No Direito Penal e Processual Penal, parte-se da investigação de um ato criminoso para punir o autor. Contudo, essa ordem de apuração foi invertida com relação ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na operação “lava jato”. No caso, a força-tarefa elegeu o petista como alvo, e busca a todo custo encontrar fatos que o incriminem. Isso é o que afirma o criminalista José Roberto Batochio, sócio do José Roberto Batochio Advogados Associados, que, junto com Roberto Teixeira e Cristiano Zanin Martins, comanda a defesa do líder do PT.
“É uma perseguição com conotação política, na qual não se investiga determinado ato atribuído ao Lula. O que se investiga é a pessoa dele, procurando atos para incriminá-lo. Isto não é legítimo”, avalia, destacando que nenhum moralista resiste a uma devassa feita em sua vida privada.
A chance de combater essa distorção do sistema penal foi o que motivou Batochio a se juntar a Teixeira e Zanin Martins. O que mais chamou a atenção dele até agora foi o fato de o caso estar sendo conduzido pelo juiz Sergio Moro, titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, e não em São Paulo.
“Guarujá é estância balneária paulista e não se confunde com sua congênere Guaratuba, do litoral do Paraná. O mesmo se diga de Atibaia, onde se situa o imóvel rural em causa, que não pode ser tomada por Atalaia, cidade do interior paranaense”, conta, mencionado os locais onde os investigadores suspeitam que teriam ocorridos crimes de lavagem de dinheiro oriundo de corrupção na Petrobras e ocultação de patrimônio.
De acordo com o advogado, está claro que existe um “sentimento de adversidade” dos procuradores da República, policiais federais e do juiz Sergio Moro com relação ao ex-presidente. E isso, a seu ver, mostra que os objetivos da “lava jato” são tirar o PT do poder — algo que está bem próximo de ser atingido — e tornar Lula inelegível no próximo pleito presidencial, em 2018.
Porém, essas ilegalidades da “lava jato” vêm sendo referendadas pelos tribunais superiores porque os magistrados “estão ouvindo a voz das ruas”, analisa o criminalista. Por isso, não restou outra opção à defesa de Lula a não ser questionar a falta de imparcialidade de Moro no Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Um exemplo da gana juiz em punir o líder do PT está no aval que deu ao pedido do MPF de grampear o celular de Roberto Teixeira e o telefone central de seu escritório, o Teixeira, Martins e Advogados. “É absolutamente reprovável, inaceitável e inadmissível a interceptação das conversas entre cliente e sua defesa técnica. Isso não existe nem no USA Freedom Act”, criticou, mencionando a lei norte-americana que legitima o atropelo de garantias individuais no combate ao terrorismo.
Batochio foi presidente do Conselho Federal e da Seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil. Foi ele, aliás, o responsável pelo Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994), que assegurou diversas prerrogativas da profissão. O criminalista demonstra algum pessimismo com o clima punitivista que está em voga no Brasil. Em entrevista à ConJur, ele atacou a glorificação de magistrados como Sergio Moro e Joaquim Barbosa, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, lamentou a disseminação da “pandemia” da delação premiada e disse ser cansativo, mas necessário, lutar contra a maré em defesa das garantias individuais.
Leia a entrevista:
ConJur — Como o senhor entrou na defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva?
José Roberto Batochio – Sem ultrapassar os limites do que me é permitido pela ética profissional revelar, uma vez que se trata de relação advogado/constituinte, posso dizer que foi uma decisão pessoal do presidente Lula, a quem, aliás, nunca se poderá negar o fato de haver sido o governante que promoveu a maior inclusão social que nossa história registra em todos os tempos. Resgatou-se da subnutrição toda uma geração de brasileiros da base da pirâmide. São neurônios que trarão, no futuro, medalhas de ouro, prata e bronze, nas ciências, artes, esportes etc. Constitui para mim uma honra desempenhar esse patrocínio.
Certo dia, telefonou-me o colega que já vinha coordenando a defesa técnica do ex-presidente e me informou dessa intenção de Lula e indagou-me se aceitaria a tarefa. Aceitei.
