Em seu novo livro, Ladislau Dowbor oferece chaves preciosas para decifrar a metamorfose do sistema e suas novas formas de dominar e concentrar riquezas. Também sugere: é possível vencê-lo - mas com outros métodos...
Por Antonio Martins, no Outras Palavras.
Cinco
famílias lideradas por homens brancos agora concentram mais riqueza que
metade - 3,5 bilhões - dos habitantes do planeta. Em todo o Ocidente, a
democracia declina e perde apoio porque é vista, cada vez mais, como um
regime dos ricos e corruptos. O aquecimento global já se materializa na
forma de mega-icebergs desprendendo-se da Antártida (sem falar nas
primeiras levas de refugiados climáticos), mas os governantes permanecem
desinteressados ou impotentes. No Brasil, os bancos privados
multiplicam seus lucros em meio à maior recessão da História - e são o
setor mais bem representado em todos os governos, antes e depois do
golpe. Apesar da imensa concentração de riquezas, o sistema vai mal,
deparando-se com taxas de crescimento medíocres e o risco crescente de
uma nova crise financeira, que seria ainda mais devastadora e
possivelmente incontrolável.
O
que estes fatos, aparentemente díspares, têm a ver uns com os outros?
Mais importante: como decifrar os mecanismos que impulsionam em conjunto
todos eles? Será possível revertê-los e escapar de uma armadilha que
parece aprisionar tanto a humanidade quanto a própria ideia de
emancipação social? Encontrar as respostas tem sido, desde a virada do
século, o desafio difuso que persegue ativistas em todo o mundo - e que
mobiliza um punhado de pensadores ligados às lutas sociais. Em A Era do Capital Improdutivo, Ladislau
Dowbor revela que o crescimento abissal das desigualdades, a ausência
de limites para a depredação da natureza e o esvaziamento da política
podem ser faces de um só fenômeno. Uma nova metamorfose do
capitalismo (para usar expressão de Celso Furtado) criou um sistema que
já não pode ser compreendido - muito menos superado - manejando apenas
as chaves analíticas do passado. O autor não se contenta em constatar o
déficit teórico: ele adianta pistas para ultrapassá-lo, ou seja: para
tramar um novo projeto pós-capitalista.
* * *
A natureza mutante do capitalismo já havia sido destacada por Karl Marx. Mais recentemente, François Chesnais formulou, em A mundialização do capital (1988)
e em obras posteriores, a hipótese do declínio do industrialismo e o
surgimento de um "regime de acumulação sob dominância financeira".
Ladislau está de acordo, e oferece farta documentação e dados a
respeito. Para dar ao leitor noção das dimensões do cassino financeiro
global, mostra, por exemplo, que só as transações financeiras com
"derivativos" - aquelas em que não se negociam mercadorias, mas apenas índices (a taxa de inflação, o preço de uma moeda, a cotação de uma commodity) atingiram 710 trilhões de dólares em 2013 - ou 9,6 vezes o PIB mundial naquele ano.
Mas A Era do Capital Improdutivo situa
esta transição num conjunto de outras transformações civilizatórias
marcantes, que se acentuam a partir dos anos 1950. A primeira delas é
uma drástica mudança na arquitetura do poder mundial. Pela vez
desde a Paz de Westphalia (1648), os Estados-Nações estão deixando de
ser os atores centrais. Em seu lugar, emergem as megacorporações globais
- grupos financeiros gigantescos; conglomerados industriais ligados e
eles; um punhado de dealers que controlam o grosso do comércio de alimentos, minérios e combustíveis no planeta.
A
passagem de bastão se dá por dois motivos. Primeiro, a concentração
empresarial, mais intensa que nunca. Apoiado num vasto estudo do
Instituto Federal Suíço para Pesquisa Tecnológica - o renomado ETH -,
Ladislau demonstra que 147 grandes corporações (75% delas financeiras)
controlam hoje, sozinhas, 40% do PIB do mundo. Numa espécie de "núcleo
do núcleo" estão 28 "instituições financeiras sistematicamente
importantes" (SIFIs, em inglês), cada uma das quais tem capital médio de
US$ 1,8 trilhão (superior ao PIB do Brasil, a sétima economia do
planeta).
