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Nos últimos dez anos, as armas de fogo mataram ou feriram mais de um milhão de americanos. Em média, 2015 regista um tiroteio sangrento por dia. Mesmo assim, batem-se recordes de vendas de armas. Este é um país que se deixou consumir por algo que mata mil vezes mais do que o terrorismo. É uma guerra em curso
RICARDO LOURENÇO CORRESPONDENTE NOS EUA
Às seis e meia da manhã em ponto, os autocarros escolares começam a recolha dos alunos de Sandy Hook, um lugarejo na cidade de Newtown. Silenciosos, os alunos do secundário são os primeiros a entrar em fila indiana, com disciplina quase militar. Os do básico virão mais tarde, como é o caso de Jesse, seis anos, que se sente um sortudo sob o edredão, aninhando-se para mais uma hora de sono. Scarlet tem planos diferentes e invade o quarto do filho a cantar. Começa baixinho, subindo lentamente o volume. Seguem-se as cócegas. Furioso, Jesse destapa-se um pouco e responde na mesma moeda.
Dentro e fora de portas, a vida prossegue rotineira em Newtown, uma povoação tão pacata que nos últimos dez anos registou apenas um homicídio. Com a casa vazia, é tempo do café, do duche quente e das notícias via rádio. Às nove e meia, o telemóvel de Scarlet recebe uma mensagem urgente: há um homem armado na escola do Jesse. “Quando cheguei, disseram-me que tinha havido um tiroteio na escola. Em Sandy Hook?! Só podia ser engano. Explicaram-me que se calhar os meninos tinham escapado, visto que nas traseiras existe uma imensa floresta”, recorda Scarlet ao Expresso.
Os pais são transferidos para um quartel dos bombeiros paredes meias com a escola primária. É ali que lhes dizem que um rapaz armado com uma metralhadora semiautomática, uma caçadeira e duas pistolas teria matado várias crianças, suicidando-se depois. Começam os choros. Depois os desmaios dos pais que perderam os filhos. Scarlet tem a certeza que o dela sobreviveu. “Não só achava isso, como tinha a certeza que ele tinha guiado os colegas até à floresta.” Em parte, o pressentimento de mãe estava correto. Jesse foi astuto e mal ouviu os primeiros tiros, gritou para os colegas se esconderem num armário distante da porta de entrada.
Quando o assassino surgiu, já depois de ter matado 12 crianças e cinco auxiliares, verificou que a sala de aula estava quase vazia. Miss Soto, a professora de Jesse, inventou a desculpa de que os meninos estavam no ginásio, mas foi morta antes de terminar a frase. Em pânico, oito deles saíram do esconderijo e foram abatidos. Jesse seguia na frente do grupo em direção à floresta. “A má notícia chegou já era noite”, lembra Scarlet. “O J.T., o irmão do Jesse, não parou de chorar e nos seis meses seguintes recusou ir à escola. Sinceramente, eu não me importei porque temia nova tragédia.”
Esta segunda-feira, assinala-se o terceiro aniversário do massacre de Newtown, o segundo maior de sempre nos EUA, que provocou 26 mortos, entre eles 20 crianças. No topo desta lista macabra, mantém-se a chacina na Universidade de Virginia Tech, onde 32 pessoas foram executadas em abril de 2007. A morte de menores forçou um novo debate sobre as razões para as frequentes ondas de violência nos EUA, país que possui 5% da população mundial, mas que acumula 50% de todas as armas de fogo. Apesar de a realidade de Newtown ter mudado, no resto do país tudo ficou na mesma. Desde 14 de dezembro de 2012 já ocorreram 160 massacres em escolas americanas, cerca de um por semana.
DÉCADA. Trezentos mil americanos morreram entre 2004 e 2014 vítimas de armas de fogo
MARIO ANZUONI/REUTERS
Entre 2004 e 2014, 300 mil americanos morreram vítimas de armas de fogo e mais de 700 mil ficaram feridos. Nesse mesmo período, os atentados terroristas liquidaram 313 cidadãos dos EUA, 277 dos quais fora dos Estados Unidos. Segundo a agência federal “Center for Desease Control”, tamanho banho de sangue custou aos cofres do Estado em 2013 (últimos dados disponíveis) 229 mil milhões de dólares (210 mil milhões de euros). Por comparação, a empresa mais valiosa do mundo, a Apple, tem uma receita anual de 174 mil milhões (160 mil milhões de euros). E neste capitulo, 2015 pode ficar na história, visto que, desde o início do ano, em média, houve um tiroteio todos os dias, algo nunca visto.