Claro que já tinha amplo conhecimento de que o ex-presidente e sua família estavam — e estão — a sofrer, por motivação política, uma devassa sem precedentes, na qual se inverte a equação do devido processo legal: as autoridades não investigam um dado fato concreto, revestido de suposta ilicitude, para responsabilizar seus autores como seria correto. Mas o MP inverte o que diz a lei e escolhe um acusado para, depois, procurar os fatos. Devassam as pessoas do ex-presidente e de seus familiares, a buscar, nesse intento e a partir de um garimpo microscópico, qualquer fato ilícito que possa servir de argumento para uma condenação criminal e sua consequente inelegibilidade.
Em suma, aqui não se investiga um fato penalmente relevante, certo e determinado, para se responsabilizar seus autores, como preconiza a lei, mas se investigam biografias selecionadas com o escopo de se tentar encontrar qualquer episódio incriminador... E, nesse propósito, nem mesmo as elementares regras procedimentais de fixação de competência do juízo são respeitadas, violentando-se, sem cerimônias, o princípio do juiz natural, garantido na Constituição da República e inserido no conjunto de franquias que compõem o due process of law.
ConJur – O senhor diz que nas investigações sobre o ex-presidente Lula, houve uma inversão de caminhos: em vez de pegarem o ato e levarem para a pessoa, pegaram a pessoa e procuram o ato. Alguma pessoa resiste a essa revista íntima?
José Roberto Batochio – Neste caso elegeu-se aprioristicamente um culpado, a pessoa que se quer – por que se quer – incriminar. Dado o fato de que nenhuma conduta delituosa que possa ser atribuída à sua pessoa foi encontrada, deliberou-se submeter toda sua vida a um scannerinvestigatório, a uma ultrassonografia contrastada para, nessa rigorosíssima exploração, se tentar deparar com algum achado de relevância jurídico-penal. Nada feito! Nenhum ilícito se encontrou e nada se provou. E atente para o fato de que dessa blitzkrieg que se assestou contra a vida de Lula (contra quem nada de ilícito se comprovou) certamente não escapariam muitos Catões da nossa República que, com cinismo e consciência hipotecada, se travestem de acusadores moralistas...
Como nunca houve o crime pelo qual se ansiava, resta agora aos Javerts a “bala de prata”, é dizer, o escambo com delatores de plantão para, em derradeira e desesperada tentativa, se fabricar algo incriminador. A proposta que se faz é generosa e atraente: uma estória que incrimine o ex-presidente em troca de liberdade e deliciosa fruição de parte do butim saqueado... Quem vai querer? Restam poucos dias...
ConJur — A questão da competência territorial é parte disso?
José Roberto Batochio — É, sem dúvida alguma. A questão da deliberada inobservância da competência territorial com o objetivo de se escolher um determinado e rigoroso juiz (em princípio incompetente e suspeito) para julgar a causa do ex-presidente é tão óbvia quão inaceitável.
Como de comum conhecimento, os órgãos da jurisdição que se acham investidos de competência em todo território nacional são apenas os Tribunais Superiores (STF, STJ, TST etc.), mas, mesmo assim, não de competência originária na maior parte dos casos e não de forma ilimitada, em qualquer matéria (ao TST, por exemplo, está afeta a competência para julgar apenas conflitos laborais). Deixando-se ao largo o caso dos tribunais de Justiça e regionais federais em sentido amplo, os juízes de primeiro grau somente podem decidir dentro dos limites territoriais de suas comarcas ou subseções judiciárias, isto segundo critérios aprioristicamente estabelecidos nas leis do processo e de organização judiciária.
Ora, como regra geral o juiz criminal competente para conhecer e julgar determinado fato apontado como delituoso é aquele que exerce jurisdição no local em que ele ocorreu e não outro, remoto e com artificial “competência” para julgar até mesmo assunto verificado em outra Unidade da Federação. Assim se passa, por igual, na jurisdição civil, em que o réu deve ser demandado, em regra, no foro de seu domicílio.
Há, claro, exceções a essa regra, mas são realmente excepcionais situações de prorrogação, as quais, todavia, não se fazem presentes nos casos que envolvem imputações relativas ao apartamento “tríplex”, ao “sítio de Atibaia” e às palestras contratadas a partir da sede do Instituto Lula, todos situados dentro do estado de São Paulo (e não do Paraná).
O juiz competente para julgar o caso ocorrido dentro dos limites territoriais de sua jurisdição é denominado “juiz natural”, prévia, impessoal e abstratamente determinado pelas leis e que se contrapõe ao “juiz de exceção”, aquele escolhido a dedo para julgar uma causa específica ou pessoa determinada, segundo os interesses ou as circunstâncias da ocasião...
