No dia 23 de março de 2023 o pleno do Supremo Tribunal Federal reanalisará a possibilidade e os limites dos poderes investigatórios do Ministério Público em três ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 2.943, 3.309 e 3.318), da relatoria do ministro Edson Fachin.
A atividade de investigação de condutas criminais é de interesse público, ao mesmo tempo que exige a conformidade quanto à atribuição, à transparência, à conformidade, aos prazos e, principalmente, quanto à supervisão judicial. O tema é controverso e a Corte analisou a temática em várias ocasiões, prevalecendo, até o momento, o reconhecimento dos poderes investigatórios.
Dada a relevância do precedente, destaca-se o julgamento, em 15.04.2015, do Recurso Extraordinário 593.727/MG, originariamente de relatoria do ministro Cezar Peluso, cujo acórdão foi redigido pelo ministro Gilmar Mendes. Na ocasião, o Tribunal Pleno assentou, no âmbito da repercussão geral, não apenas que o Ministério Público dispõe de atribuição própria para promover investigações de natureza penal, como também — e aqui está o ponto que merece destaque — estabeleceu a necessidade de que esses procedimentos estejam sujeitos a permanente controle jurisdicional.
Constou da tese fixada:
"O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei nº 8.906/94, art. 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no Estado Democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante nº 14), praticados pelos membros dessa instituição."
A decisão é relevante e merece ser lembrada não apenas pelo aspecto autorizativo — atribuição de poder a um órgão estatal — mas principalmente pelos limites, restrições e condicionantes que foram demarcados pelo tribunal. Afinal, a tese de repercussão geral aprovada pelos ministros foi clara ao condicionar o exercício dessas prerrogativas à observância de (i) prazo razoável; (ii) direitos e garantias que assistem a qualquer investigado; (iii) prerrogativas outorgadas por lei aos advogados (artigo 7º da Lei nº 8.906/94); (iv) necessidade de documentação de todos os atos praticados pelo Estado, sujeitos a permanente controle jurisdicional.
Ante a clareza da tese firmada no julgamento, é certo que, no âmbito de procedimentos investigativos instaurados pelo Parquet, devem ser observadas certas formalidades procedimentais, necessárias para a garantia de liberdades públicas e aos direitos fundamentais. Afinal, a legitimidade dessa espécie de apuração será tanto mais cristalina quanto mais plurais e mais fortes se tornarem os limites e os instrumentos de controle impostos aos investigadores.
O Conselho Nacional do Ministério Público editou a Resolução 181/2017, atualizada pela Resolução 183/2018, com a finalidade de regulamentar o Procedimento Investigatório Criminal, dispondo no artigo 1º: "O procedimento investigatório criminal é instrumento sumário e desburocratizado de natureza administrativa e investigatória, instaurado e presidido pelo membro do Ministério Público com atribuição criminal, e terá como finalidade apurar a ocorrência de infrações penais de iniciativa pública, servindo como preparação e embasamento para o juízo de propositura, ou não, da respectiva ação penal". Além disso, determina a devida motivação da Portaria de abertura (artigo 4º), indica as diligências possíveis (artigo 7º), a participação do autor do fato (artigo 9º), o direito de acesso e o sigilo (arts. 15 e 16), o prazo de 90 dias e a supervisão do órgão superior (artigo 13), além da participação da vítima (artigo 17).
Do ponto de vista normativo, embora por meio de resolução, o regramento poderia atender aos propósitos iniciais se devidamente observado e, também, se houvesse sanção à inobservância, ou seja, a desconformidade gerasse consequências quanto à invalidade da apuração. Ademais, existem lacunas relevantes quanto ao momento de indiciamento, Do contrário, trata-se de mais um exemplo da "falácia garantista". Aliás, o CNMP foi acionado nos autos do Processo: 1.00312/2018-13 (Pedido de Providências), justamente por violação da Súmula Vinculante 14 por parte do Ministério Público do Amapá, tendo sido deferido o pedido de acesso (aqui).
Causam perplexidade, portanto, os inúmeros casos que são alçados ao conhecimento do Poder Judiciário, retratando investigações conduzidas por muitos meses ou anos, em procedimentos obscuros, conduzidos sem nenhuma transparência no interior de gabinetes de membros do Ministério Público. Chamam a atenção que muitas delas são encerradas sem a produção de quaisquer elementos indicativos de responsabilidade penal dos envolvidos, com indícios de possíveis desvios éticos na persecução penal.
Nesse contexto, a possibilidade — hoje, bastante comum — de arquivamento direto do procedimento, sem a cientificação dos investigados, nem controle por órgão externo, permite que essas prerrogativas sejam exercidas à revelia do dever de prestação de contas (accountability), inerente a todo agente estatal. Os alvos investigados e a comunidade em geral são excluídos dos mecanismos democráticos de escrutínio da causa da instauração, das diligências realizadas, impedindo a obtenção de providências de prestação de contas quanto à motivação da investigação.