O
problema não é só o gigantismo. As megacorporações atuam em todo o
mundo, enquanto os Estados-Nações são limitados por fronteiras. Todas mantêm
sedes e filiais em "paraísos fiscais" (um capítulo do livro é reservado
a examiná-los), onde podem articular oligopólios, evadir impostos ou
praticar fraudes "livres" do constrangimento de governos ou Judiciários.
Mais recentemente, diversos acordos comerciais permitem-lhes formar
tribunais paralelos (Investor-State Dispute Settlement, ou
ISDS, em inglês), nos quais podem exigir indenizações de Estados que
adotem normas consideradas hostis a seus interesses (por exemplo, a
redução da jornada de trabalho ou uma nova lei de proteção da
natureza...).
O
resultado é o esvaziamento rápido da democracia. Porque surgiu - acima
dos Estados e com força superior à deles - uma nova esfera global de
poder. Está inteiramente colonizada: em seu interior, o capital reina
absoluto; não há eleições, parlamentos, governos escolhidos pela
sociedade, transparência. Quem conhece a agenda do FMI, ou sabe como
votam os representantes brasileiros na Organização Mundial do Comércio?
Como frisa o autor, "o poder mundial realmente existente está nas mãos
de gigantes que ninguém elegeu e sobre os quais há cada vez menos
controle".
A
terceira grande transformação está ligada às novas relações entre a
natureza, ser humano e conhecimento; ao advento do que passamos a chamar
de Antropoceno. Ladislau insere-se claramente entre os autores que o
veem como resultado do predomínio das lógicas mercantis. O livro
resgata, à página 24 um gráfico desconcertante e pouco conhecido, em que
está representada a evolução de fenômenos normalmente não relacionados:
aumento da população humana, PIB, concentração de CO² na atmosfera,
número de automóveis, consumo de papel, extinção de espécies, destruição
das florestas e outros.
As
curvas são coincidentes: tudo dispara a partir de 1950, num claro sinal
de que entramos em outra fase. O autor analisa: "todos querem consumir
mais, cada corporação busca extrair e vender mais, e tecnologias cada
vez mais potentes permitem ampliar o processo (...) Para a maioria dos
economistas, o crescimento é tão necessário quanto o ar que respiramos".
Duas consequências dramáticas, já visíveis, são o declínio abrupto da
vida marinha e os sinais de uma sexta extinção em massa das espécies:
"em apenas quarenta anos, de 1970 a 2010, destruímos 52% da fauna do
planeta".
A
devastação da natureza é facilitada pelo "avanço" tecnológico, mas em
mais de um trecho o livro demonstra: esta mesma técnica ameaça,
perigosamente, criar uma sociedade cada vez mais desigual e alienada. A
concentração de riquezas é possível, em escala nunca vista, porque um
pequeno número de corporações controla e processa informações sobre os
mercados e inclusive sobre nossas vidas. O sinal mais evidente de que as
questões social e ambiental se entrelaçam está expresso numa formulação
ao mesmo tempo feliz e terrível: "estamos destruindo o planeta (...) de
forma muito particular para o proveito do 1%".
Em
muitos de seus textos recentes, Immanuel Wallerstein tem sustentado que
o capitalismo, tal como o conhecíamos, vive em crise terminal; mas que
não é possível saber, o que o substituirá - e não se deve afastar a
hipótese de que seja um sistema ainda mais desigual, mais hierárquico,
mais alienante e menos democrático. Em seu novo livro, Ladislau Dowbor
parece sugerir que este cenário de pesadelo está sendo montado agora,
diante de nossos olhos.
* * *
O próprio livro fornece, porém,
elementos para enxergar como tal construção é instável; como resta,
portanto, espaço para a resistência e a busca de alternativas. O livro
trata, em especial, de duas vulnerabilidades. A primeira é o declínio do
próprio crescimento econômico - objetivo essencial da lógica mercantil
-, acompanhado de riscos novos de terremotos financeiros avassaladores.
