O grupo Odebrecht foi condenado ao pagamento de indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 50 milhões por escravidão de trabalhadores mediante aliciamento e tráfico internacional de pessoas nas obras de construção de uma usina de cana-de-açúcar em Angola. A decisão representa a maior condenação por trabalho escravo da história da Justiça brasileira. O autor e os réus podem recorrer da sentença ao Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região.
Segundo as provas integrantes do processo movido pelo Ministério Público do Trabalho, a Odebrecht atuou premeditadamente para que os trabalhadores brasileiros não tivessem o visto adequado para trabalhar no país africano, uma forma de coação para que não saíssem do canteiro de obras.
A sentença proferida pelo juiz Carlos Alberto Frigieri, da 2ª Vara do Trabalho de Araraquara (SP), determina que o grupo deixe de “realizar, promover, estimular ou contribuir à submissão de trabalhadores à condição análoga a de escravo”, sob pena de multa diária de R$ 200 mil.
O juiz também fixou que a empresa não utilize em seus empreendimentos no exterior mão de obra contratada no Brasil, “enviada ao país estrangeiro sem o visto de trabalho já concedido pelo governo local”, sob pena de multa diária de R$ 120 mil. Além disso, estabelece que a companhia não realize intermediação de mão de obra com o envolvimento de aliciadores sob pena de multa de R$ 100 mil.
Condições indignas
O inquérito contra o grupo Odebrecht foi instaurado pelo procurador Rafael de Araújo Gomes a partir da publicação de uma série de reportagens veiculadas pela BBC Brasil, mencionando a existência de inúmeras condenações proferidas pela Justiça do Trabalho, reconhecendo a submissão de trabalhadores brasileiros, contratados na cidade de Américo Brasiliense (SP), a condições degradantes de trabalho após terem sido enviados para trabalhar em Angola.
As obras pertenciam, alegadamente, à Biocom/Companhia de Bioenergia de Angola Ltda., empresa angolana da qual são sócios a Odebrecht Angola, empresa do grupo multinacional brasileiro Odebrecht, a Sonangol Holdings Ltda., vinculada à estatal petrolífera de Angola, e a Damer Industria S.A. (empresa privada da qual são sócios dois generais e o vice-presidente de Angola). Atualmente, a Damer foi substituída pela Cochan S.A., pertencente a apenas um desses generais.
As provas produzidas nas dezenas de reclamações trabalhistas movidas contra a Odebrecht e a Pirâmide Assistência Técnica Ltda. (formalmente, uma prestadora de serviços da Biocom) revelam que os trabalhadores envolvidos em montagens industriais eram submetidos a condições indignas de trabalho, particularmente no que se refere a instalações sanitárias, áreas de vivência, alimentação e água para beber. Vários trabalhadores adoeceram em razão das condições a que foram submetidos.
Constam no processo movido pelo Ministério Público do Trabalho depoimentos de trabalhadores que explicitam as condições degradantes às quais eles foram expostos. Os operários dizem que nas refeições era servida uma carne vermelha que se imaginava ser bovina. No entanto, a partir de informações que obtiveram do próprio cozinheiro, descobriram que se tratava de carne de jiboia. Na cozinha do refeitório, era comum a presença de baratas e ratos — um roedor foi visto morto entre os pratos.
Em depoimentos prestados à Justiça, os trabalhadores relataram que os ambientes na obra eram muito sujos e que os banheiros, distantes do local de trabalho, permaneciam sempre cheios e entupidos, obrigando os operários a evacuar no mato. A água consumida era salobra, e a comida, estragada. Na obra, havia, em média, 400 trabalhadores registrados em Américo Brasiliense pela Pirâmide.
Tráfico de pessoas
Além da submissão a condições degradantes de trabalho, descobriu-se que os trabalhadores recrutados foram submetidos ao aliciamento, primeiramente em território nacional e a seguir no exterior, tratando-se de hipótese típica de tráfico de seres humanos. As contratações aconteceram entre 2010 e 2014.
Segundo o inquérito, de forma planejada, a Odebrecht, com a colaboração de representantes da Pirâmide, da W. Líder e de uma terceira subcontratada chamada Planusi, predeterminou o ingresso de todos os trabalhadores enviados a Angola na condição de estrangeiros ilegais no país, sujeitos a sanções previstas na legislação angolana, inclusive prisão, por não estarem autorizados a trabalhar no país.
Todos os trabalhadores, depois de contratados no Brasil, eram enviados ao exterior com apenas o visto ordinário aposto nos seus passaportes, o que é considerado crime em Angola. Como resultado, os trabalhadores que foram apanhados na cidade de Cacuso pela polícia angolana foram presos, sendo que a maioria preferiu, depois disso, não sair dos alojamentos na própria obra.
A prova reunida pelo MPT demonstra que os trabalhadores brasileiros foram também submetidos ao cerceamento de sua liberdade, inclusive mediante a apropriação de documentos com o propósito de serem mantidos confinados no canteiro de obras.
