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Advogado - Nascido em 1949, na Ilha de SC/BR - Ateu - Adepto do Humanismo e da Ecologia - Residente em Ratones - Florianópolis/SC/BR

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segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Dos primórdios da Medicina, no Brasil



Médicos, doenças e remédios


Era dos jesuítas que a princípio se valiam, em caso de moléstia, os piratininganos. Foi o que se deu por ocasião da peste de 1563, espécie de varíola de qualidade muito brava. A começar pela garganta e pela língua, cobria-se o corpo inteiro de uma lepra. Apodrecidas, as carnes se destacavam, lançando intolerável cheiro e criando gusanos. Morriam os padecentes em três ou quatro dias. Os padres de Jesus serviam então de médicos, enfermeiros e boticários, assim aos índios, como os colonos. Combatiam a doença horrível com sangrias, e também cortando toda a carne, e depois lavando o corpo com água quente. Muitos, no dizer de Anchieta, recobraram a saúde com essas medicinas. Releva notar que não foi sem hesitação que os inacianos se iniciaram na prática da flebotomia. Mas, consultado, Santo Inácio respondeu lindamente que a tudo se estendia a caridade. 
Na falta de físicos e cirurgiões que acudissem à população, tanto nas bexigas, priorizes, tabardilho, câmaras de sangue e outras doenças gerais, como nos casos ordinários, sobejavam mezinheiros, triagueiros, benzedeiros e curandeiros de toda a casta. A tal ponto, que a edilidade se via forçada a regular o assunto. Nessa época a fiscalização das profissões sanitárias competia cumulativamente às Câmaras e ao físico-mor e seus comissários. Da sobrevivência dessa concepção arcaica no espírito de nossos vereadores dá testemunho a licença concedida em 1871 pela câmara municipal de São Carlos do Pinhal a dois indivíduos não diplomados, que se propunham a exercer a medicina, por não haver na terra quem pudesse fazê-lo com proficiência. A medida tomada pelos edis de 1579 (a receita continua a ser a mesma) consistiu na criação de um cargo. Ao barbeiro Antônio Rodrigues, homem experimentado e examinado, couberam as funções de juiz do ofício dos físicos, seguindo-se daí que todo o que curasse não pudesse curar, nem usar da dita cura de sangria, sem sua licença ou carta de examinação. Não queria isso dizer que os leigos ficassem impedidos de fazer as ditas curas em suas casas, ou ainda em negócio ou caso fortuito, ou finalmente na ausência do mestre barbeiro. Era o tempo em que, mesmo na metrópole, bastava um simulacro de exame perante o físico-mor ou cirurgião-mor do reino, para ser admitido ao exercício da arte qualquer indivíduo, com estudos sumaríssimos, que houvesse frequentado um hospital ou acompanhado por dois anos a clínica de um físico. Médicos idiotas, assim chamava o povo expressivamente a esses antepassados dos doutores de sessenta mil-réis, com que nos felicitou uma das últimas reformas do ensino. Milhares de idiotas assolaram as províncias portuguesas, provocando o clamor de vítimas sem-número e o protesto das cortes. Até às vésperas da independência continuou em todo o Brasil a carência de profissionais habilitados. Ainda em 1804 o único cirurgião aprovado existente em São Paulo era o cirurgião-mor da Legião; e esse mesmo tão desprovido de instrumental, que se utilizava, para as amputações, de uma serra de carpinteiro. Mais venturosa, a Bahia teve desde 1553 um protomedicado. O primeiro físico-mor foi o Licenciado Jorge Fernandes. O mestre Pedro e o mestre Jorge de Valadares desempenhavam a esse tempo as funções de selorgião na capital da Colônia. Em Pernambuco nunca passaram de três os médicos graduados, sem embargo de haver, só na povoação do Recife, dois mil fogos e cerca de trinta mil nacionais indivíduos adultos e párvulos, ao que informa deliciosamente Manuel dos Santos. Aí vivia em fins de 1730 um médico de nome Domingos Filipe de Gusmão. Foi quem assistiu o Capitão João Leite da Silva Ortiz na doença de bexigas de que faleceu, cobrando 4$800 pelo tratamento. 
Do reino vinham alguns tentar fortuna no Brasil. Mas de tamanha ignorância eram eles, que arrancavam a frei Caetano Brandão, o esclarecido bispo do Pará, estas palavras indignadas: “é melhor tratar-se a gente com um tapuia do sertão, que observa com mais desembaraçado instinto, do que com o médico de Lisboa”. 
Aos habitantes das povoações litorâneas acudiam de vez em quando os físicos das frotas. Vinham de longe em longe e pouco se demoravam. Partidos os comboios, os moradores se viam entregues de novo à inépcia dos barbeiros e dos práticos preparados nos hospitais do tempo e examinados superficialmente pelos delegados ou suplentes do físico-mor, que lhes concediam sem escrúpulo a virtutem et puissantiam medicandi, purgandi, saignandi, perçandi, taillandi, coupandi et occidenti per totam terram, consoante a fórmula macarrônica de Molière. Uma lástima. Em 1609 Antônio Rodrigues continuava a ser o esculápio da vila. Não se contentava, porém, com o seu mister de barbeiro e o seu cargo de juiz dos físicos. Nos vagares que lhe deixavam a tenda e o consultório, desempenhava também as funções de escrivão de órfãos. É como se explica o termo contido no inventário do Pedro Álvares: e logo se vendeu e arrematou as quatro colheres em Manuel Godinho por dois mil cento e sessenta réis pagos logo ao curador os quais mandou dar o juiz de sangrias e curas que fiz ao defunto, de que me prometeu um quintal de algodão que valia oito pesos. 
Só em 1638 a documentação em estudo anuncia a presença de um cirurgião aprovado. Chama-se ele Paulo Rodrigues Brandão.