Já vai longe o tempo dos “tribunais de exceção”, de que foi triste exemplo o “Tribunal de Segurança” do Estado Novo, ou o escandaloso desvio de competências para afastar o juiz natural e substituí-lo por “julgadores especiais”, como aconteceu com civis “inimigos do regime”, por prática de crimes “contra a segurança nacional”, pelas Auditorias de Guerra, no período da ditadura militar instaurada em 1964.
Se é certo que o réu não pode escolher o juiz que deva julgá-lo, mais certo ainda é que o juiz não pode jamais escolher o réu que queira julgar.Pelo menos no Estado Democrático de Direito.
No caso em apreço, temos o juízo da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, estado do Paraná, região meridional do país, a pretender julgar fatos (envolvendo o apartamento “tríplex”, o sítio e remuneração de palestras) supostamente ocorridos no estado de São Paulo, mais precisamente nas comarcas de Guarujá, Atibaia e capital de São Paulo, respectivamente. Isso mesmo sem existir qualquer conexão ou elo com o tema “petrolão” (Petrobras), cuja cognição se acha submetida àquele juízo paranaense. Como classificar tal hipertrofia jurisdicional, anômala e sem causa legal, senão como afronta ao princípio constitucional do juiz natural? Afinal, Guarujá é estância balneária paulista e não se confunde com sua congênere Guaratuba, do litoral do Paraná. O mesmo se diga de Atibaia, onde se situa o imóvel rural em causa, que não pode ser tomada por Atalaia, cidade do interior paranaense...
Sem quebra de respeito às autoridades que já se pronunciaram em sentido contrário, essa inaceitável acromegalia funcional do juízo da 13ª Vara Federal do Paraná configura escancarada afronta aos princípios constitucionais fundamentais, garantidores das liberdades, que compõem o plexo normativo estruturante do devido processo legal.
ConJur — Mas vocês entraram com pedido de exceção de incompetência...
José Roberto Batochio - De fato, opusemos a pertinente Exceção de Incompetência objetivando fosse declinada a jurisdição para os juízos naturais, que são os que abrangem os territórios jurisdicionais de Guarujá, Atibaia e São Paulo, para os três temas em controvérsia e que tratam do “tríplex”, do sítio e da remuneração de palestras à LILS, respectivamente. E ponha-se logo em destaque que aforamos a exceptio declinatoria fori antes mesmo de instaurada eventual ação penal já que, se o juiz impugnado é incompetente para a ação penal (que é o principal), também fica impedido para decidir sobre medidas cautelares — profundamente invasivas — que lhe são correlativas (que são o seu acessório instrumental), vedada a decretação de prisões, de buscas, de quebras de sigilos etc., que alcançam a privacidade e o status libertatis et dignitatis das pessoas investigadas no feito que ele, ao cabo, não poderá julgar...
Para impugnar essa nossa pretensão de remessa das investigações ao seu juiz natural, os doutos e cultos procuradores da República paranaenses oficiantes naqueles autos verteram argumentos que se esparramaram por nada menos que 70 laudas, nas quais insistem na competência urbi et orbida 13ª Vara Federal local, argumentando com uma suposta e cerebrina conexão que existiria entre os três feitos citados e os relativos ao assunto Petrobras que ali tramitam. Nada mais equivocado. Não faz qualquer sentido se afirmar que todas as receitas auferidas (recebimentos pecuniários) pelas empreiteiras (Odebrecht, OAS, Andrade Gutierrez, Engevix, Camargo Correa etc.) tenham tido uma única e exclusiva origem: Petrobras! Ora, são conglomerados industriais de enorme envergadura, alguns deles multinacionais com presença em 27 países, nas Américas, Europa, Ásia. Como então se construir a estapafúrdia teoria de que todos os recursos financeiros dessas empreiteiras só tenham advindo de uma única fonte, qual seja a petroleira brasileira? Pois bem, nessa ordem de ideias quem quer que tenha recebido (que aqui não é efetivamente o caso), ou seja acusado de haver recebido qualquer tipo de contribuição eleitoral, remuneração, pagamento, salário ou valor de tais construtoras, passaria a ser, obrigatoriamente, beneficiário da alegada fraude contra a Petrobras... Logo, co-autor ou co-partícipe de toda a suposta fraude... Isso é simplesmente surrealista, ridículo. Tomemos o exemplo Odebrecht: do global de todas suas receitas, o recebido por força de negócios com a Petrobras soma inexpressivos quatro ou cinco (4% ou 5%) por cento do faturamento... E os demais 95% dessa receita, não se destinaram a nada? Não serviram para pagar ou remunerar nada? Deste porcentual de 95% nada foi destinado a lícitas contribuições eleitorais? A conta não fecha... A aritmética está a desmistificar essa construção primária (refiro-me ao argumento de que todo dinheiro das empreiteiras se resumia a pagamentos da Petrobras) da conexão artificialmente fabricada para sustentar uma competência que jamais existiu. Por isso que foram necessárias 70 páginas. Dir-se-ia: direito curto, páginas longas...