A
concentração de riquezas, explica o autor, acaba convertendo-se num
obstáculo à reprodução do ciclo do capital. Sob o regime de dominância
financeira, cresce o rentismo - a capacidade de apropriar-se da
riqueza social sem nada produzir. O Brasil (a que Ladislau dedica dois
capítulos) é um exemplo extremado. O sistema financeiro estende seus
tentáculos tanto sobre o orçamento público (de onde são desviados R$ 400
bilhões, ou cerca de treze programas Bolsa-Família ao ano) quanto sobre
as famílias e empresas (reduzindo a capacidade de consumo e as margens
de lucro). Em meio ao terceiro ano seguido de recessão, os lucros dos
bancos não cessam de crescer.
Mas
o resultado desta punção é, em todo o mundo, a economia estagnada.
Desde os abalos de 2008, não houve recuperação efetiva. O autor explica,
dando tintas atuais às ideias de Marx sobre as crises de superprodução:
os mais ricos entesouram seu dinheiro; são as maiorias que gastam quase
tudo o que recebem - mas se elas são atingidas pela desocupação e pela
queda dos salários, quem manterá a economia girando? Que empresários
ousarão investir, se os consumidores finais estão quebrados?
A
segunda debilidade crucial é a ineficiência das empresas. Para
desenvolver o tema, Ladislau recorre a seus estudos e experiência como
gestor e planejador - algo raro entre a esquerda. A intensa concentração
empresarial, explica, criou conglomerados enormes e disformes, movidos
cada vez mais pela lógica única da rentabilidade financeira, incapazes
de atender às demandas sociais e mesmo de evitar fraudes e tragédias. O
exemplo emblemático é o do desastre de Mariana: "entre o engenheiro da
Samarco que sugere o reforço na barragem e a exigência da rentabilidade
da Vale, Billiton e Bradesco, a relação de forças é radicalmente
desigual". O resultado é o soterramento do distrito de Bento Rodrigues.
Os
exemplos de ações fraudulentas entre as grandes corporações, aliás,
multiplicam-se. O sistema financeiro é líder, mas a Justiça garante
blindagem: "Praticamente todos os grandes grupos [internacionais] estão
com dezenas de condenações, mas em praticamente nenhum caso houve
sequelas judiciais como condenação pessoal dos responsáveis (...) Basta a
empresa fazer, enquanto pratica a ilegalidade, uma provisão financeira
para enfrentar os prováveis custos do acordo judicial". A velha mídia
cumprirá seu papel, ocultando sempre que possível os crimes e
construindo, contra todas as evidências, a imagem de corporações
responsáveis e de famílias saltitantes, felizes com seu banco. Mas as
enxurradas de publicidade não apagam os fatos: tem futuro um sistema que
não é capaz sequer de cumprir sua promessa de crescimento e eficiência?
* * *
Por
outro lado, é possível enfrentar este capitalismo metamorfoseado com as
ideias e personagens dos séculos passados? Ladislau Dowbor tem pistas
também para esta questão. Em certo trecho, ele recomenda "aos
sindicatos e movimentos sociais" examinar melhor as novas formas de
extração de mais-valia. Explica: "A forma tradicional - o patrão que
produz mas paga mal, ensejando lutas por melhores salários - foi
brutalmente agravada por um sistema mais amplo de extração do excedente
produzido pela sociedade". Nos novos tempos, "todos somos explorados, em
cada compra ou transação, seja através dos crediários, dos cartões,
tarifas e juros abusivos, seja na estrutura injusta da tributação". Há
aqui uma fraqueza por excesso: "O rentismo é hoje, sistematicamente mais
explorador, e pior, um entrave aos processos produtivos e às políticas
públicas. (...) Sua grande vulnerabilidade está no fato de ser
improdutivo, de constituir dominantemente uma dinâmica de extração sem
contrapartida à sociedade".
"Quem
serão os atores sociais" aptos a enfrentar este poder? Pergunta
Ladislau em outro ponto, que talvez merecesse ser mais destacado no
livro. Ele mesmo responde: "Os partidos, os governos - mesmo
democraticamente eleitos - e até os sindicatos estão fragilizados e sem
credibilidade. O que era uma classe trabalhadora relativamente homogênea
e com capacidade de articulação (...) é hoje extremamente diversificada
pela multiplicidade e complexidade de inserção nos processos
produtivos". A esperança estaria numa espécie de novo proletariado, já
entrevisto por autores como David Harvey e Toni Negri: "Os prejudicados
do sistema são a imensa maioria, e não faz sentido o 1% pesar mais que o
99%".
