Esse texto de HENRY MILLER dá no que pensar:
(...) A calma contenção com que Clausen descrevia seus crimes e seus castigos me deixava cada vez mais perplexo.
Afastei a ideia de que sua maneira era estudada ou deliberada. Comecei a acreditar que seu distanciamento era real.
Acredito que durante os longos, silenciosos, solitários períodos de confinamento ele revisara tão completamente tudo o que lhe acontecera, revivera sua vida com tamanha frequência, tornara-se alternadamente penitente e ensandecido tantas vezes, que, ao ser solto para o mundo exterior, a disciplina que só um santo ou um iniciado consegue suportar teve de encontrar expressão.
Não havia malevolência, nem malícia, nem ódio em suas declarações.
Falava de seus torturadores — e eles evidentemente tinham sido diabos mascarados de carne humana —, falava deles, eu dizia, não com o espírito de perdão que se poderia esperar de um santo, mas com uma compreensão que chegava muito perto disso.
Não tenho certeza, mas mesmo nisso posso estar sendo injusto com ele. Talvez estivesse mesmo pronto a perdoar — se apenas conseguisse forçar-se a acreditar que fora perdoado.
Estava tão perto disso. Era como uma velha árvore pendurada na beirada de um precipício, com todas as raízes retorcidas expostas, penduradas ali milagrosamente, como se personificando o gesto vazio de resistir. Resistir num vazio realmente, pois com certeza aquelas velhas raízes murchas não poderiam ter força para eternizar tal gesto de vontade. O que se podia fazer com uma torre inclinada de força como essa!
Suponha por um momento que o castigo tem suas bênçãos: onde está então o cálice para recebê-las?
Quem pune os outros se dispõe a suportar a mesma coisa em si mesmo?
Quem, tendo cumprido o sagrado propósito de proteger a sociedade, está disposto a aceitar a recompensa que toda vítima oferece? Cegamente castigamos e cegamente empurramos o cálice para longe.
Há homens que estudam os criminosos; há homens que inventam métodos mais humanos para tratar deles; há homens que dedicam sua vida a restaurar para esses indivíduos o que outros tiraram deles.
Sabem coisas com que o cidadão mediano nem sonha. Poderiam nos contar mil jeitos melhores de lidar com a situação do que os que costumamos usar agora.
E, no entanto, afirmo que um mês na prisão vale dez anos de estudo para um homem livre.
Melhor o juízo tortuoso do condenado do que o mais iluminado juízo do observador.
O condenado atinge por fim sua inocência. Mas o observador nem tem consciência de sua culpa.
Para cada crime expiado na prisão, dez mil são cometidos impensadamente por aqueles que condenam.
Não há começo nem fim para isso. Todos estão envolvidos, até o mais santo dos santos.
O crime começa com Deus. Terminará com o homem, quando ele encontrar Deus de novo.
O crime está em toda parte, em todas as fibras e raízes de nosso ser. Cada minuto do dia acrescenta novos crimes ao calendário, tanto aqueles que são detectados e punidos como aqueles que não o são.
O criminoso caça o criminoso. O juiz condena o julgador. O inocente tortura o inocente. Em toda parte, em toda família, toda tribo, toda grande comunidade, crimes, crimes, crimes.
Em comparação a isso, a guerra é limpa; o enforcado é um delicado pombo; Atila, Tamerlão, Gêngis Khan são desajeitados autômatos. Nosso pai, nossa mãe querida, nossa doce irmã: você sabe os crimes infames que abrigam no peito?
Você é capaz de colocar um espelho diante da iniquidade quando ela está logo à mão?
Já olhou o labirinto de seu próprio coração desprezível? Alguma vez já invejou o matador por sua determinação? O estudo do crime começa com o conhecimento de si mesmo.
Tudo o que você despreza, tudo o que abomina, tudo o que rejeita, tudo o que condena e procura transformar pelo castigo vêm de você.
A fonte disso é Deus, que você coloca do lado de fora, acima e além.
O crime é uma identificação, primeiro com Deus, depois com sua própria imagem.
O crime é tudo o que fica do lado de fora do pacote e que é invejado, cobiçado, desejado.
O crime faz cintilar um milhão de lâminas de faca brilhantes a cada minuto do dia e também da noite, quando o despertar dá lugar ao sonho.
O crime é uma lona imensa, rústica, que se estende de infinito a infinito.
Onde estão os monstros que não conhecem crime algum? Que reinos eles habitam? O que os impede de apagar o universo?
- Extraído de Pesadelos refrigerados.
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