A mesa que debateu os 50 anos do golpe militar no Brasil durante a 12ª Flip tocou na ferida da falta de memória e informação que caracteriza a relação do brasileiro com seu passado
O jornalista Bernardo Kucinski. / WALTER CRAVEIRO
A voz do deputado Rubens Paiva, morto por militares em 1971, abriuMemórias do cárcere - 50 anos de golpe, a mesa mais aplaudida até agora desta 12ª Festa Literária de Paraty. O objetivo era fazer um balanço das memórias da ditadura a partir do depoimento dos três participantes do encontro, Marcelo Rubens Paiva, Bernardo Kucinski e Persio Arida. Mas terminou sendo muito mais que isso, a começar pela emocionante abertura, com o áudio da Rádio Nacional do Rio de Janeiro descoberto somente este ano pelo Arquivo Nacional, em que Rubens Paiva invocava a população a resistir ao golpe e apoiar o Governo democraticamente eleito do presidente João Goulart no dia 1° de abril de 1964. Cheia de interrupções provocadas por momentos comoventes, a mesa de fato devolveu os presentes ao clima de injustiça que permeou os anos de 1964 a 1985 e inclusive chegou a uma contundente conclusão: a ditadura brasileira não acabou.
Mediada pela antropóloga Lilia M. Schwarcz, o debate começou com a leitura que o escritor Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado desaparecido, fez de uma coluna que publicou no jornal O Estado de S. Paulo chamada Trabalhando o sal, sobre a luta da mãe, Eunice, para descobrir o paradeiro do marido. Ele se deteve várias vezes, emocionado não só pela ausência do pai, mas por falar da mãe em tom de reverência e rever seu passado sob a perspectiva de ser hoje, ele, o pai de um menino de cinco meses. “Isso me faz ler tudo com outros olhos, vocês não imaginam”, disse. Ao terminar, fez um alerta de algo que considera um erro comum ao se olhar para o passado: “Esse não foi um golpe contra a iminência de um Governo comunista. Meu pai mesmo era um playboy, filho de um dos caras mais ricos de Santos, andava de moto, etc, mas se envolveu na luta, como aconteceu com muitos. Falavam naquela época sobre ‘não perder o Brasil como perderam Cuba’, mas os interesses eram outros”.
Kucinski, Arida e Paiva. / W. CRAVEIRO
O jornalista Bernardo Kucinski, ex-militante da Aliança Libertadora Nacional, cuja irmã e cujo cunhado “desapareceram" nas mãos do Estado, leu um trecho de seu livro K (Cosac Naify), em que partiu de fatos reais para criar, na ficção, a história de um pai que não desiste de procurar a filha desaparecida. Foi seguido pelo economista Persio Arida, militante da ala juvenil da VAR- Palmares, formada por estudantes secundarias, e preso e torturado em 1970, quem leu parte das memórias que publicou na revista Piauí reconstruindo a experiência de quando tinha só 18 anos.
Os três comentaram o tema dos desaparecimentos, relacionando-o a uma segunda tortura que é praticada com os parentes dos torturados pelos militares. Paiva esclareceu que, no contexto das ditaduras do Cone Sul, um dos primeiros desaparecidos políticos foi registrado no Brasil, que exportou essa prática tão comum nas ditaduras da Argentina e do Chile. “Foi uma tática das Forças Armadas criada em função da troca de presos políticos por sequestrados”, afirmou. Kucinski recordou as diversas formas cruéis que cada um dos três países chegou a praticar nos anos de chumbo – “retalhar corpos no Brasil, jogá-los no mar na Argentina e em fossas comuns no Chile”. Já Arida falou sobre a perspectiva de ser quem “desaparece" por dias até a família descobrir seu paradeiro na prisão, o que lhe devolveu certa tranquilidade em meio ao terror.
Uma pergunta vinda do público sobre como é possível eliminar o que Lilia Schwarcz definiu ao princípio como os “vários silêncios que organizam a memória do Brasil sobre os anos de ditadura militar” e superar um tempo que não passou inspirou os participantes a avaliar a desinformação e o esquecimento que caracterizam a relação do brasileiro com esse passado. Para Marcelo Rubens Paiva, falava-se muito dos horrores da ditadura e “circulava muito material nos anos 70 e 80”, mas o que veio depois foi uma ampla ignorância sobre o tema, que “não é ensinado na escola” da maneira como realmente aconteceu. "Vou falar aqui de um amigo, que não vai gostar: o Roger do Ultraje a Rigor escreveu músicas ícones da campanha das Diretas, como Inútil, e hoje acusa a Dilma de terrorista. Se até gente que participou da redemocratização tem posições confusas, imagine as crianças que moram nas periferias das grandes cidades”, provocou.
Mas a conclusão mais interessante – e, essa sim, profundamente provocadora – veio de Kucinski, que afirmou não ter esperança no resultado das investigações da Comissão da Verdade. “A estratégia da chamada abertura lenta, gradual e segura foi totalmente bem sucedida. Os agentes detentores do poder, que apoiaram a ditadora, continuam poderosos. As Forças Armadas não se reciclaram, não trocaram a doutrina militar por uma doutrina cívica e, no Brasil, substituiu-se a ditadura militar por uma ditadura midiática”.
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