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quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Você teria coragem de mantar matar com um tiro na cabeça o seu velho amigo cão?



– Parou e cheirou o ar e, sem parar de cheirar, abaixou os olhos até o cachorro velho.

– Pelo amor de Deus, que cachorro mais fidido. Tira ele daqui, Candy! Não conheço nada mais fedorento do que esse cachorro. Ocê precisa tirá ele daqui. Candy rolou até a beirada do catre, esticou a mão e fez um agradinho no cachorro velho, e pediu desculpa: – Fico tanto tempo perto dele que nem sinto o chero.

– Bom, eu num aguento ele aqui – disse Carlson. – Esse fedô continua até depois que ele vai embora. – Caminhou com seus passos pesadões e olhou para o cachorro. – Ele nem tem dente – disse. – Tá todo duro de reumatismo. Ele num traiz nada de bom pr’ocê, Candy. Nem pra ele memo. Por que ocê num sacrifica ele, Candy?

O velho se contorceu, desconfortável. – Mas que diabo! Ele é meu faiz tanto tempo. Ele é meu desde que era filhotinho. Eu criava ovelha com ele. – Disse, todo orgulhoso: – A gente nem vê quando olha pra ele agora, mas foi o melhor cão pastor que eu já vi na minha vida.

George disse: – Vi um sujeito em Weed que tinha um terrier que cuidava das ovelha. Ele aprendeu co’os otro cachorro.

Carlson não ia desistir com facilidade. – Olha, Candy, esse cachorro velho só vive sofrendo. Se ocê levasse ele pra longe e desse um tiro bem na nuca dele... – abaixou-se e apontou – bem aqui, imagina só, ele nem ia sabê o que tinha acontecido.

Candy olhou para os lados, infeliz. – Num vô fazê isso, não – disse baixinho. – Ah, eu num ia consegui fazê isso. Ele já é meu faiz tempo demais.

– Ele num se diverte mais nada – Carlson insistiu. – E ele fede que nem o inferno. Vô te dizê uma coisa. Eu mato ele pr’ocê. Aí num vai tê sido obra sua. Candy jogou as pernas para fora do catre. Coçou os pelinhos da barba branca da bochecha com nervosismo.

– Eu acostumei tanto com ele – disse baixinho. – Ele é meu desde filhotinho.

– Bom, mas ocê num tá sendo nada bondoso com ele deixando ele vivê – disse Carlson. – Olha, a cadela do Slim acabô de tê uma ninhada. Aposto que o Slim te dava um dos cachorrinho pra criá, num dava, Slim?

O carroceiro estivera estudando o cachorro velho com seus olhos calmos. – É – respondeu. – Ocê pode ficá com um cachorrinho se quisé. – Pareceu dar uma tremida para se livrar do que sentia e conseguir falar. – O Carl tá certo, Candy. Esse cachorro aí num tá fazendo bem nenhum pra ele memo. Se eu ficasse velho e aleijado, bem que eu ia querê que alguém me matasse.

Candy olhou desamparado para ele, já que as opiniões de Slim eram a lei. – Vai vê que ia doê – sugeriu. – Eu num ligo de tê que tomá conta dele.

Carlson disse: – Do jeito que eu ia atirá nele, ele num ia senti nada. Eu ia colocá o revólver bem aqui. – Apontou com o dedo do pé. – Bem na nuca. Ele nem ia tremê. (...)

Daquela conversa, Carlson tinha se recusado a participar. Ficou olhando para o cachorro.

Candy o observava com desconforto.

No final, Carlson disse: – Se ocê quisê, posso tirá esse diabo velho do sofrimento dele agora memo e colocá um fim nisso tudo. Num sobrô nada pra ele. Ele num come, ele num enxerga, ele nem consegue andá sem senti dor. Candy disse, esperançoso: – Ocê num tem revólver. – Com o diabo que num tenho. Tenho uma Luger. Não ia machucá ele de jeito nenhum.

Candy disse: – Quem sabe amanhã? A gente espera até amanhã.

– Num sei por quê – Carlson disse. Foi até o catre, puxou a bolsa de baixo dele e tirou uma pistola Luger.

– Vamo acabá logo com isso – disse. – Num dá pra dormi com ele soltando este fedor por aqui. – Colocou a pistola no bolso.

Candy olhou longamente para Slim para tentar achar algum modo de impedir aquilo. E Slim não lhe deu nenhum.

Afinal Candy disse, bem baixinho e desconsolado: – Tudo bem, leva ele – nem olhou para o cachorro. Ficou deitado no catre e cruzou os braços atrás da cabeça e ficou olhando para o teto.

Do bolso, Carlson tirou uma tirinha de couro. Agachou-se e a amarrou em volta do pescoço do cachorro velho. T

odos os homens, menos Candy, ficaram observando.

– Vamo lá, garoto, vamo lá, garoto – disse, cheio de gentileza. E disse para Candy, em tom de desculpa: – Ele nem vai senti nada

– Candy não se mexeu nem respondeu. Deu um puxão na tirinha. – Vamo lá, garoto. O cachorro levantou-se lentamente, todo rígido, e seguiu a direção da guia que o puxava.

Slim disse: – Carlson. – Hã? – Ocê sabe o que tem que fazer.

– Do que é que ocê tá falando, Slim? – Leva uma pá – Slim disse, seco.

– Ah, claro! Entendi. – E conduziu o cachorro pela escuridão. George o seguiu até a porta, fechou-a e colocou a tranca com cuidado no lugar.

Candy ficou deitado imóvel na cama, olhando para o teto.

Slim disse em voz bem alta: – Uma das minha mula ficô co’o casco ruim. Vô tê que ir lá passá um poco de piche nele. – Sua voz foi ficando baixinha.

Lá fora tudo estava em silêncio. Os passos de Carlson foram desaparecendo. O silêncio caiu sobre a casa dos peões. E o silêncio tinha chegado para ficar. George deu uma risadinha: – Aposto que o Lennie tá lá no celero com o cachorrinho dele. Ele nunca mais vai querê entrá aqui, agora que tem um cachorrinho.

Slim disse: – Candy, ocê pode ficá com um dos cachorrinho, se quisé. Candy não respondeu. O silêncio caiu sobre o barracão de novo. Veio da noite fechada e entrou na casa dos peões. Candy procurou ajuda de rosto em rosto. (...) Um tiro soou à distância. Os homens olharam rapidamente para o velho. Todas as cabeças se viraram na direção dele. Por um instante, ele continuou a olhar para o teto. Então rolou na cama lentamente e ficou de frente para a parede, em silêncio. (...)

– Oceis viro só o que fizero com o meu cachorro hoje à noite? Falaro qu’ele num tava mais fazendo bem pra ele memo nem pra ninguém mais. Quando eles me mandá embora daqui, bem que eu ia gostá que alguém me matasse. Mais ninguém vai fazê uma coisa dessa. Eu num vô tê lugá ninhum pra ir, e num vô podê mais arrumá imprego nenhum 

- JOHN STEINBECK - Ratos e homens.

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