa, o controlo não é feito a esse nível. Mas é exigível que o BCE tenha mecanismos de prevenção de destruição de poupança como a que se verificou em Portugal.

O crédito é um acelerador económico, permite que os jardins da prosperidade floresçam, que as oliveiras medrem, que os dias sejam melhores, mas é também como o sal na comida, mata se tomado desregradamente. Como é que um país se endividou tanto e teve um crescimento económico tão baixo? A resposta está nestas páginas, na concentração da dívida na habitação, no imobiliário, na construção — e na extração por interesses particulares através de práticas irregulares e ilícitas. O que define o desenvolvimento económico é a utilização produtiva da poupança acumulada. Se o crédito é concedido sem assegurar o seu reembolso, como aconteceu em Portugal, há destruição de poupança: 40 mil milhões em menos de uma década. Depois desta devastação, a visão de uns e a supervisão de outros têm a responsabilidade de dar lições em vez de aprendê-las. Para que não haja mais Jardins de má memória, Oliveiras podres, Dias desaparecidos. E para que o Estado não volte a ficar Salgado.

(Nota: este texto foi publicado originalmente no semanário Expresso de 24 de dezembro de 2015, e atualizado online de modo a refletir também o acontecimento posterior da resolução do Banif.)

Fonte: http://expresso.sapo.pt/

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