Embora as taxas de homicídio tenham baixado nas últimas décadas e a segurança aumentado nas principais cidades, o número de massacres, em que pelo menos quatro ou mais pessoas são mortas ou feridas por um atirador que desconhecem (a definição é do FBI), disparou, garante o Departamento de Justiça americano, assim como investigadores das principais universidades. “Só nos últimos três anos, a ocorrência deste tipo de fenómeno triplicou”, assegura Amy Cohen, professora em Harvard.
MOCHILAS À PROVA DE BALA
Psicólogos de vários pontos do país continuam a visitar as famílias de Newtown e estima-se que 60% da população esteja medicada ou se tenha submetido a dois ou mais tratamentos. A solidariedade mundial continua. “O J.T. voltou à escola depois de um grupo de jovens do Ruanda, testemunhas da limpeza étnica, lhe terem ligado por Skype. Eles tinham ouvido falar do massacre e aquilo soou-lhes terrivelmente familiar”, conta-nos Scarlet.
Embora o Ministério da Educação tenha vindo a reforçar as medidas de segurança e planos de contingência no caso de uma invasão armada, pais como Joe Curran não aguentaram mais a ansiedade das manhãs. Antigo militar e polícia no estado de Massachusetts, decidiu revestir o interior das mochilas dos filhos com pedaços de coletes à prova de bala. Seguiram-se modelos para os amigos e vizinhos e, em breve, o passatempo tornou-se um negócio.
Hoje, Joe é dono da empresa Bullet Blocker, especializada em equipamento daquele género, dos tradicionais coletes aos mais variados tipos de mochilas, cujos preços oscilam entre os 200 (183 euros) e os 400 dólares (367 euros). “Por vezes penso que tudo isto é surreal, mas não fui eu que criei a violência, apenas quis proteger a minha família”, afirma ao Expresso. A Bullet Blocker é apenas um exemplo de uma oportunidade de negócio gerada pela violência.
O Governo americano avaliou a indústria de segurança privada escolar em mais de cinco mil milhões de dólares (4,5 mil milhões de euros). “Esta nota económica sublinha, ainda mais, o ridículo de tudo isto. Pagamos para nos sentirmos seguros, porque aqueles que nos representam são incapazes de proteger a população. Uma criança é morta de três em três horas e estes tipos ficam anos sentados no Congresso sem fazerem nada”, diz John Rosenthal, diretor da organização Stop Handgun Violence.
A ARMA DO LÓBI
Em Washington, o Expresso encontra-se com o congressista republicano Steve Russell, um tenente-coronel do Oklahoma, veterano da Guerra do Iraque, responsável em 2004 pela operação de captura de Saddam Hussein, o ex-inimigo número um da América. Tamanho currículo abriu-lhe as portas do poder. Primeiro no estado natal do Oklahoma, como senador, depois na capital federal, onde chegou há dois anos.
Conhecido por ter votado sempre contra todas as propostas de regulação do mercado do sector armeiro, recebeu o apoio público da organização National Rifle Association (NRA), líder lobista em prol da indústria de armas de fogo, durante a corrida ao Congresso dos Estados Unidos. Perguntamos-lhe se tal se tinha materializado em dinheiro para a sua campanha, mas o congressista não responde. O organismo Center For Responsive Politics estima que o NRA gastou mais de 31 milhões de dólares (28 milhões de dólares) no ciclo eleitoral de 2014. O Expresso procurou confirmar esta cifra, assim como outras informações, junto da assessoria de imprensa do NRA, mas nunca obteve resposta.
O olhar de Steve gela a cada pergunta sobre a relação entre armas e violência “Quando vemos pessoas a culparem cidadãos respeitadores da lei por acidentes criminosos, temos de estar atentos. Deus não nos fez com garras, dentes afiados ou odores especiais contra predadores. Ele deu-nos inteligência para nos defendermos e criarmos. O direito de uso e porte de arma foi dado por Deus e não por um Governo.”
A crispação do congressista aumenta tal como a nossa curiosidade para perceber por que razão a segunda adenda é divina. “Porque ela protege todas as outras liberdades”, garante o político. “O que se segue depois de nos tirarem as armas que temos para nos defendermos? Vão cortar a liberdade de expressão? A liberdade religiosa?”