Quanto a isso, destacamos a advertência feita por Alberto Zacharias Toron[1] (Habeas Corpus: controle do devido processo legal, questões controvertidas e de processamento do writ, 5ª edição, São Paulo, Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 210), para quem, no campo do processo penal, há limites cognitivos e operativos impostos à atividade persecutória estatal erigidos em nome de uma ética reconhecida pelo documento maior de nossa cidadania. Na precisa síntese de claus roxin, num Estado de Direito a regulação dessa situação de conflito não é determinada através da antítese Estado-cidadão; o Estado mesmo está obrigado por ambos os fins: assegurar a ordem por meio da persecução penal e proteção da esfera de liberdade do cidadão.
Assiste razão a Aury Lopes Jr. quando afirma que, no Brasil, existe um amorfismo investigatório, que tem gerado investigações por parte do Ministério Público tão ou mais inquisitoriais do que aquelas que são feitas por órgãos policiais[2]. Defende o autor a necessidade de estabelecimento de parâmetros claros, que devem ser objeto de intransigente fiscalização pelo Poder Judiciário, para obtenção de maior transparência e legitimidade na condução de investigações pelo Ministério Público, a começar pelo efetivo indiciamento quanto obtidos elementos suficientes, evitando-se o adiamento tático da participação defensiva na atividade investigatória.
Evidentemente, todo brasileiro almeja o incremento dos instrumentos estatais de persecução penal, capazes de permitir uma maior eficácia na repressão de infrações criminais. Daí a afirmar que ao Ministério Público devem ser assegurados poderes investigatórios quase absolutos, infensos a qualquer espécie de controle externo, vai uma distância que beira o irracional.
Naturalmente, a expansão dos poderes investigatórios para órgãos distintos das corporações policiais deve ser acompanhada por um olhar crítico, atento à necessidade de estabelecimento de mecanismos efetivos de controle, sob pena de se verificar a "falácia garantista", apontada por Luigi Ferrajoli[3] isto é, quando a declaração genérica de direitos não encontra respaldo em instrumentos procedimentais aptos à sua garantia e/ou efetivação.
A liberação para julgamento das referidas ações de controle concretado franqueará, assim, uma auspiciosa oportunidade para que a Corte, no contexto das relações entre os agentes estatais e os cidadãos submetidos a investigações criminais, debata a necessidade, caso mantida a possibilidade, de incremento das salvaguardas institucionais aplicáveis às investigações conduzidas pelo Ministério Público.
Entre outras muitas iniciativas capazes de promover esse relevante objetivo, espera-se que os ministros cerrem fileiras em defesa da submissão de tais procedimentos preparatórios a controle jurisdicional permanente, especialmente quanto à instauração, à duração e ao encerramento das investigações. Trata-se de diretriz que encontra eco na jurisprudência do Tribunal, que há muito atribui ao Poder Judiciário o dever de determinar o trancamento de inquéritos manifestamente incabíveis, abusivos, prolongados e/ou maliciosos. Assim, nas hipóteses em que se verifica, de plano, a extinção da punibilidade, a atipicidade do fato, a inexistência de justa causa ou o uso de prova ilícita, cabe ao juiz determinar o imediato trancamento das investigações (HC 96.055, Rel. Min. Dias Toffoli, 1ª Turma, julgado em 6.4.2010; RE 467.923, Rel. Min. Cezar Peluso, 1ª Turma, julgado em 18.4.2006; AP-QO 913, Rel. Min. Dias Toffoli, 2ª Turma, julgado em 17.11.2015.
Rememore-se que, recentemente, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal determinou, de ofício, o arquivamento de inquérito pendente sem que houvesse justa causa para prosseguimento das investigações (Pet-AgR 7.354, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 6.3.2018). Igualmente, o Min. Alexandre de Moraes determinou o arquivamento de inquérito, concluído havia meses com relatório policial, sem ulterior impulso pelo Ministério Público Federal (Inq 4.429, decisão de 8 de junho de 2018).
O ministro Roberto Barroso determinou providência semelhante em inquérito de sua relatoria (Inq. 4.442, decisão de 6.6.2018). Naquela oportunidade, observou que a prerrogativa pública de realizar apurações não significa que os agentes públicos investigados devam suportar indefinidamente o ônus de figurar como objeto de investigação. Antes, cabe ao Poder Judiciário assegurar que a persecução criminal seja conduzida e concluída em prazo razoável.
