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terça-feira, 1 de agosto de 2023
Assim os rentistas cobiçam as águas do mundo
Pesquisadores internacionais advertem: corporações querem envolver a ONU na privatização dos recursos hídricos do planeta. Iniciativa afronta movimentos sociais e indígenas – e tenta apropriar-se da ideia de “bem comum”
Publicado 31/07/2023 às 18:15 - Atualizado 31/07/2023 às 18:50
Por Léo Heller, Meera Karunananthan, Margreet Zwarteveen, David Hall, Mary Ann Manahane e Fatou Diouf
MAIS: Num cenário decisivo para a defesa das águas brasileiras contra a privatização, o Observatório Nacional do Direito á Água e ao Saneamento (Ondas) passou a publicar semanalmente um boletim sobre o tema. A edição mais recente destaca a luta contra a venda da Sabesp, os esforços do grande poder econômico para financeirizar a água, a denúncia do Tribunal de Contas gaúcho contra a privatização da Corsan, a decisão do STF que obriga o governo a abastecer a população de rua, os riscos de privatização da Cemig e Copasa e negação do direito à água aos indígenas do Amazonas, por negligência e ganância da Águas de Manaus, concessionária privada dos serviços. Leia na íntegra aqui.
Título Original: Qua água a Conferência da ONU levará adiante: um direito humano fundamental ou uma mercadoria?
O engenheiro e professor Léo Heller, que foi relator especial da ONU para o Direito à Água publicou, em conjunto com cinco colaboradores internacionais, um texto de comentário na prestigiosa revista acadêmica The Lancet, com o título What water will the UN Conference carry forward: a fundamental human right or a commodity? No artigo, os autores advertem quanto ao risco de os desdobramentos da Conferência da ONU sobre Água, realizada em julho deste ano, adotarem uma visão neoliberal sobre os serviços de saneamento e os recursos hídricos, aprofundando desigualdades e criando novas hegemonias globais por parte do capital. O artigo original está disponível aqui:. O artigo foi traduzido pelo Observatório Nacional do Direito à Água e ao Saneamento (ONDAS), parceiro editorial de Outras Palavras..
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Em março de 2023, a primeira conferência global das Nações Unidas sobre a água em 46 anos atraiu 7.000 pessoas em Nova York. Realizado no meio da Agenda de Desenvolvimento Sustentável de 2030 e da Década de Ação pela Água da ONU1, o evento destaca os desafios críticos relacionados à água. Isso inclui 2 bilhões de pessoas sem acesso à água potável e mais de 3,6 bilhões sem acesso ao saneamento seguro; aumento da pressão sobre os recursos hídricos e ecossistemas, incluindo 80% das águas residuárias lançadas sem tratamento no meio ambiente; e um risco exacerbado de secas e inundações2. No entanto, divergências de longa data sobre a melhor forma de gerir o acesso à água e governar os recursos hídricos foram revividas, revelando um confronto de diferentes visões políticas e econômicas.
De um lado, atores poderosos, incluindo o Banco Mundial, a OCDE e a OMC, reafirmaram sua visão de que o financiamento privado desempenha um papel central na governança dos recursos hídricos e no fornecimento de serviços de água e saneamento3. A Comissão Global sobre a Economia da Água (GCEW), uma plataforma envolvendo indivíduos da academia, governos e agências internacionais, propôs uma abordagem fundamentalmente de mercado para enfrentar os desafios globais da água, introduzindo a noção de água como um bem comum global, em um relatório lançado na Conferência4. A GCEW afirmou que o subpreço da água deve cessar porque a cobrança incentiva o uso mais eficiente da água, gera receitas e permite que os recursos sejam investidos em sistemas de água, estendendo-os a toda a população, e que sejam mantidos e renovados, embora reconheça a necessidade de “subsídios ou transferências adequadamente direcionados para garantir que beneficiem as comunidades pobres e vulneráveis”.
