Uma das mais caras missões da Justiça Eleitoral é a de diminuir as desigualdades entre os candidatos. O artigo 237 do Código Eleitoral expressamente prevê a punição da interferência do poder econômico e desvio ou abuso de poder de autoridade. O interesse tutelado, aí, é a liberdade de voto.
A literatura especializada passou a ver no texto apenas o abuso do poder econômico e o da autoridade política, ambos em sentido estrito: gastança provada e uso de cargo público em favor de um candidato. Os tribunais seguiram a toada, de limitação evidente.
O passar do tempo e inexplicável crise do laicismo extroverteram outro grande abuso, o discurso religioso como estribo para a conquista do poder estatal. É prática vista no Brasil todo, município por município, bairro por bairro, e atinge tanto os cargos legislativos como os executivos.
É hora de frear esse lamentável excesso.
Desde a proclamação (quase 140 anos atrás) a Constituição da República veda à União, Estados, Distrito Federal e Municípios manter com igrejas “ou seus representantes, relações de dependência ou aliança”. É regra de proibição, dirigida aos três Poderes, separando o laico do sagrado. Enquanto bispos, padres e rabinos são representantes de igrejas e deveriam pensar a fé, senadores, deputados e vereadores são agentes públicos, detendo parcelas dos poderes da República com o fito de dirigir o país. Então não é dado confundir a missão de servir ao Estado com o pastoreio religioso, nem lícito pretender pastorear o Estado.
Pior: não faz tempo uma sedizente “bancada religiosa” propôs uma proposta de emenda constitucional visando alterar a Constituição para o Congresso anular decisões do Poder Judiciário que a desagrade. Depois o mesmo grupo de parlamentares anunciou um combate ao ministro Luis Roberto Barroso, “desgostoso” com as posições não homofóbicas por ele já assumidas. Esta semana (a última de maio de 2014) discutia-se na Câmara de Vereadores de Curitiba um projeto obrigando a leitura da Bíblia nas escolas municipais, como se fosse lícito, ou ao menos democrático, exigir de um menino muçulmano que ao cair da tarde vê seus pais recitarem o Corão, a compreensão e o alcance de um texto exclusivamente cristão.
É mesmo abuso, e grave: esses agentes públicos (deputados) atuam no parlamento como padres ou pastores, misturando o laico com o religioso, República e credo. Assim também o fizeram nas últimas eleições presidenciais, exigindo dos principais candidatos (Presidenta Dilma e concorrente Serra) contorcionismo ridículo na fuga a respostas indesejadas sobre temas sensíveis, como o aborto.
A necessidade de coibir esse abuso é premente. Não se trata de vetar o representante de uma igreja de ponderar a uma ou outra pessoa, fiel ou não à confissão que adote, as qualidades de determinado candidato a cargo eletivo. Isso não é abuso. Mas é abuso manejar as igrejas como escada para vencer eleições, e por elas tornar-se agente público. Afinal, todos sabem que às igrejas cabe o estudo, a difusão e o culto do sagrado, tarefa incompatível com a lida do Estado.
Partidos religiosos são sabidamente inconstitucionais, sejam islâmicos, cristãos, judaicos ou budistas. Deve ser assim até pela credulidade, acentuada extroversão da fragilidade do homem simples brasileiro, sempre vítima do braço interesseiro de certas facetas de pregações religiosas. Todos fingem não ver o inegável abuso de candidatos que se dizem representantes desta ou aquela igreja, ou delas recebem o custeio da campanha, ou ainda, dos que usam o título “pastor”, “padre” ou “bispo”. Essas distinções próprias de autoridades religiosas são absolutamente incompatíveis com a disputa de cargos eletivos públicos, e podem e devem ser coibidas pela Justiça Eleitoral.
