11 de junho de 2023
José Bessa Freire
“Qual a invenção humana mais importante? O diálogo”.
Jorge L. Borges, 1972
A má vontade da “grande mídia” em relação ao governo Lula se manifesta em vários campos, especialmente no da política externa. Jornalistas como Eliane Cantanhede – a Lili, William Waack – o Wiwa e Merval Pereira – o Mer são mesquinhos em suas afirmações.
O Mer da Globo formula a pergunta com apenas duas alternativas:
– “O presidente Lula é ingênuo ou megalomaníaco?”
Busca a resposta em jornais dos Estados Unidos (sem nomear nenhum deles), que teriam rotulado Lula de ingênuo “sem qualquer influência na política internacional”. Omite a matéria de capa da Time, a maior revista semanal do planeta, em maio do 2022, que rasga elogios a Lula.
Já o William Wack, demitido da Globo depois que vazou seu comentário racista, classifica a diplomacia de Lula como “papo de boteco”, cuja “política externa se diz neutra, mas escolheu um lado, no caso, o lado da China e da Rússia”. Trata-se de uma projeção, porque quem escolheu um lado e se diz neutro é o próprio Wiwa, um gozador, que falou algo que requer sonora gargalhada:
“Lula desafia a ordem internacional garantida pelos Estados Unidos, baseada em respeito a tratados e onde não vale a lei do mais forte”. Juro que ele disse isso na maior cara-de-pau, cometendo um atentado à história desde o faroeste de extermínio dos índios americanos às guerras mais recentes: Afeganistão, Iraque, Vietnam e centenas de outros.
O facho de Lula
Para Eliane Cantanhede, “Lula se excede em viagens internacionais, o presidente deve abaixar o facho e parar de falar besteira”. Deve “deitar e descansar como fazem as pessoas doentes, principalmente as que têm quase 80 anos de idade”. Velhofóbica? Lili, seis anos mais nova que Lula, ofende a si mesma e a seu falecido avô Raimundo, usineiro de algodão. Equiparar Zelenski a Putin foi um erro – diz Lili – para quem a capital da Ucrânia é Zagreb e não Kiev. A besteira dela está gravada.
– Lula prioriza política externa, mas até agora colheu fracassos – reforça Tiago Mali, editor sênior do Poder 360, que espinafrou Lula “por receber o presidente autocrata da Venezuela”. O que ele quer? Que o Brasil receba o autoproclamado presidente Juan Guaidó?
Felizmente Lula está vagando e andando para os “conselhos” desses “sábios”, que em vez de vomitar preconceitos e disparates deviam se informar melhor e dialogar com a produção sobre o tema dos cientistas políticos composta por dezenas de livros e artigos.
Um deles, Kjeld Aagaard Jakobsen, um dinamarquês radicado no Brasil desde a infância, doutor em relações internacionais pela USP (2016), defendeu tese sobre continuidade, mudanças e rupturas da Política Externa Brasileira. No capítulo 4 aborda a diplomacia do Governo Lula (2003-2010) e mostra o fluxo intenso de viagens internacionais durante oito anos, com 470 dias passados no exterior, o que dá menos de 5 dias por mês.
O custo para o governo foi grande, mas compensou pelo “aumento das relações econômicas com as outras nações, a conquista de novos parceiros comerciais, o aumento das exportações brasileiras e a abertura e ampliação de mercados para investimentos” – escreve Jakobsen, apoiado em dados.
Cientista político
Na tese, Jakobsen conclui que Lula foi capaz de passar uma nova imagem do país no cenário internacional e de redemocratizar a política externa, “devido à sua postura e a seu interesse pelas políticas sociais, pelo enfrentamento da pobreza e pela luta por igualdade entre as nações. Lula tornou-se uma voz em fóruns internacionais da ONU e da OMS no combate contra o protecionismo das economias hegemônicas”.
O cientista político dinamarquês que se abrasileirou – “um viking na periferia do capitalismo” – faleceu em dezembro de 2020, mas nos deixou “seu olhar sobre o mundo”. Ele pesquisou a política externa do Brasil e concluiu:
“Lula é um estadista que conseguiu se relacionar com chefes de Estado com posições políticas absolutamente opostas às suas como George Bush, Jacques Chirac, Alvaro Uribe, entre outros, provavelmente uma herança de seu passado como sindicalista”.
É esse passado do tempo em que liderou as greves em São Bernardo e intermediou as negociações com a FIESP, que fez com que Lula não rosne nem ataque como um Pitt Bull, mas negocie e dialogue, sempre aberto a conversar “com quem discorda de mim”. Isso contribuiu para que Lula se tornasse um Pütchipü´u, personagem central na cultura do povo Wayuu, conhecido como Guajiro na Venezuela e na Colômbia.
Resumo aqui coluna de 30 de maio de 2010, que explica quem é o Pütchipü´u, previsto no direito consuetudinário dos Wayuu, cujo princípio é o de que os conflitos são inevitáveis em todas as sociedades e que cada uma desenvolve mecanismos para manter a ordem, a paz, a harmonia e a coesão social. Para isso, algumas sociedades criaram instituições como polícia, cadeia, tribunal, lei. Os Wayuu criaram um sistema jurídico singular onde quem se destaca é o pütchipü´u.
Mestre do diálogo
Segundo as narrativas míticas, o precursor do pütchipü´u é um pássaro, cuja retórica, similar ao canto das aves, busca a harmonia. O pütchipü´u é o “mestre da palavra’, o “dono do verbo”, enfim um sábio, especialista no manejo da linguagem. Tem a fala envolvente, convincente, sedutora e o dom da clarividência, do bom humor. Sua função é usar tais qualidades para solucionar disputas familiares e conflitos intra-étnicos.
Quando alguém se sente prejudicado, chama logo o pütchipü´u. Ele vem, analisa, conversa com as partes em litigio, persuade, insinua, negocia, cria cenários às vezes ameaçadores sobre possíveis desdobramentos do caso, onde todo mundo pode perder. Não é bem um juiz, mas um intermediário, um mediador na solução das brigas, e isso porque o sistema jurídico Wayuu não é um sistema de “justiça punitiva”, mas de “justiça de compensação”, “justiça de restituição”.
Por isso, a intervenção do pütchipü´u não se conclui com um “ganhador” e um “perdedor”, mas com a restauração da harmonia entre as partes em litígio. O principal é o reconhecimento do dano por parte de quem o fez e uma compensação ao prejudicado, em geral, com o pagamento de indenização, o que é decidido não por uma sentença imposta às partes, mas por consenso, pelo acordo através da conversa, do papo, da negociação, da conciliação.
Dessa forma, os Wayuu consideram os conflitos sociais não como formas indesejadas de patologia social, mas como eventos cíclicos inerentes à vida comunitária, que abrem a possibilidade de recompor as relações sociais, solucionando as desavenças através do diálogo, a mais criativa invenção do ser humano, segundo Borges, mais importante do que a bomba atômica. Contra o canhão, a palavra.
É isso que Mer, Wiwa e Lili não querem admitir: Lula, que veio do mundo da oralidade, construiu seu saber na luta sindical e política, na negociação cercado por baionetas da ditadura. Ele é um sábio pütchipü´u. Só esperamos que imponha um freio ao Centrão e não mude em hipótese alguma a primeira mulher a chefiar o Ministério da Saúde, Nísia Trindade Lima.
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