Ao contrário do uso geral do conceito de bem comum como contraditório ao enclausuramento ao setor privado, o GCEW argumenta que os mecanismos de mercado são uma estratégia necessária para tratar a água como um bem comum global. Destacando a urgência de uma crise de escassez de água, a GCEW traça um caminho com a premissa de “aumentar os investimentos em água por meio de novas modalidades de parcerias público-privadas”, rotuladas como “parcerias justas de água”. O relatório da GCEW enfatiza os mecanismos de financiamento combinados, “recanalizando os subsídios internos ineficientes de hoje, alavancando os bancos multilaterais de desenvolvimento e as instituições financeiras de desenvolvimento e reunindo empresas privadas, bancos e investidores institucionais…”. Os retornos econômicos desses mecanismos, de acordo com a lógica da Comissão, “excederiam em muito os seus custos”.
Várias organizações internacionais, estados-membros e o secretário-geral da ONU, em seus comentários finais na Conferência, ecoaram tanto a noção de água da GCEW como um bem comum global quanto os mecanismos financeiros propostos. Acadêmicos envolvidos na comissão publicaram suas visões, de uma conceituação da água baseada no mercado como um bem comum global, em várias plataformas, incluindo um artigo em periódico, argumentando que “os economistas precisam valorizar a água como um bem que gera funções e serviços para o bem-estar humano”5.
O otimismo da GCEW quanto aos potenciais benefícios socioecológicos dos investimentos privados em água caminha apesar da evidência histórica cumulativa mostrando que os benefícios sociais, ambientais e de saúde pública da água e do saneamento, tanto no norte global quanto no sul global, não têm derivado de investimentos privados, mas de sistemas públicos e baseados na comunidade, e por meio de financiamento público6, o que foi reconhecido até mesmo pelo Banco Mundial7.
O entusiasmo pela participação do setor privado no financiamento e fornecimento de serviços de água também ignora o enorme corpo de pesquisa que documenta os resultados negativos desse modelo, incluindo o acesso inacessível a serviços por pessoas em situação de vulnerabilidade, a tendência de empresas privadas de maximizar lucros violando os padrões ambientais e a exclusão de assentamentos informais ou comunidades rurais8. Da mesma forma, o foco da GCEW na política de livre comércio como “uma ferramenta para o uso mais sustentável da água” ignora evidências há muito estabelecidas de que a liberalização da água tem efeitos sociais e ambientais prejudiciais9,10. Entre outros, especialistas em direitos humanos da ONU vêm repetidamente levantando preocupações sobre o risco incerto, mas caro, do uso de mecanismos de solução de conflitos financeiros entre investidores e estados, que têm o efeito de dissuadir os estados de adotar políticas sociais e ambientais que possam ser interpretadas como prejudiciais aos interesses comerciais11. A privatização dos serviços de água e outras utilidades também é reconhecida como um elemento importante nos determinantes comerciais da saúde, por meio de preços mais altos, piores práticas de emprego e má prestação de serviços12. Há ampla evidência em outros setores também de que o conceito de bem comum global tem sido usado para justificar parcerias globais com o setor privado, gerando conflitos sobre o papel das empresas privadas, aprofundando as desigualdades e enfraquecendo as comunidades locais, por exemplo, em relação a vacinas e pandemias13 e mudanças climáticas14.
Longe dos corredores do poder, uma visão muito diferente foi desenvolvida por indivíduos e comunidades na linha de frente das lutas pela justiça da água contra os danos do ajuste estrutural e do comércio desigual, que formularam a necessidade de novos modelos de multilateralismo enraizados na solidariedade e no cuidado, não no lucro. Isso inclui muitas organizações e indivíduos por trás do Water Justice Manifesto15 e do Transformative Water Pact16. Essas organizações não apenas desafiam a privatização, mercantilização ou financeirização da água em nível global, nacional ou local, mas oferecem alternativas para uma nova agenda. Essa agenda inclui a primazia dos direitos humanos à água e ao saneamento, o princípio da não discriminação, a propriedade, gestão e financiamento públicos da água, processos e instituições democráticas de tomada de decisão e equidade de gênero, no quadro da justiça ambiental, igualdade, e cuidado. Da mesma forma, 19 especialistas independentes em direitos humanos da ONU instaram a Conferência a colocar os detentores de direitos e os defensores da água no centro da tomada de decisões, enquadrando a água como um direito comum e humano, e não como uma mercadoria17.
