12 de outubro de 2020, 17h32
Hoje é dia de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, feriado nacional reconhecido pela Lei 6.802, de 30 de junho de 1980. O artigo 1º é claro ao declarar feriado nacional no dia 12 de outubro, para culto público e oficial a Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil (grifo nosso). Portanto, é um feriado religioso, destinado a permitir o culto da Padroeira do Brasil de forma pública e oficial.
Assim, este símbolo, bem, como outros (a Cruz fixada acima da cadeira do Presidente do Supremo Tribunal Federal, por exemplo), tendem a nos fazer questionar o laicismo do Estado. E para isto, necessária a primeira pergunta fundamental: o que é um Estado Laico?
Ser laico é opor-se ao domínio religioso nas funções do Estado. Não é a oposição às religiões, mas a neutralidade em relação às mesmas. O Estado laico, neste sentido, não é oponente a qualquer religião, mas sim é neutro em relação às crenças religiosas, neutralidade que se estende, inclusive àqueles que não seguem nenhuma religião.
A laicidade do Estado Brasileiro poder ser identificada na Velha República, com a adoção do Decreto nº 119-A, de 7 de janeiro de 1890, o qual estabeleceu a proibição da intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado. Este Decreto histórico, pelo símbolo que representa na formação da nossa tradição jurídica laica, chegou a ser revogado em 1991, pelo Decreto nº 11, na panaceia de simplificação do sistema jurídico brasileiro, mas acabou, corretamente revigorada pelo Decreto nº 4.496 de 2002. Tal revogação realizada, em 1991, sem a devida ponderação histórica, seria equivalente ao absurdo de querer revogar a Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888, mais conhecida com a Lei Áurea. Em outras palavras, conquistas civilizatórias não podem retroagir.
Assim, o laicismo do Estado não é a oposição às religiões, mas o reconhecimento do livre direto de crença em relação a todas elas, inclusive àqueles que não professam nenhuma. Portanto, todos têm o direto de serem protegidos. E aqui reside um ponto fundamental: o que a Constituição protege não e a religião em si, mas a liberdade de crença. Este é o direito fundamental garantido na Constituição.
Esta compreensão na necessidade da neutralidade do Estado em face à religião tem origem nas guerras religiosas que devastaram o mundo. Desde as guerras civis na Inglaterra que resultou na pacificação ocorrida com a Revolução Gloriosa de 1680; a Guerra dos Trinta Anos que devastou as diversas províncias que compunham a Alemanha atual; bem como as disputas religiosas na França que tiveram seu terrível ápice no Massacre da Noite de São Bartolomeu de 1572. Em todos estes eventos aparece uma característica fundamental: a intolerância religiosa era o principal causador de guerras e destruição destes mesmos países. Todas estas guerras e conflitos foram baseados na intolerância à diferença e na tentativa de impor uma crença sobre os demais.
O Estado democrático, ao contrário desses exemplos históricos, deve proteger a tolerância e a diferença, ou, como diz a nossa Constituição, proteger valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
A nossa Constituição protege todas as religiões, seja quando afirma que é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (art. 5º, inciso VI); seja quando afirma que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei (art. 5º, inciso VIII).
O laicismo estatal, portanto, não é um Estado ateu, mas um Estado tolerante e respeitoso. Um Estado que protege os indivíduos em sua intimidade religiosa ou não religiosa. Representa uma imposição história da irredutibilidade da crença individual, não sendo a função do Estado determinar a crença de cada indivíduo, religiosa ou não. Ao Estado cabe a sua proteção.
Ser evangélico, judeu, islâmico, católico ou ateu no Supremo Tribunal Federal deve ser indiferente, pois todos os componentes desta alta Corte têm uma responsabilidade: proteger o direito de todas as pessoas exercerem ou não as religiões e crenças. E no Supremo Tribunal Federal deve existir apenas uma Bíblia: a Constituição.
Luís Inácio Adams é advogado, ex-procurador da Fazenda Nacional, foi Advogado-Geral da União (2009 a 2016).
Revista Consultor Jurídico, 12 de outubro de 2020, 17h32
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