ConJur — Nesse sentido, os tribunais superiores estão se omitindo em relação ao fato de a vara de Sergio Moro abarcar todos os casos?
José Roberto Batochio - Certo é que poderiam — especialmente o STF — ter determinado a remessa dos autos que tratam destes assuntos ao juízo natural, quando dos desmembramentos determinados, mas a Corte Suprema se limitou a ordenar a sua baixa “ao primeiro grau” porquanto inexistente investigado com foro especial por prerrogativa de função. Não o fizeram aludidos tribunais, contudo, deixando de restabelecer, concedidas as necessárias vênias, a ordem constitucional violada, no que toca à observância do devido processo legal, especificamente à franquia do juiz natural. Daí o acionamento de órgãos internacionais de tutela de direitos civis e políticos e de direitos humanos para restauração dos direitos violados.
Comenta-se muito no meio jurídico que, de tempos a esta parte e em certas circunstâncias, certos setores da Corte Suprema têm estado muito mais atentos à “voz das ruas” que ao sentido estrito das normas reitoras da Lei Fundamental, que, aliás, é a justa medida de todas as coisas. Não quero crer que assim esteja a acontecer. Entendo que a única voz que o Judiciário deva ouvir, para todas as decisões, seja a voz da Constituição da República Federativa do Brasil e a do comando das leis que integram o ordenamento jurídico pátrio. Aliás, é de seu dever.
“Anseio das ruas”, “vox populi”, “opinião publicada”, “soerguimento da turba multa”, “histeria na rede social”, “concerto de acusadores e de suas associações de classe com setores da mídia”, nada disso pode transpor o limiar sagrado das cortes judiciárias e adentrar o templo de Têmis. Cruzado esse Rubicão e a Justiça terá sido definitivamente expulsa, pelas portas dos fundos... Nossos juízes são — e devem ser — infensos a qualquer espécie de pressão ou ameaças de retaliações públicas através dos meios de comunicação de massa (estas muito comuns quando ousam a coragem de, cumprindo a Constituição, mandar libertar ou absolver acusados), pois que como assoalhava Sobral Pinto em relação à advocacia (advocacia não é profissão de covardes), se pode afirmar que julgar não é para impressionáveis ou temerosos.
Sobre julgamentos ao influxo de paixões populares, a Historia é pródiga em tragédias, em iniquidades, em horrores e barbáries. Definitivamente, a paixão das ruas não se compatibiliza com a sobranceria e com a serenidade que devem presidir os julgamentos civilizados, em que têm ingresso proibido a perseguição, o ódio, o fundamentalismo, o messianismo e a “declaração de combate e guerra” ao que quer que seja. Neles só cabem sobriedade, equilíbrio e imparcialidade e, quando não redundar em injustiça, um pouco de humanismo e compaixão é sempre bem vindo...
Em resumo, o que se busca nesta investigação não são privilégios e imunidades, senão julgamento legal, justo, imparcial, afastado das paixões e preconceitos. É pedir muito?
ConJur — Qual é o efeito prático esperado dessa ida à ONU? O que o senhor acha que irá acontecer?
