Como e por que a promotoria não deve esconder provas da defesa
10 de novembro de 2022, 8h00
Leio que um levantamento feito pelas Defensorias Públicas do Brasil, em 2021, revelou que 83% das vítimas de erro em reconhecimentos fotográficos são negras. Entre 2012 e 2020, 90 pessoas, 73 só no Rio de Janeiro, passaram por isso. Foram presas por causa de uma foto.
Agora mesmo está em julgamento no Supremo Tribunal Federal um caso em que um homem pardo e de cabelos castanhos foi condenado por um roubo em Campos Novos, cidade do interior de Santa Catarina. O busílis é que a vítima do crime — única testemunha arrolada pelo MP —, ao fazer o depoimento na delegacia, apontou que o agressor era "entroncado, de estatura baixa, loiro e de pele clara". Foi condenado a mais de cinco anos de reclusão.
O julgamento ainda não terminou e não vou falar ainda sobre ele. Neste momento quero chamar a atenção sobre o problema da prova lato sensu. O problema de condenações feitas com provas frágeis. O problema de condenações feitas sob viés de confirmação.
E para tanto, quero trazer um exemplo dos EUA. Com efeito. O caso acima relatado, pendente de julgamento, e o caso que vou relatar têm em comum o problema de paridade de armas e o modo como se coleta a prova.
Há décadas tenho trabalhado (n)esse tema: a paridade de armas entre acusação e defesa. Há alguns anos tramita no parlamento — e agora na nova legislatura espero que isso avance — o projeto que ficou conhecido como Anastasia-Streck.
Trata-se de um projeto simples. Almeja o óbvio. Pretende-se aquilo que (já) está no Estatuto de Roma, incorporado pelo Brasil de 2002 e que não é novidade na Alemanha, Itália e nos EUA — pelo menos em parte.
Quando o Ministério Público investiga, deve também procurar provas a favor da inocência do réu. E não pode escamotear nenhum elemento que possa beneficiar a defesa.
Todos os dias vê-se coisas desse tipo. Seguidamente o advogado tem de ingressar com medida judicial para ter acesso à prova. Existe até mesmo a súmula 14 para garantir esse amplo acesso à defesa.
Parece que o Ministério Público se transformou no inimigo do advogado. E do indiciado-réu.
Por vezes, o viés de confirmação — denunciado por Francis Bacon desde o século XVII — faz com que o sistema cometa embustes, crueldades e, tudo junto, injustiças. Basta ver quantos anos no Brasil ficamos condenando pessoas por reconhecimento via fotografia.
No cotidiano das práticas jurídicas, no mundo real, não há presunção de inocência. O que existe é presunção de culpa. Tanto é que, na dúvida, o MP denuncia. Mesmo que o cidadão mostre, logo ali, que até mesmo essa denúncia já nascera morta.
O abuso de autoridade, aprovado em lei, é um embuste. Não se conhece dados acerca de alguma aplicação com sucesso. Deve ser porque esse é um crime que não seja praticado nesta república de anjos da lei.
O paroxismo que vem dos EUA pode ajudar a iluminar o nosso sistema. Ainda bem que não temos pena de morte — pelo menos formal e oficialmente.
No estado de Ohio um homem, sabidamente inocente, será executado, só para confirmar que o sistema, ao errar, não erra. Entenderam?
Explico.
Em artigo intitulado Ohio Plans to Execute a Man It Knows Is Innocent—Why? (O estado de Ohio planeja executar um homem que sabe ser inocente — Por quê?) o professor Austin Sarat faz a seguinte denúncia. Anthony Apanovich está no corredor da morte, embora evidências de DNA provem conclusivamente que ele não cometeu o crime pelo qual foi condenado à morte.
Ele está lá por causa de uma combinação chocante de má conduta do Ministério Público (prosecutorial misconduct) e o desejo de alguns defensores da pena capital de alcançar a finalidade nos casos de morte, mesmo que isso ocorra às custas da justiça.
Essa situação quase inimaginável desafia qualquer aparência de justiça e equanimidade (fairness). Executar o inocente é um pesadelo americano. É um pesadelo que Apanovitch está vivendo.
O autor conta que nos últimos 50 anos, 190 pessoas foram liberadas do corredor da morte. Vinte e uma dessas libertações resultaram de testes de DNA. Especialistas estimam que 4,1% dos 2.436 presos que aguardam execução em 1º de janeiro de 2022 são, como Apanovitch, realmente inocentes.
O caso foi julgado em 1985. Foi condenado pela morte de uma mulher cuja casa ele estava pintando. Em vez de seguir pistas até que a evidência aponte para um criminoso... os investigadores começam com um suspeito, depois procuram evidências para confirmar suas suspeitas. Evidências isentas e pistas que apontam para suspeitos alternativos tendem a ser ignoradas.
Conhecemos isso muito bem no Brasil.
Após sua prisão, ele forneceu voluntariamente amostras de cabelo, saliva e sangue da polícia. Essas dificilmente são coisas que uma pessoa culpada faria. Mas nada disso ajudou Apanovitch.
Entre outras coisas, a promotoria ocultou provas potencialmente exculpatórias. O Ministério Público vinculou Apanovitch ao crime alegando que eram dele os fluidos encontrados na vagina da Sra. Flynn. No entanto, os promotores deveriam ter feito outros exames.