Além disso, não era disponibilizado pelos empregadores qualquer transporte para sair, ainda que aos finais de semana e nas folgas, do canteiro de obras, distante vários quilômetros da cidade mais próxima. A Odebrecht mantinha na entrada do canteiro guardas armados, que eram instruídos a não deixar os trabalhadores saírem.
Responsabilidade apontada
Na ação civil pública, o MPT credita toda a responsabilidade pelo aliciamento, tráfico internacional de seres humanos e submissão de trabalhadores a condições análogas à escravidão ao grupo Odebrecht. A estratégia de defesa utilizada pela empreiteira para se eximir de qualquer responsabilidade com relação aos fatos é a de que a Biocom é uma empresa estrangeira independente: embora integre o grupo Odebrecht, a construtora jamais teve qualquer relação com ela ou com as obras de construção da usina. A tentativa é de alegar a incompetência da Justiça brasileira utilizando este argumento.
Na decisão, o magistrado afirma: “Contrariando essa alegação defensiva e revelando a verdade real, está o depoimento do sócio proprietário da CML - Caldeiraria, Mecânica e Locação Ltda., Enoque Pedro de Alcântara ao Ministério Público do Trabalho, afirmando que a Construtora Norberto Odebrecht foi responsável por todas as obras de construção civil na Usina (de Angola)”.
Financiamento do BNDES
Um dos pedidos do MPT que não foram apreciados pelo juízo, que concluiu pela incompetência da Justiça do Trabalho para isso, foi a condenação das empresas do grupo Odebrecht ao não recebimento de incentivos e empréstimos concedidos por qualquer órgão público ou instituição financeira pública, inclusive o BNDES. Segundo contratos e recibos de pagamento relacionados à obra, esta teria sido financiada com dinheiro do BNDES, mas não há qualquer registro público da concessão do financiamento: publicamente, ele não existe.
“O sigilo com relação a financiamentos para Angola pode ocultar, na verdade, o segredo de que a real beneficiária do financiamento pelo BNDES não é a Biocom ou o governo angolano, mas a Odebrecht. Mas essa não seria toda a história, pois não é crível que os parceiros angolanos concordassem com isso sem uma compensação à altura. E se estamos a falar em “parceiros angolanos”, estamos falando, muito claramente, do círculo íntimo do presidente da república, José Eduardo dos Santos, há 34 anos seguidos no poder”, diz o procurador Rafael de Araújo Gomes.
Dessa forma, o dinheiro utilizado para remunerar as contratadas da Biocom pode ter vindo, diretamente, da brasileira Construtora Norberto Odebrecht ou da Odebrecht Agroindustrial. Nesse caso, não haveria a condição, exigida pela legislação tributária (leis 10.637 e 10.833), para a não incidência de PIS e COFINS, dado que não se verificaria o “ingresso de divisas” vindas do exterior. A lei 11.371/2006 permite que o exportador mantenha aplicadas no exterior as divisas recebidas, sem o pagamento desses impostos, mas os exportadores são as contratadas da Biocom, empresas brasileiras como a Pirâmide, que receberam no Brasil o seu pagamento, com depósito em conta pela Olex. Com informações da Assessoria de Imprensa do MPT.
Leia a nota do Grupo Odebrecht sobre o caso:
As Rés obtiveram informações, pela imprensa, de que teria sido prolatada sentença nos autos da ação civil pública e que tão logo tenham acesso à íntegra da decisão, irão se manifestar.
Não obstante, conforme comprovado de forma ampla nos autos testemunhalmente e documentalmente, as Rés reforçam que: as acusações constantes da ação referem-se exclusivamente à obra da Biocom, empresa angolana da qual uma das Rés detém, indiretamente, participação minoritária; a usina da Biocom não foi construída pelas Rés, mas sim por empresas especializadas e contratadas pela Biocom; as condições de trabalho nas obras da Biocom sempre foram adequadas e aderentes às normas trabalhistas e de saúde e segurança vigentes em Angola e no Brasil, incluindo quanto às condições de alojamento, transporte, sanitárias e de alimentação (três refeições diárias, produzidas em cozinha industrial e com supervisão de nutricionista, além do fornecimento de água potável), e saúde, incluindo presença de serviço médico local e ambulatório;
Nunca existiu qualquer cerceamento de liberdade de qualquer trabalhador nas obras de Biocom. Os trabalhadores tinham ampla liberdade de locomoção dentro de Angola e para retornar ao país a qualquer momento, incluindo em datas festivas nas quais diversos trabalhadores voltaram ao Brasil e depois retornaram para Angola, bem como os trabalhadores tinham acesso gratuito à internet (das quais efetivamente fizeram uso com diversas postagens em redes sociais que foram juntadas aos autos e que demonstram tal liberdade de ir e vir), telefone, inclusive para chamadas internacionais, televisão e áreas de lazer.
A expatriação de trabalhadores sempre foi realizada observando a legislação brasileira e angolana. A decisão não é definitiva. As Rés apresentarão o competente recurso.
Revista Consultor Jurídico, 1 de setembro de 2015, 21h41
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