José Roberto Batochio — A despeito de tudo que se concretizou em matéria de agressões ao devido processo legal e violência contra o direito de liberdade do ex-presidente da República (foi, grampeado, teve sua intimidade exposta pela divulgação de diálogos íntimos, devassado em seus documentos e registros, impedido de assumir cargo de ministro para o qual foi legalmente nomeado, sofreu busca e apreensão em domicílios familiares e foi, por ordem de juízo incompetente, conduzido à força às dependências externas da Polícia Federal para depor), as cortes de Justiça brasileiras têm tolerado que esse estado de ilegalidade perdure, prolongando-se no tempo. Um magistrado apontado como suspeito e manifestamente incompetente continua a dirigir, digamos assim, as investigações e a decretar medidas ilegítimas que alcançam, de modo abissal, seus direitos básicos, fundamentais. Sendo o Brasil signatário de tratados internacionais através dos quais se obrigou a coibir práticas atentatórias aos direitos civis e políticos, bem como violações aos direitos humanos, Diplomas estes que foram devidamente aprovados pelo Congresso Nacional e passaram a integrar nosso ordenamento jurídico, é lícito a qualquer do povo recorrer a esses órgãos internacionais, na busca de providências que exortem o retorno à legalidade o país signatário que permitiu tais ilegalidades em seu território. O Estado brasileiro está a ser notificado para prestar informações sobre a denúncia de tais violações. Com estes informes, o reclamo que tramita na ONU será instruído e, se aceito, será julgado para o efeito de se declararem existentes (ou não) as violações denunciadas, com as consequências censórias decorrentes. É bom registrar, com a ênfase necessária, que tal pedido de providências não implica qualquer desdouro ou desgaste à imagem das autoridades e do país; trata-se de um instrumento jurídico disponível e de utilização mui frequente em democracias amadurecidas de todos os Continentes, como, por exemplo, as da Europa Central e Ibérica, que já tiveram países advertidos e foram chamados a fazer cumprir o compromisso de respeito a esses direitos. Aguardemos.
ConJur — O senhor considera a condução coercitiva uma espécie de detenção, não é?
José Roberto Batochio – Sim, uma forma de privação de liberdade, de cerceamento do direito de ir e vir, com brevíssima duração. Categorizemos o fenômeno para deixar muito claro que no nosso sistema legal, em que não há prisão perpétua, o gênero privação de liberdade por ordem de autoridade competente se compõe de várias espécies: a definitiva decorrente de sentença condenatória passada em julgado (cumprimento da pena), cuja duração vem declarada na sentença e no respectivo título executório; as processuais (provisórias) como a decorrente do flagrante delito; a preventiva, de duração não fixada mas que pode se estender por meses; a temporária, que tem breve duração mas é passível de prorrogação; e uma modalidade de supressão do direito de locomoção sui generis, de brevíssima duração, que foi apelidada de “condução coercitiva”. Trata-se, sim, de medida de coerção física sem previsão legal e que suprime a liberdade, logo, é detenção. Para os que insistem em negar que esta modalidade de constrição corpórea priva de liberdade o sujeito passivo ou “alvo”, gostaria de lembrar a verve ilustrativa de Leonel Brizola, quando esgrimia com sofistas políticos que pretendiam negar-lhe as mais claras evidências. Dizia então o brasileiríssimo e nacionalista ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro: “se tem boca de jacaré, dentes de jacaré, olhos de jacaré, couro de jacaré, patas de jacaré, rabo de jacaré, vive nos rios e lagos ficando apenas com os olhos emersos e devora peixes menores, só pode ser jacaré! Dê-lhe o nome que quiser, mas será sempre jacaré!”...
Atenção, porém; ao contrário das demais e anteriormente mencionadas, essa modalidade de custódia não tem previsão no nosso ordenamento jurídico (a condução coercitiva tratada no artigo 260 do CPP é outro instituto e pressupõe a recalcitrância daquele que já foi anteriormente intimado para praticar determinado ato processual), mas decorre de “legislação pretoriana”, é dizer, cuida-se de obra exuberante de alguns membros do Poder Judiciário que se julgam com competência para alterar a ordem jurídica, “legislando” sobre Processo Penal, que (ainda) é tarefa do Congresso Nacional... Tempos estranhos. Antes, na ditadura, eram os autoritários de uniforme que sepultavam as garantias e liberdades insculpidas nas leis, para o que editavam os famigerados atos institucionais, agora...
ConJur — No Brasil, temos uma situação em que o principal líder popular está acossado, assim como o presidente de um dos principais bancos do principal do país, porque um criminoso citou o nome dele ao telefone. A operação “lava jato” é um projeto de poder de seus protagonistas?