É o signatário do primeiro atestado médico de que entre nós se tem conhecimento. Despachando a petição em que Maria Barros, dona viúva de João de Sousa, pede licença para despender o necessário com o curativo de um filho menor, das quais feridas se não levanta e corre perigo, manda o Juiz Quebedo justifique quem o cura o estado em que está. Segue-se o atestado: Satisfazendo ao despacho do senhor juiz dos órfãos, certifico eu, Paulo Rodrigues Brandão, cirurgião aprovado, que vi ao órfão Pedro com duas grandes chagas na perna esquerda, de que corre perigo. Autorizada a despesa até a quantia de quatro mil-réis, visto a justificação do físico, tarda apenas um mês o restabelecimento do enfermo, segundo se vê da clareza ou recibo de honorários: Certifico que eu curei a Pedro, filho de João de Sousa, já defunto, e lhe dei o azougue, do que tudo me deu dez patacas. Bem pode ser que seja filho desse cirurgião aprovado aquele Francisco Rodrigues Brandão que, em 1671, cobra sete mil-réis em dinheiro de contado e mil réis e cinquenta mãos de milho, pela cura de um negro de Bento Pires Ribeiro. Há também uma referência rápida ao cirurgião Salvador Fernandes, que nesta vila foi morador em meados do século XVII. João Lopes e João Gulhote aqui exerceram a cirurgia em 1711. Serviram eles de peritos na mais antiga diligência médico-legal de que dão notícia os autos divulgados. Vale a pena resumir o caso. No inventário de Matias Rodrigues da Silva, que Deus terá, alega José Ramos da Silva ter recebido em pagamento de seu crédito duas negras com achaque intrínseco, fato que os avaliadores não podiam conhecer, porque fizeram a avaliação pelo foro externo; e pede, em consequência, ao desembargador sindicante, se faça vistoria nas ditas negras pelos cirurgiões desta vila, para que digam e declarem o achaque que as ditas negras têm ou se estão capazes de se receber. Vistas as negras, disseram os peritos, debaixo do juramento aos Santos Evangelhos, que uma padecia de obstrução já antiga, de que podia ter cura, e a outra tinha duas mulas, ambas de duas abertas, e uma delas formada sobre uma banda, de que podia ter cura, tomando os medicamentos necessários. Mais ou menos por esse tempo (1729) Vicente Ferreira clini-cava em Utu. Sabemo-lo por uma conta de honorários, na importância de 14$400, procedidos da cura que fez a um cliente. 
Mateus Leme foi provavelmente barbeiro, sangrador e dentista. Possuía, quando menos, todo o instrumental do ofício: uma navalha velha, uma pedra de navalha, uma tesoura de barbear, cinco lancetas em que entra uma agulha, uma caixa onde está a botica, três ferros de botica, seis ferros de tirar dentes, onde entra uma alçaprema e um boticão e um escarnador e dois alicates e um botador. João da Costa, o iracundo ermitão de Santo Antônio, deixou a seus herdeiros um estojo com uma tesoura e duas navalhas e uma pedra e um pente; outro estojo de cirurgia com seis lancetas e umas agulhas e uma pinça e um cautério; dois arráteis e meio de azougue; um boticão e dois escarnadores e mais dois ferros como tenazes. Se o encontro de dois boticões vidrados de bom uso no espólio do milionário Mateus Rodrigues da Silva não tem maior significação, a ferramenta de João da Costa está a indicar o que fazia o de cujus antes de entregar-se à vida ascética: o homem era barbeiro, com os anexos do estilo.
 