O conceito de água como um bem comum global é sedutor, e muitas organizações da sociedade civil estão envolvidas ou afiliadas a projetos e redes que promovem a noção de água como um bem comum. No entanto, a tentativa de vincular o conceito a mecanismos baseados no mercado em um “ciclo global da água” obscurece as vastas desigualdades no acesso e controle da água em todo o planeta, cria dependência das decisões comerciais das finanças internacionais e empodera poucos autonomeados especialistas internacionais, difíceis de serem responsabilizados pelos impactos de sua formulação nos recursos hídricos locais e nos serviços. Esse processo enfraquece e deslegitima ainda mais os poderes de tomada de decisão e a expertise das comunidades diretamente afetadas. Embora a seca, as inundações e a poluição da água transcendam as fronteiras geográficas, as vulnerabilidades e os impactos desses problemas hídricos são distribuídos de forma desigual e vivenciados de forma diferenciada no nível local18, 19.
Como tal, algumas das soluções mais promissoras são aquelas desenvolvidas pelas comunidades na linha de frente, de acordo com contextos ecológicos, institucionais, econômicos e culturais específicos. Por exemplo, operadores comunitários de água em toda a América Latina desenvolveram um modelo alternativo de governança hídrica equitativa, sustentável e democrática. Além do fornecimento de água potável, os operadores comunitários de água muitas vezes protegem as bacias hidrográficas locais enfrentando poluidores de água em grande escala20.
Além disso, a mudança de escala da governança hídrica, do local para o global, prejudica os direitos dos povos indígenas, que estão historicamente ligados a territórios e bacias hidrográficas locais. Como mostram os estudos sobre clima e biodiversidade, esse deslocamento de escala nas estratégias de conservação ambiental de local para global por meio de esquemas de “conservação de fortalezas” minou o papel dos povos indígenas como guardiões tradicionais, frequentemente deslocando-os violentamente de suas próprias terras21. Povos indígenas então perdem o controle sobre seus territórios, interrompendo suas práticas culturais, meios de subsistência e conexões espirituais com a terra e a água. Da mesma forma, a noção de recursos hídricos globais governados por poderosos interesses financeiros prejudicaria ainda mais os povos indígenas engajados em lutas para estabelecer seus direitos coletivos sobre lagos, rios e aquíferos.
O fortalecimento dos sistemas locais não exclui a cooperação internacional. Ao contrário, a ‘diplomacia fluvial’ transfronteiriça em todo o mundo mostrou como a cooperação política, e não a transação de mercado, pode resolver demandas concorrentes e conflitos hídricos entre vários atores, especialmente no contexto da crise climática22. Na última década, parcerias públicas ou público-comunitárias entre operadores comunitários, sindicatos e concessionárias estatais em seis países diferentes da América Latina apoiaram a coordenação translocal e a capacitação por meio de um modelo solidário de conhecimento e compartilhamento de recursos, abordando preocupações comuns em um nível regional23. Como movimentos e estudiosas feministas negras vêm levantando, propostas para construir novas soluções que dependam e reforcem os sistemas responsáveis pela troca profundamente desigual de bens e danos ambientais não permitirão uma ação multilateral verdadeiramente transformadora24.
Os determinantes estruturais e comerciais das crises hídricas e seus efeitos na saúde são reais, mas não serão resolvidos pela reprodução de uma agenda neoliberal excludente e inefetiva em um novo formato sedutor. Em vez disso, pedimos cooperação internacional e solidariedade que abordem a assimetria de poder, as desigualdades e a inacessibilidade econômica, reconhecendo as especificidades locais, o papel fundamental das finanças públicas e a necessidade de colocar os direitos humanos no centro da agenda da água.
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