Como inverter a balança - ou seja, como abordar a luta pela emancipação social na Era do Capital Improdutivo? Aqui,
Ladislau destoa tanto do pensamento econômico tradicional quanto de
grande parte dos economistas de esquerda, tão autolimitados pelo mito
segundo o qual "não há orçamento" para atender às demandas sociais. É
preciso, mostra o livro, opor, às lógicas contábeis da "austeridade" e
dos "ajustes fiscais", outras realidades.
"Se
há uma coisa que não falta no mundo são recursos", lembra Ladislau - e
aqui ele parece atualizar a ideia de Marx sobre a contradição entre a
técnica (as "forças produtivas") que avança, e o sistema social (as
"relações de produção") que se vê obrigado a limitá-la - porque podem
ser uma ameaça aos privilégios. O livro ressalta: "O imenso avanço da
produtividade planetária resulta essencialmente da revolução tecnológica
que vivemos. Mas não são os produtores destas transformações que
aproveitam. Pelo contrário, ambas as esferas, pública e empresarial,
encontram-se endividadas nas mãos de gigantes do sistema financeiro, que
rende fortunas a quem nunca produziu e consegue nos desviar
radicalmente do desenvolvimento sustentável, hoje vital para o mundo".
O
autor resgata dados desconcertantes - mas sempre ocultados, porque
incômodos. "Se arredondarmos o PIB mundial para 80 trilhões de dólares,
chegamos a um produto per capita médio de 11 mil dólares. Isto
representa 3.600 dólares por família de quatro pessoas, cerca de 11 mil
reais por mês. É o caso também no Brasil, que está exatamente na média
mundial em termos de renda. Não há razão objetiva para a gigantesca
miséria em que vivem bilhões de pessoas, a não ser justamente o fato de
que o sistema está desgovernado, ou melhor, mal governado e não há
perspectivas no horizonte".
Mas
como ir além do sistema? Ladislau frisa, desde o início, que sua
experiência o ensinou a passar ao largo das ideologias - os "ismos",
como ele as chama. Quer saídas práticas. Porém, a radicalidade do que
propõe, sempre com base em um imenso volume de dados articulados,
convida a especular: tais respostas não cabem no sistema a que estamos
submetidos. Por isso, talvez não haja heresia em dizer que o autor
pratica um "pós-capitalismo discreto". É como se dissesse, à moda de
Leminsky: não se afobem: "distraídos, venceremos".
O
livro termina com o "Esboço de uma Agenda", um brevíssimo ensaio
construído em coautoria com Ignacy Sachs - um dos propositores do
conceito de "ecossociodesenvolvimento - e Carlos Lopes - pesquisador
africano, ex-subsecretário-geral da ONU.
Proposto
em 2010, o rascunho chama a atenção por sua atualidade. Nele, propostas
estruturais - como a instituição Renda Básica da Cidadania, a redução
da jornada de trabalho, a reorganização do sistema financeiro, a
reorientação dos sistemas tributários e a livre circulação do
conhecimento (em oposição à "propriedade intelectual" e aos sistemas de
"copyright") - figuram lado a lado com mudanças de atitude decisivas
(como a "moderação do consumo" e a "generalização da reciclagem).
É
pouco, certamente - e é ótimo que seja assim. Reconstruir um projeto de
emancipação social será obra de multidões e exigirá décadas de
imaginação, sondagens, tentativas, erros, novas reflexões e criações. O
que o livro de Ladislau Dowbor reitera é que o esforço começou; que já
somos capazes de nos perceber submetidos à Era do Capital Improdutivo - mas também de buscar as saídas; que, em oposição ao futuro distópico que hoje nos ameaça, podemos tatear o pós-capitalis
A Era do Capital Improdutivo, de Ladislaw Dowbor é o primeiro livro editado por Outras Palavras, em parceria com a editora Autonomia Literária.
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