José Roberto Batochio – Oportuna a indagação. A mim me parece temerário arriscar um prognóstico assertivo, lançado não sobre dados empíricos, mas tão somente na análise exploratória do subjetivismo dos personagens, à vista de seus atos e de suas manifestações. Não me sinto seguro e habilitado a tamanha perigosa especulação. Neste caso, a assertividade poderia representar temeridade. Abordando o assunto apenas pela rama em caráter hipotético, o que se pode extrair é que as aparências sugerem mais um deslumbramento de onipotência, um paroxístico exercício de poder, um messianismo, um rigorismo de inspiração doutrinária exótica (bom dia, Tio Sam!), em que não se detectam quaisquer compromissos ou preocupações com os consectários macroeconômicos, laborais e sociais do terremoto avassalador que engolfou gigantescas empresas brasileiras e derreteu centenas de milhares postos de trabalho. Pode ser aquela visão do mundo que só considera o que se situa aquém das cancelas, além, é claro, a própria imagem pública. Pode-se cogitar, também, de mimetismo em relação à rica, estranha e violenta sociedade americana...
Observe-se que o exercício do poder incontido se auto-alimenta e, aquecido pela chama da vaidade pessoal, tende ao infinito. Certa ocasião, o notório ex-delegado de Polícia Federal, Protógenes Queiroz, afirmou que se deu conta do ilimitado espectro da potencialidade de suas então funções quando teve a percepção de que, com os instrumentos legais que aparelham a atividade investigatória e persecutória no Brasil, “poderia prender até o presidente da República”. Tempos passados desde essa manifestação, e nos deparamos hoje com anelos justiceiros que acham que, em represália a decisões garantistas que lhes desagradam, podem acuar moral e injustmente até ministro do Supremo Tribunal Federal... Intolerável!
ConJur — A delação premiada pode ser um instrumento de defesa?
José Roberto Batochio – Conceitual e abstratamente, sim. Mas não na pulsante realidade da defesa concreta e efetiva, inserida na ampla órbita traçada pela Constituição da República. Ordinariamente, a delação premiada tem como pressuposto básico a renúncia de direitos, mecanismos defensivos e garantias essenciais (alguns dos quais, aliás, inabdicáveis), tais como o direito de permanecer em silêncio (revogando-se aí o constitucionalprivilege against self incrimination), o direito ao duplo grau de jurisdição, o direito de recorrer ou de impetrar habeas corpus etc. Ora, como se poderia entender a abolição casuística de todos os instrumentos legais de autodefesa e de defesa técnica e, mesmo assim, se aceitar que essa supressão da defesa constitui um meio de defesa? Trata-se de oxímoro.
ConJur — O que o senhor acha das chamadas dez medidas contra a corrupção alardeadas pelo Ministério Público Federal?
José Roberto Batochio - Ao discurso do combate à criminalidade que a todos aflige — que, se levado a efeito dentro de regras civilizadas e democráticas, garantidos os direitos fundamentais do acusado, mereceria apoio – o que se pretende é eliminar franquias irrenunciáveis, direitos básicos dos cidadãos. Há propostas surpreendentes, para se dizer o menos, nessa iniciativa de alteração legislativa de origem popular (o MPF fez colher as assinaturas necessárias em todo país).
Iniciemos pela mais gritante impropriedade, qual seja a convalidação da prova ilícita, desde que produzida ou coletada de boa fé. O quer isso exatamente significar, do ponto de vista da técnica legislativa, quando o que se lê do inciso LVI do artigo 5º da Constituição da República é que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”?
Pretende-se revogar essa cláusula nuclear, pétrea? Será que a sensação de onipotência faz crer superioridade até em relação à Lei das Leis?
Já pelo prisma da realidade factual, o que precisamente significaria a aludida “boa fé” do instrutor que recolheu ou produziu a prova “fora da lei”? O torturador (e tomemos a tortura para obter confissão como exemplo extremo) dirá que submeteu a afogamento o investigado confitente “por engano”, ou porque estava a pretender “treiná-lo para provas de natação nas Olimpíadas do Rio de Janeiro”? Ou que o “pau de arara” foi equivocadamente tomado por “barra fixa” para exercitar o infeliz? Ou, ainda, o grampo telefônico autorizado era de um terminal e acabou se escutando outro, “por engano” e aí se colheu a prova inicialmente viciada que se converteu em legítima? Estamos a falar da tortura física, mas que se dirá da psicológica ou “branca” em que se impõe o sofrimento apenas com a utilização do dramático sistema carcerário do país para se alcançar o resultado desejado?
Francamente...