Por fim, a conversa com o conservador do Oklahoma desvia-se para a sua empresa de produção de armas semiautomáticas, a Two Rivers Arms. Steve, que defende na bancada do Congresso a segunda adenda e o acesso às armas, lucra financeiramente com a sua ação política. Questionamos sobre um eventual conflito de interesses. “Que autoridade é que você tem? Por acaso é procurador? Há algum conflito em ser médico e ser a favor da reforma do sistema de saúde (Obamacare). Se não há problema em relação a eles, porque é que estão preocupados com empresas legais.”
Gerry Souter também é membro do NRA e chegou a fazer parte da direção. Ao ouvir as declarações do consórcio, explica que as mesmas ilustram a raiz do problema: “Eles já não representam o pequeno caçador, ou os indivíduos que gostam de ir ao fim de semana para a carreira de tiro afinar a pontaria contra alvos feitos de papel reciclado. Essa gente gosta de armas, mas respeita a lei e não quer saber de política para nada. Hoje, o NRA representa, unicamente, a indústria de armamento.”
Na capital americana torna-se claro que a ala direita do Partido Republicano nunca aprovará uma reforma do sistema. O resultado disso é a profusão cada vez maior de pistolas, caçadeiras e metralhadoras, os três artigos mais procurados. Segundo estimativas do FBI existirão 300 milhões de armas de fogo nos Estados Unidos, onde vivem pouco mais de 320 milhões de habitantes. “O volume do tráfico ilegal é impossível de calcular, mas é um fator de risco acrescido”, esclarece Rebecca Callahan, porta-voz da Polícia Federal Americana.
E o apetite continua a aumentar. Na última Black Friday (27 de novembro), dia repleto de promoções e que do ponto de vista comercial marca o início da época natalícia, o FBI fez mais de 185 mil verificações de antecedentes criminais, o procedimento legal que antecede a compra. Em Oklahoma, o congressista Steve Russell garante que esse passo é um mero pró-forma, “uma questão de horas”. Ao invés, no estado de Nova Iorque o processo pode durar seis dias, durante os quais a polícia entrevista o interessado, assim como familiares, amigos e até vizinhos.
“Eles [NRA] insistem em dizer que o Obama irá confiscar as armas. Incutem esse medo nas pessoas e a reação imediata é o consumo desmesurado”, diz Gerry Souter. Segundo a agência federal Bureau of Alcohol, Tobacco and Firearms, em 2013 venderam-se 10,9 milhões de armas, mais 5,3 milhões do que em 2009, ano em que Obama assumiu a Presidência.
DOENÇAS MENTAIS
Três anos depois de Newtown, Scarlet Lewis explica que perdoou Adam Lamza, o assassino de 20 anos, natural daquela cidade. “Essa decisão ajudou-me a curar o trauma. Se tivesse ficado presa na raiva, o Lamza tinha alugado espaço na minha cabeça, controlado as minhas emoções. Eu tornar-me-ia uma outra vítima do tiroteio”. Antes de tomar esta decisão, Scarlet quis conhecer o estado de saúde mental do carniceiro e percebeu, em pouco tempo, que ele deveria ter recebido tratamento logo em criança.
Os professores e colegas de escola ainda hoje se lembram quando Lamza, durante o quinto ano, escreveu e distribuiu “The Big Book of Granny”. O livro contava a história de uma bruxa má, cuja vassoura mágica se transformava numa metralhadora, que ela usaria para espalhar o terror em Newtown.
O caso não mereceu nenhuma atenção especial na escola. Em casa muito menos. A mãe não só tinha um fetiche por armas (o filho assassinou-a antes de partir para Sandy Hook), como nunca achou estranho que o adolescente passasse horas a fio a jogar videojogos violentos.
Segundo o Center for Desease Control, cerca de metade da população americana sofrerá de doenças mentais ao longo da vida, desde pequenas crises de ansiedade a situações depressivas profundas. Segundo a mesma agência, 9 milhões têm pensamentos suicidas e 2,5 milhões já planearam como se irão matar — diariamente, suicidam-se 22 veteranos de guerra nos EUA.
“Não quero menosprezar nada nem ninguém, mas parece-me que as perturbações mentais afetam todos os países. O nosso problema é que nós pomos armas nas mãos desses doentes”, acusa John Rosenthal.