Sabe toda a gente a importância do papel desempenhado pelos fígaros na medicina antiga. Pertence-lhes de direito a sangria, a escarificação, a aplicação de ventosas e sanguessugas e em geral as operações de pequena cirurgia, indignas de um físico ou cirurgião de qualidade. Ora, a sangria é então panaceia vitoriosa, o remédio universal. Zacuto Lusitano recomenda-a com entusiasmo nas hemoptises e até na conjuntivite blenorrágica; Duarte Arrais aconselha a flebotomia dos membros inferiores. Os médicos portugueses são insaciáveis de sangue, escreve Rodrigo da Fonseca. A justificar a assacadilha, diz um adágio popular que em Lisboa não há sangria má, nem purga boa. Sangram-se os doentes; a sangria é remédio para tudo. E também o são: a sangria conserva a beleza e previne a moléstia. Pelas constituições de Pombeiro os monges têm de submeter-se de dois em dois meses à sanguileixia. Determina o fundador do Mosteiro de Tojal que, mesmo em saúde, as recolhidas sejam sangradas duas vezes por ano. Daí se vê que Molière se limita a exprimir a doutrina corrente nos meios científicos e populares, quando põe na boca de uma de suas personagens estas palavras: comme on boit pour la soif à venir, il faut aussi se soigner pour la maladie à venir. No Brasil não podia ser outra a concepção reinante. Curvo Semedo, que nos visitou por volta de 1691, testemunha que na colônia, como na metrópole, os físicos sangravam os doentes vinte e trinta vezes até morrerem, persuadidos, como estavam, de que todos os males eram atribuíveis à sobejidão do sangue. Não há exagero nas palavras do médico alentejano. A prova está no requerimento, em que o curador de órfãos de João Gomes pede a reforma das contas tomadas à sua revelia, alegando que não havia comparecido em juízo por motivo de doença, de maneira que foi sangrado mais de trinta vezes e ainda hoje está muito enfermo. À lanceta do sangrador, o Juiz D. Francisco de Rendon preferia os cozimentos ou apózemas. Esclarece bem o caso esta curiosa certidão: e pelo juiz dos órfãos... foi mandado a mim escrivão... fosse notificar aos avaliadores... que porquanto ele dito juiz estava doente tomando os apózemas nela e não poder sair fora dela, fossem os ditos avaliadores à casa e fazenda do dito defunto... do que eu escrivão dou fé estar o dito juiz de órfãos doente metido em os apózemas, do que se fez este termo. Outros se valiam da flora indígena, estudada e experimentada pelos brasis. Nessa convicção estava Baltasar da Silva. Apertado pelo credor, manda-lhe, em vez do dinheiro, um remédio: a negra também leva essas ibacuíbas para Vossa Mercê comer cada pela manhã uma assada; pr’amor dos vômitos é bom.

Qual seria o tratamento do sarampo, da peste de sarampão, que dizimava a indiada, das alporcas ou escrófulas, e especialmente do venenoso e contagioso mal de bexigas, que assolou durante longo tempo a capitania? Sabe-se apenas que as vítimas da varíola eram enterradas alta noite. Escasseiam alusões a outras doenças. Aqui se fala de algum enfermo de ar e paralisia; ali de doentes d’alma, impedidos dos sentidos naturais; acolá de vítimas de gota coral e de mulas. 
Ao ofidismo, acidente que devia ser muito comum naquele tempo, se refere somente um testador, falecido no sertão de uma mordedura de uma cobra. Vem a talho a passagem da Polianteia Medicinal, de Curvo Semedo, em que explica por que a mordedura da cobra mata aos mordidos e os faz inchar e resfriar; como tal veneno fixa e congela o sangue por falta de circulação e comunicação os espíritos se resfriam e incham, porque os humores estagnam como a água que não tem passagem franca. 
E o remédio: como todo o dano da mordedura consiste no sal fixo da víbora, que coalha o sangue, todo o remédio está no sal volátil da mesma víbora, que adelgaça o sangue e facilita a circulação. A essa terapêutica é bem provável que os paulistas de então preferissem a pedra bazar, concreção pedregosa que se forma no estômago, nos intestinos ou na bexiga de certos animais, e à qual atribuíam grandes virtudes os médicos do Oriente, principalmente como antídoto. 
Como se combatia a peste geral deste sertão, que dizimava os soldados das bandeiras e os comboios de índios preados? Ignoramo-lo. Talvez os desbravadores pusessem toda a sua confiança nesta oração milagrosa, com que à hora da partida limpavam os caminhos, traçando uma cruz no ar, ao nomearem cada uma das pessoas divinas. “Em nome de Deus Padre, em nome de Deus Filho, em nome do Espírito Santo, ar vivo, ar morto, ar de estupor, ar de perlesia, ar arrenegado, ar excomungado, eu te arrenego em nome da Santíssima Trindade”...
 
Fonte: ALCÂNTARA MACHADO - Vida e morte do bandeirante - ps. 69 e seguintes.  

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