Os testes de integridade em candidatos ao exercício de funções públicas, o plano goebbeliano de propaganda com estímulo à delação de colegas e usuários de serviços, sob anonimato, soam déjà vu quando se revisita a história neste conturbado século XX...
A criminalização da fortuna a pretexto do combate ao enriquecimento ilícito de quem exerce função pública (como fica aí o industrial que se elegeu Senador? E o servidor público que herdou bens familiares geradores de renda?) Quais rendas ou vencimentos? Os provenientes da remuneração pela função ou os de sua atividade industrial? Qual o parâmetro da renda a ser cotejada com o patrimônio? Pode ser o início de uma escalada que terminará, no futuro próximo, com a criminalização de patrimônios granjeados por qualquer meio, seja ele qual for...
Que se dizer da supressão de diversos recursos da defesa ao argumento da celeridade processual? Só faltou mesmo a proposta de suspensão ou extinção do habeas corpus, mas isto foi truculência do regime autocrático do passado, cujo ideário parece estar a ser exumado. A prescrição da pretensão punitiva estatal também é alvo de ataque na proposta. Como não é possível simplesmente extingui-la (a prescrição), tenta-se sua desnutrição. Além dessas, se acrescem outras propostas de medidas inaceitáveis e – muitas delas – inconstitucionais, tudo coroado pela introdução de uma nova modalidade de prisão processual – mais uma ! – extraordinária e manejável para o fim de se localizar e reaver o produto econômico da infração, e, assim, evitar que possa o investigado, entre outros dispêndios, “financiar sua defesa”... Uma pérola!
ConJur — Sustenta-se que só pode ser considerado culpado aquele que foi condenado por sentença transitada em julgado. Mas como isso pode prevalecer se o Supremo mudou de entendimento e permitiu a execução da pena antes do trânsito em julgado?
José Roberto Batochio – O princípio da não culpabilidade (ou da presunção de inocência) está expresso no artigo 5°, inciso LVII, da Constituição da República, em que se lê que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Acha-se no Título dos Direitos e Garantias Individuais, cujo Capítulo I enuncia direitos que consubstanciam preceitos imutáveis, mesmo pelo constituinte derivado e por meio de proposta de emenda constitucional. Em suma, cláusula pétrea. Tudo muito claro e, como enuncia a regra básica da hermenêutica, in claris cessat interpretatio. Sem condenação criminal passada em julgado, portanto, nada de culpado, mas sim uma pessoa constitucionalmente presumida inocente.
Parece-me ao largo de qualquer questionamento o fato de que, se a Lei Máxima considera inocente aquele contra quem não há sentença penal passada em julgado, inconstitucional e inaceitável se mostra remetê-lo ao cárcere – presumido inocente que é –, tenha embora decisão condenatória de segundo grau lavrada em seu desfavor. É que, em tais circunstâncias, não está formado o titulo executório da reprimenda. Tudo muito claro.
Ora, ou se observa e se faz cumprir o preceito contido em seu corpo permanente como imutável, ou se está a conspirar, abertamente, contra a Constituição a pretexto de interpretá-la. É literalmente inacreditável que se possa, em nome de não sei quais conveniências ou ruídos sociais, subtrair eficácia a preceito da Lei Maior.
Tenho e sempre tive o maior respeito pelos Poderes constituídos e, sobretudo, pelo Poder Judiciário do meu país, em cujo vértice se acha o Supremo Tribunal Federal. Deste, a missão precípua é a guarda e o zelo pela observância da Constituição. Essas instituições sustentam o Estado Democrático de Direito que conseguimos construir.
Não posso aceitar, todavia, que a Constituição da República Federativa do Brasil possa ser interpretada contra sua própria essência. Nem mesmo pelo STF ou por quem quer que seja. Não há “ativismo”, “protagonismo” ou “pretorianismo” que possa se invocar para justificar a perpetração desse grave ato de infidelidade à ordem constitucional.
É preciso se ter em mente que a Constituição é o que ela é, como expressão da soberania de um povo, manifestada por seus legítimos representantes em assembleia nacional constituinte, e não aquilo que os pretórios quiserem arbitrariamente que ela seja, máxime contra sua letra e seus enunciados.
Já se disse e já se escreveu no ambiente de determinada Corte que “a Constituição é aquilo que nós dissermos que ela é”. Sofisma! Quintessência da pretensão. A Carta Política não é um corpo sem alma, um zumbi (hoje se diz walking dead, não é mesmo? risos...) normativo, vagando à procura de alma que gravite na órbita das percepções dos tribunais. A Carta é a opção axiológica proclamada pelo povo.