O absolutismo da imposição religiosa sempre encontrou limites na atuação do Estado-Juiz, mesmo diante de fatos simples da vida de relação. Os exemplos são muitos, e entre eles estão conflitos decorrentes de (1) recusa de médicos e hospitais a pedidos de certos evangélicos para realização de cirurgias sem transfusão de sangue (Tribunal de Justiça de São Paulo, Caso Ferraz x Omega Saúde), (2) concorrente a emprego público pedir data especial para a prova, por não fazer nada nos dias de sábado (Tribunal de Justiça do Maranhão, Caso Evandro x SEMAD), (3) barulho excessivo de grupo umbandista (Tribunal de Justiça de São Paulo. Caso Ilê Asé Aua Abaluaye Sapatá), (4) coincidência do exame conhecido por Enem e o feriado judaico conhecido por Shabat (Recurso do Centro de Educação Religiosa Judaica. Supremo Tribunal Federal, relator ministro Gilmar Mendes).
O silêncio dos tribunais pode comprometer a unidade da Nação. Sem controle, os Estados Unidos da América do Norte não solucionaram a independência religiosa declarada pela Carolina do Norte, que discute atribuir ao cristianismo a posição de “religião oficial do Estado” (Conjur, 06.04.2013). Também lá, a Constituição Estadual de Oklahoma proíbe os juízes de “levar em consideração leis internacionais e ponderar qualquer aspecto da lei islâmica, conhecida por Sharia” (Conjur, 7.11.2010). No caminho oposto vai a Corte Europeia de Direitos Humanos, que no Caso Lautsi x Itália: há pouco tempo condenou a Itália a pagar danos morais a uma nacional que se considerava ofendida pela aposição de crucifixos nas escolas públicas (Conjur, 10.11.2009).
Instigante, Aldo Pereira (Folha de São Paulo, 03.12.12, p. A3) notou que “Estado laico é exceção histórica. Religiões têm delirante ambição política: a supremacia universal (budistas, islâmicos, cristãos) ou o nacionalismo (hidus, judeus)”.
É hora de os tribunais eleitorais, mormente o Superior, confirmarem a exceção: o poder temporal não é da religião. Não basta a lei eleitoral proibir a propaganda política em templos ou multar o candidato que neles discursa (TSE, caso Serra, Representação 1722-17, relator Joelson), ou ainda aceitar filme como prova de ilícito eleitoral (candidato entregando cheque a pastor, durante culto – TRE-PR, Caso Mainardes, Recurso 3121, Auracyr). Às vezes é preciso punir, como em outra esfera fez o juiz Barcellos, da 13ª Vara Pública do Rio de Janeiro: em processo de desfecho não noticiado, levou em conta o laicismo e suspendeu por cinco anos os direitos políticos do ex-prefeito César Maia, por construir uma igreja católica no bairro de Santa Cruz, mandando-o devolver o dinheiro público gasto na obra (Conjur, 06.06.2012).
Pioneiro, já em 2007, o Tribunal Eleitoral de Santa Catarina declarou que “o atrelamento de pedidos de votos a crenças e práticas religiosas pode configurar abuso se houver influência indevida na liberdade de escolha do eleitor, o que demanda apuração própria que, no caso, não foi pedida” (Representação 2458, relator desembargador Eleitoral Vicari). Em Minas Gerais, o Tribunal Eleitoral reconheceu abuso de poder político por prefeito, pretendente à reeleição, no uso da comunicação social, mormente porque “vinculação dos candidatos à Bíblia, principalmente evangélicos, tem grande potencialidade para interferir no momento do voto” (Caso Athos, prefeito de Montes Claros, relatado pelo desembargador Eleitoral Romanelli).
Essa miudeza jurisprudencial representa pouco, muito pouco. Necessário à harmonia social, o limitado direito de pregar não se confunde com o direito fundamental à liberdade de crer ou não crer. Entre os limites da pregação está a porteira eleitoral. Fujamos do terrível teocentrismo — basta o Irã. Fiquem os religiosos da cancela para lá, cuidando de seus rebanhos. O lado de cá, o lado estatal, é, graças ao bom Deus, laico.
Auracyr Azevedo de Moura Cordeiro é advogado em Curitiba, e integrou o Tribunal Regional Eleitoral, no cargo de jurista, por quatro mandatos. Membro do Instituto dos Advogados do Paraná. Professor da UniCuritiba, por 23 anos. Foi conselheiro da OAB-PR por vários mandatos.
Revista Consultor Jurídico, 12 de junho de 2014, 7h39
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