A VIOLÊNCIA É UM VÍRUS
A pouco e pouco surgem novas ideias e abordagens para combater o flagelo. Nas zonas mais pobres do Brooklyn, na cidade de Nova Iorque, o ex-gangster Shanduke McPhater mostra-nos a aplicação de um novo método focado em tratar a violência como um vírus. “Se tirarmos todas as pistolas das ruas, as pessoas matam-se com facas. Temos de mudar a mente, porque a mente destes rapazes do gueto, que não sabem quem é o pai, mas conhecem as prisões como as palmas das mãos, foi formatada pela violência. Violência dá reconhecimento, respeito e dinheiro, porque permite o controlo do narcotráfico.”
Enquanto fala, este afro-americano de 37 anos caminha no bairro de Brownsville, outrora uma zona problemática, mas onde há mais de seis meses não se ouve um tiro. O grupo trabalha sob a alçada de Gary Slutkin, médico e professor da Universidade de Chicago, que defende o enquadramento da violência como um problema de saúde pública, recorrendo a ex-gangsters para servirem de mediadores nas comunidades mais problemáticas.
Escolhidos a dedo, eles são designados violence interrupters. “Têm credibilidade e reputação nas ruas. Após definirmos quais as áreas onde há mais tiroteios e identificarmos os grupos que operam, os interrupters procuram quem cometeu o crime e quem com ele esteve, porque sabemos que 30% das pessoas que são expostas à violência irão cometer atos violentos também. Isto é controlo de doença. Controlo epidemiológico. É o que fazemos no tratamento da cólera ou da tuberculose”, explica Slutkin.
Por fim, tenta-se atingir três objetivos: interrupção da transmissão, prevenção de contágios futuros e mudança nas normas de grupo. E como se faz isso na prática? Shanduke explica: “Usamos os nossos próprios exemplos, procuramos desviá-los aos poucos para cursos de formação profissional, atividades desportivas, tudo no sentido de lhes propiciar conforto fora do ambiente a que estão habituados.”
Em Chicago, este programa controlava até início do ano nove bairros da zona sul da cidade. O Departamento de Justiça americano (DOJ, sigla em inglês) avaliou os dados e confirmou que os tiroteios tinham acabado. Ninguém morreu baleado durante meses e os moradores voltaram a usufruir dos parques e a caminhar sem medo nas ruas.
Dor Scarlet Lewis perdeu o filho, Jesse, no massacre da escola
de Newtown. Criou uma fundação para lutar contra
a violência, que considera
um problema de saúde pública
Porém, em março, o estado do Illinois, que está à beira da bancarrota, cortou o fornecimento de fundos e os interrupters deixaram de aparecer. A criminalidade disparou 23%. No bairro mais complicado, Englwood, o aumento foi de 80%. A Casa Branca e o DOJ elogiam este trabalho, mas tardam em fornecer fundos federais. Tal pode vir a mudar. “O Governo central injeta milhões de vezes mais dinheiro no sistema punitivo, nas prisões por exemplo, do que nas soluções de política preventiva. Mas temos recebido muito apoio de republicanos e de democratas, uma vez que quando analisam a informação percebem que este programa poupa dinheiro ao contribuinte.”
Tal como o professor Slutkin, Scarlet Lewis também se concentra em passar a mensagem de que violência é um problema de saúde pública, relacionado com as doenças mentais. Através da sua fundação Choose Love Foundation promove o ensino de estudos emocionais e sociais, que permitem às crianças gerir os sentimentos e manter relações positivas com quem os rodeia. “Tenho viajado um pouco por todo o mundo. Quando fui ao Médio Oriente estava com medo por causa da instabilidade regional. Mal as pessoas se aperceberam, disseram-me que eu era louca, afinal se eu tinha sobrevivido na América, com tantas armas e morte, sobreviveria em qualquer lado (risos).”
Sempre que chega a Newtown, Scarlet retoma as velhas rotinas. Os primeiros minutos da manhã já não são passados a cantar aos ouvidos de Jesse, mas a meditar, a rezar e a chorar. “Sinto a dor da perda todos os dias. Muitas pessoas perguntam-me como consigo falar dele em público sem chorar. ‘Porque choro tudo de manhã’, digo-lhes. O meu luto será para sempre, porque o amor por um filho é eterno e nunca morre”.
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