Há uma sucessão de equívocos no caso, relata o autor. Exsurge aí um velho problema: os promotores que não revelam provas favoráveis à defesa e não corrigem falsos testemunhos são comuns em casos de crime de homicídio. Por vezes esses erros nunca são descobertos. E às vezes levam anos, como no caso de Apanovitch. E aí aparecem problemas de forma: preclusão e coisas do gênero.
Em 2021, o Centro de Informações sobre Pena de Morte (DPIC) informou que essa má conduta estava relacionada a 69% de todas as exonerações no corredor da morte. Esse órgão descobriu que a má conduta do Ministério Público foi determinante para garantir uma condenação errônea em dez das 11 revisões criminais de Ohio que estudou.
Importante frisar que em 2000, depois de já condenado, o escritório do legista do condado descobriu slides com material biológico que havia sido retirado da vítima durante sua autópsia. Quando o médico legista testou o DNA, encontrou uma prova definitiva de que Apanovitch não poderia ter sido a fonte do DNA retirado da vagina da Sra. Flynn. Mas o estado novamente escondeu as evidências.
Em 2008, o resultado do exame do DNA veio à tona. Apanovitch então buscou um novo julgamento. Após uma audiência sobre esse pedido, um juiz o absolveu da acusação de estupro e ordenou um novo julgamento pela acusação de assassinato.
Como resultado, Apanovitch foi libertado do corredor da morte e liberado, depois de quase 32 anos no corredor da morte.
Enquanto ele estava livre, o Ministério Público recorreu da decisão do juiz de primeira instância. Em 2018, a Suprema Corte de Ohio disse que o tribunal de primeira instância "não tinha jurisdição sobre o assunto". Resultado: o tribunal recusou o pedido de Apanovitch para um novo julgamento.
Embora ninguém duvidasse da precisão dos resultados do DNA, a suprema corte decidiu que Apanovitch não poderia usá-los para provar sua inocência. Ele citou uma lei estadual que dizia que o DNA só poderia ser usado nos casos em que o réu solicitasse o teste. O fato de que Apanovitch não poderia ter solicitado o teste de provas que, paradoxalmente, o Estado havia escondido dele.
Como o próprio tribunal reconheceu, em um eufemismo monstruoso, sua decisão pode ser caracterizada como "indevidamente formalista ou injusta". No entanto, tomou essa decisão, como disse o juiz Terrance O'Donnell, para "garantir o fim desse julgamento de quase 34 anos". Era hora de prosseguir com a execução de Anthony Apanovitch.
Como se sabe, de acordo com um estranho precedente da Suprema Corte dos Estados Unidos, a execução de uma pessoa inocente não viola a Constituição dos Estados Unidos.
Sem recursos judiciais disponíveis para ele, Apanovitch pediu clemência ao governador. Seu pedido está pendente com o Conselho de Liberdade Condicional.
Horrorizados com o que aconteceu com Apanovitch, vários legisladores de Ohio apresentaram um projeto de lei para corrigir a lei que trata dos testes de DNA.
Apanovitch aguarda a decisão.
E por aqui? Por aqui cabe apenas uma frase: ainda bem que não existe pena de morte. Já pensaram?
De todo modo, a pergunta é cabível: quantos inocentes já foram condenados no Brasil com base em provas fragilíssimas?
Como procurador de Justiça, testemunhei centenas de casos — que consegui salvar. E quantas não passaram por mim? Coisas bizarras, como a total falta de paridade de armas, advogado confessando o crime pelo réu, laudos indiretos de peixes "furtados" de um açude e centenas de laudos feitos por despachante de trânsito para atestar furto qualificado. Sem considerar os anos de descumprimento do artigo 212 do CPP. E o que dizer do reconhecimento por fotografia? E a tal "palavra da vítima" plenipotenciária?
O caso de Ohio e o caso do réu reconhecido por foto (sob julgamento no STJ) devem nos fazer refletir. Por exemplo: se alguém é processado com base apenas em uma foto ou baseado em uma só testemunha, o MP deve buscar provas também para inocentar o réu. E não apenas insistir em provas frágeis das quais, na maioria das vezes, sairá uma condenação errada-injusta.
Quem quiser ver algo parecido com o que acontece todos os dias no Brasil e o que aconteceu com o caso de Ohio assista ao filme Luta pela Justiça, que se passa no Alabama, sobre o qual já escrevi. Ali se vê o escondimento de provas. Má conduta. E a libertação do réu. Naquele caso deu certo. E os que não dão?
(...)
escritório Streck e Trindade Advogados Associados.
Revista Consultor Jurídico, 10 de novembro de 2022, 8h00
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De outro artigo, extraímos:
- (...) Segundo as promotoras, isso foi uma violação da "Brady rule", uma doutrina criada pela Suprema Corte em 1963, no caso Brady v. Maryland, 373 U.S. 83, que, basicamente, requer que os promotores disponibilizem à defesa provas exculpatórias em posse do estado ou qualquer prova relevante favorável ao réu, mesmo que isso resulte em absolvição ou redução da sentença.(...)
Fonte: https://www.conjur.com.br/2022-set-25/mp-eua-esforca-reparar-ma-conduta-ovelhas-negras
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