*Texto originalmente publicado no jornal Folha de S.Paulo desta sexta-feira (14/10) com o título Os limites da delação premiada.
Aclamada como a mais importante inovação das investigações brasileiras, a colaboração premiada deve ser colocada em seu devido lugar. É um importante instrumento de investigação, mas tem limites que devem ser observados para que não se transforme em um dispositivo de arbítrio, vingança ou injustiça.
No Brasil, a colaboração premiada demorou a ganhar terreno, por compreensível resistência no meio jurídico. O país viveu um regime autoritário e o recurso à delação foi um dos instrumentos da repressão para desbaratar grupos de resistência.
A figura do delator era associada à do companheiro de armas que muda de lado, que colabora com o regime totalitário.
Nos últimos anos, contudo, o instituto da colaboração premiada se transformou. Não se trata mais de um instrumento extralegal de perseguição, mas de um dispositivo regulado por lei, supervisionado por um juiz, pautado por cláusulas formais. A Lei 12.850/13 fixou regras precisas para a colaboração, detalhando seu processamento e o papel dos participantes.
Por isso, para usar e noticiar a colaboração, é necessário conhecer sua natureza e limites. Em primeiro lugar deve, ficar claro que delação premiada não é prova, mas meio de obtenção de prova. São coisas distintas.
A prova é capaz de sustentar uma acusação ou uma condenação. O meio é apenas um instrumento para que as autoridades possam alcançar provas efetivas. As palavras do delator não demonstram fatos. Apenas indicam onde pode ser encontrado o material que comprove o ocorrido.
O colaborador não é isento. É um investigado, confessadamente envolvido na prática delitiva, que sofrerá os efeitos da condenação — ainda que de forma mais branda — e pode ter interesse em fazer prevalecer uma versão distorcida do ocorrido, seja para proteger alguém, seja para obter mais benefícios. No jargão jornalístico, é uma fonte não confiável, cujas informações devem ser checadas antes da publicação.
Na Itália, nos anos 1980, um popular apresentador de televisão chamado Enzo Tortora foi mencionado por diversos colaboradores como envolvido no tráfico de cocaína. Teve sua carreira destroçada, ficou meses preso, até que a farsa fosse revelada. Descobriu-se que integrantes da organização criminosa Nova Camorra delataram Tortora porque era alguém importante.
Envolvê-lo em seus relatos seduzia as autoridades pela popularidade do escândalo e afastava a necessidade de delatar os reais líderes do crime organizado. Anos depois, Tortora foi absolvido, desfecho irrelevante para a vergonha pretérita.
A história italiana é um alerta. A colaboração premiada é importante, desde que não se perca a perspectiva de que se trata de um depoimento parcial, válido apenas se acompanhado de elementos materiais de prova, como e-mails, comprovantes de pagamento, gravações.
Determinar a prisão, a busca e apreensão ou a condenação com base exclusiva em depoimentos de colaboradores é desconhecer a lei, a natureza do instituto e as más experiências estrangeiras.
Em suma, a delação premiada é importante para a investigação criminal, mas deve ser usada com a devida cautela. Compreender o caráter probatório precário e as fragilidades é um primeiro passo para o manejo responsável do instituto, evitando-se que sua distorção enseje injustiças, tanto na seara jurídica quando sob um prisma jornalístico.
Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 14 de outubro de 2016, 8h47
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