Essa compreensão exerceu particular influência na elaboração do artigo 3º-B, caput e incisos IV, VIII e IX, do CPP, conforme redação dada pela Lei 13.964/19. Na dicção dos dispositivos inseridos pelo chamado pacote anticrime, ao juiz de garantias compete o controle intransigente da legalidade da investigação criminal. Investem, assim, o magistrado na relevante função de garantidor dos direitos fundamentais nas etapas preliminares da persecução penal. Frise-se que o Poder Legislativo teve o cuidado de não restringir a exigência de controle judicial aos inquéritos conduzidos por autoridades policiais. Antes, mencionou expressamente a necessidade de supervisão de toda e qualquer espécie de procedimento investigativo criminal (caput e do inciso IV do art. 3º-B do CPP). Aliás, a função do relator nos casos de Foro de Prerrogativa de Função (arts. 102 e 105 da Constituição), nos termos dos Regimentos Internos do STF e do STJ, poderia servir de orientação à supervisão judicial da atividade de investigação do Ministério Público em todas as instâncias, promovendo-se, assim, igualdade de tratamento.
O ministro Celso de Mello, no julgamento do Habeas Corpus 94173/BA, 2ª Turma, em 27/10/2009, demarcou os limites que precisam, no mínimo, de reafirmação:
"CONTROLE JURISDICIONAL DA ATIVIDADE INVESTIGATÓRIA DOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO: OPONIBILIDADE, A ESTES, DO SISTEMA DE DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS, QUANDO EXERCIDO, PELO "PARQUET", O PODER DE INVESTIGAÇÃO PENAL. - O Ministério Público, sem prejuízo da fiscalização intra--orgânica e daquela desempenhada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, está permanentemente sujeito ao controle jurisdicional dos atos que pratique no âmbito das investigações penais que promova "ex propria auctoritate", não podendo, dentre outras limitações de ordem jurídica, desrespeitar o direito do investigado ao silêncio ("nemo tenetur se detegere"), nem lhe ordenar a condução coercitiva, nem constrangê-lo a produzir prova contra si próprio, nem lhe recusar o conhecimento das razões motivadoras do procedimento investigatório, nem submetê-lo a medidas sujeitas à reserva constitucional de jurisdição, nem impedi-lo de fazer-se acompanhar de Advogado, nem impor, a este, indevidas restrições ao regular desempenho de suas prerrogativas profissionais (Lei nº 8.906/94, art. 7º, v.g.). - O procedimento investigatório instaurado pelo Ministério Público deverá conter todas as peças, termos de declarações ou depoimentos, laudos periciais e demais subsídios probatórios coligidos no curso da investigação, não podendo, o "Parquet", sonegar, selecionar ou deixar de juntar, aos autos, quaisquer desses elementos de informação, cujo conteúdo, por referir-se ao objeto da apuração penal, deve ser tornado acessível tanto à pessoa sob investigação quanto ao seu Advogado. - O regime de sigilo, sempre excepcional, eventualmente prevalecente no contexto de investigação penal promovida pelo Ministério Público, não se revelará oponível ao investigado e ao Advogado por este constituído, que terão direito de acesso - considerado o princípio da comunhão das provas - a todos os elementos de informação que já tenham sido formalmente incorporados aos autos do respectivo procedimento investigatório."
Caberá, portanto, aos ministros do STF a complexa tarefa de estabelecer um equilíbrio saudável entre a outorga de poderes investigativos ao Parquet e a necessidade de contenção de abusos estatais, estabelecendo mecanismos de conformidade e as consequências da inobservância, inclusive quanto à incidência da Lei Contra o Abuso de Autoridade quando o membro do Ministério Público exercer função típica de investigação criminal. A condução de investigações atrai deveres de conformidade diversos da atuação processual. Missão que, dada a vocação democrática do Supremo, certamente conduzirá ao estabelecimento de salvaguardas institucionais suficientes para coibir desvios eventualmente praticados na condução dessas apurações criminais. Assim esperamos.
P.S.: Um abraço aos aniversariantes da coluna Limite Penal: Rachel Herdy semana passada e, amanhã, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho.
[1] TORON, Alberto Zacarias. Habeas Corpus: controle do devido processo legal, questões controvertidas e de processamento do writ, 5ª edição, São Paulo, Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 210.
[2] Entrevista concedida por Aury Lopes Jr. ao Migalhas, no dia 18 de janeiro de 2023: aqui. Também: Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2023.
[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer et alii. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
Alexandre Morais da Rosa é doutor em Direito (UFPR), mestre em Direito (UFSC), professor do programa de graduação, mestrado e doutorado da Univali, juiz de Direito do TJ-SC, atualmente convocado como juiz instrutor do gabinete do ministro Gilmar Mendes, no STF. Orcid 0000-0002-3468-3335, e pesquidador do SpinLawLab (Univali).
Rômulo Gobbi do Amaral é advogado do Senado, LL.M em Direito Público pela Universidade da Califórnia em Berkeley (2019) e graduado pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo).
Revista Consultor Jurídico, 10 de fevereiro de 2023, 8h00
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