Eis porque soa incompreensível que a Corte Suprema possa, negando a Constituição, mandar cumprir pena um presumido inocente e contra quem não há condenação penal transitada em julgado. Não há argumentos que possam embaçar essa gritante violação.
Nos últimos tempos temos visto decisões da Excelsa Corte que, máxima vênia concedida, mais que se afastarem do comando constitucional, com ele se mostram em manifesta fricção.
À vista do que se contém no artigo 2º da Constituição da República, no sentido de que os poderes são independentes e harmônicos entre si, fica difícil entender como o STF possa proferir decisões invasivas das competências reservadas ao Legislativo e ao Executivo. Lembremo-nos de que, por decisão cautelar monocrática, o Supremo sobrestou a posse de um ministro de Estado legitimamente nomeado pela Chefe do Poder Executivo da União, no lídimo exercício de ato de sua estrita e exclusiva competência...
Em outra decisão recente, “decretou” a “prisão em flagrante” (e expediu mandado de captura) de um Senador da República, em pleno exercício do mandato, impondo-lhe prisão processual, quando o parágrafo 2º do artigo 53 da Carta dispõe que, após a diplomação, o membro do Congresso Nacional não pode ser preso, salvo em flagrante delito (que no caso, nunca houve) por prática de crime inafiançável (que também não era o caso)...
Pior de tudo é que o Senado Federal, intimidado e acuado pela opinião publicada, não repeliu essa medida de força, que afeta suas mais básicas e elementares prerrogativas institucionais de independência e autonomia. É de se lamentar.
Há pouco, órgão fracionário da Excelsa Corte recebeu denúncia oferecida pelo Parquet e fez instaurar ação penal contra excêntrico parlamentar da Câmara Baixa, por crime de linguagem, ou, pelo menos, em razão de sua manifestação verbal no recinto do Parlamento. O conteúdo da manifestação parece, de fato, imprópria, inadequada e até execrável, mas, a despeito disso, achava-se o deputado sob o pálio da imunidade parlamentar – modalidade liberdade de expressão – nos exatos termos do que dispõe o artigo 53 da Constituição da República. Ali se lê que o congressista é inviolável, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões palavras e votos. Fala-se aqui do princípio, não do mérito do pronunciamento. É como sentenciou François Marie Arouet, o Voltaire, “posso não concordar com uma só palavra do que dizeis, mas hei de defender até à morte o direito que tendes de dizê-las”.
A liberdade de palavra - freedom of speach – é da essência do Poder Legislativo e fundamental para sua missão institucional, não importa quão contundente, inadequada e até estapafúrdia seja a locução proferida. Cabe à própria Casa a que pertence o congressista adotar providências disciplinares cabíveis, que podem chegar até à cassação do mandato, em caso de abuso de prerrogativas. Assunto Interna corporis, portanto.
Recorde-se, ainda, decisão que determinou o afastamento de um parlamentar da presidência da Casa a que pertence, e, de quebra, suspendeu o exercício do mandato que lhe foi conferido nas urnas pelo povo, através do voto secreto, universal e direto... Não discuto o mérito dos atos dos personagens, mas os princípios da independência e autonomia, assegurados no comando constitucional. Será que, nesta hipótese, teria entendido a Corte Excelsa que o artigo 319, VI, do Código do Processo Penal, nova redação, se sobrepõe à norma constitucional que estabelece a independência dos Poderes?
Se considerarmos o texto da Lex Legum e decisões como as que acabei de trazer, nos daremos conta de que a República está a viver uma espécie de esquizofrenia, com sinais trocados, que nos coloca bem longe do paradigma a que se referiu, com franca admiração, Alexis de Tocqueville quando discorreu sobre a democracia na América.
É sempre bom rememorar e não faz mal repetir: não nos regemos pelo sistema da common law e, por isso e sem qualquer concessão ao positivismo ortodoxo, a referência que se impõe é a da norma constitucional, medida de todas as coisas. Sua usual substituição pela autorreferência, é pecado funcional que compromete o sistema e conspira contra a República.
Márcio Chaer é diretor da revista Consultor Jurídico.
Marcos de Vasconcellos é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.
Sérgio Rodas é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 28 de agosto de 2016, 7h37
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