Veja abaixo alguns escritos sobre as manobras capitalistas para a exploração da água
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- Financeirização da água: do que se trata?
Boletím WRM 214 3 Junho 2015
Nos últimos anos, mecanismos destinados a transformar componentes naturais fundamentais dos bens comuns (biodiversidade, terra, água, florestas e suas funções ecológicas, etc.) em ativos financeiros negociáveis têm se expandido rapidamente. Por causa disso, um número cada vez maior de grupos da sociedade civil se envolve intensamente na tentativa de desvendar os mecanismos, lógicas e motivações por trás dos processos de financeirização e do que eles podem significar para as comunidades. Para reverter essa tendência, que põe em risco a vida de milhões de pessoas em todo o mundo, é fundamental identificar as forças e os principais atores por trás dela.
O processo de “financeirização da economia” penetrou em todos os mercados. Nele, o comércio de dinheiro, riscos e produtos financeiros criados com base neles se tornou mais rentável e começou a superar o de bens e serviços, em nome da acumulação de capital. Mais do que isso: seu alcance se expandiu de áreas como sistemas sociais reprodutivos (aposentadoria, saúde, educação, habitação) para bens comuns da natureza. Neste quadro, a financeirização dos bens comuns naturais cria novos “ativos”, dos quais é possível se apropriar e dos quais investidores financeiros podem extrair lucro, seja diretamente ou através da criação de outras possibilidades de comércio e especulação nos mercados financeiros.
Quando se trata de tentar compreender os mecanismos e as implicações da financeirização da “água”, temos que considerar que estamos nos referindo a uma substância vital, da qual depende toda a vida. Segundo o interesse em questão, a mesma água pode ser classificada de formas diferentes, como: bem comum (compartilhado para o benefício de todos e sem prejudicar ninguém), bem público (a sociedade como um todo se beneficia de um abastecimento público de água que seja seguro), bem privado (consumo de água engarrafada), bem econômico (importante para as pessoas, mas escasso em relação à demanda), um bem de mérito (o consumo depende da capacidade das famílias de pagar por ele) ou um destinado ao bem-estar social (o acesso a água potável como contribuição à saúde pública).
Até que ponto se pode afirmar que a água natural, como bem comum, está financeirizada?
É importante perguntar quais novas tentativas de mercantilização e mercadização da “mercadoria” água foram feitas até agora, como possíveis passos para que aconteça a financeirização, e quais implicações isso terá sobre a nossa organização para reverter essa tendência?
Enquanto outros mercados de commodities estão muito mais avançados, o da água é considerado de grande potencial. Em 2011, o analista financeiro James E. McWhinney escreveu: “A água pode vir a ser a maior história de mercadoria do século XXI. [...] Por que o interesse na água? Como o ouro e o petróleo, a água é uma mercadoria (commodity) – e bastante escassa [...] existem atualmente muitas maneiras de acrescentar água ao seu portfólio – a maioria demanda apenas um pouco de pesquisa” (1).
Em outras palavras, a razão por trás dos investimentos das empresas financeiras em água está ligada à ideia de que uma escassez previsível vai valorizar os fornecedores. A pressão pelo controle da água e, portanto, dos direitos sobre ela, deve crescer em um futuro próximo. Na verdade, “o comércio de água” já foi introduzido em alguns lugares onde foram criados direitos sobre ela, e já há mercados de água em funcionamento. É o caso de alguns países, como a Austrália, África do Sul, oeste dos Estados Unidos, Costa Rica, Espanha e, sobretudo Chile.
Segundo a Reuters, a China também está prestes a iniciar um projeto-piloto de comércio de água: “A China escolheu sete províncias para sediar mercados-piloto de comercialização de direitos sobre a água, no momento em que o governo enfrenta uma crise hídrica crescente, que ameaça reduzir o crescimento econômico e prejudicar a produção de alimentos. A ação é o mais recente sinal de que a China pretende usar mecanismos de mercado para lidar com problemas ambientais cada vez maiores. O país já lançou sete mercados-piloto para reduzir as emissões dos gases do efeito estufa que alteram o clima e planeja estabelecer um regime nacional ainda nesta década” (2). Enquanto isso, o “Plano para salvaguardar os recursos hídricos europeus”, da Comissão Europeia (2012), sugere que o comércio pode ser passar a ser considerado uma ferramenta para gerenciar a água (3).
A existência de mercados de água não leva imediatamente à financeirização. No entanto, os mercados facilitam a criação de novas classes de ativos que podem ser negociados sem qualquer evidência de que isso contribua para melhor alocação ou gestão da água.
O preocupante exemplo do Chile
Uma possível transição da mercantilização à financeirização pode ser observada no Chile, onde o sistema mais neoliberal na América Latina levou a um modelo muito desenvolvido de financeirização da água, no qual ela é totalmente regulada pelo mercado, e o Estado tem um papel meramente administrativo.
Como escreveu Jessica Budds em 2009, “O Chile opera um sistema único de direitos privados negociáveis sobre a água. Segundo o Código de Águas de 1981, os atuais direitos sobre a água (a prerrogativa de usar um determinado fluxo de água em condições específicas) foram convertidos em propriedade privada e regulamentados por meio de mecanismos econômicos e de mercado” (4).
O Código de Águas de 1981 foi aprovado pelo regime militar de Augusto Pinochet, dentro de uma estrutura neoliberal baseada em direitos de propriedade e princípios de mercado. A lei, ainda em vigor, entregou o controle dos recursos hídricos ao setor privado, gratuitamente e por um período ilimitado de tempo. Suas características econômicas e de mercado foram projetadas para considerar a água uma mercadoria como qualquer outra, o que implicava separá-la da terra e do território onde ela flui. Como consequência, os proprietários de terras não possuem automaticamente os direitos sobre a água em suas terras. Portanto, esses direitos – sobre todos os recursos superficiais e subterrâneos – podem ser negociados em separado com relação às terras (5). A consequência é que a água só pode ser usada por quem detiver os direitos correspondentes. O Código de Águas demoliu a estrutura institucional existente e estimulou a criação de um mercado paralelo de direitos sobre a água, permitindo sua alocação gratuita e permanente, sem uma restrição de volumes que pudesse impedir a concentração nas mãos de poucos.
Em 1992, o ex-presidente chileno Patricio Aylwin propôs ao Congresso um projeto de lei que limitava as concessões de direitos de água e previa sua restituição ao Estado quando os detentores desses direitos não os usassem. O Congresso precisou de 13 anos para chegar a um acordo. A lei 20.017 modificou o Código de Águas, mas a restituição dos direitos ao Estado foi considerada uma “receita socialista” e foi substituída por uma “punição pelo não uso”.
Esse ato incomum implicou dois paradoxos. De um lado, pela primeira vez, esses detentores de direitos sobre a água que não a usavam tiveram de pagar mais do que aqueles que a consumiram. A “punição pelo não uso” os forçou a usar água e criou as condições para tornar o desperdício mais conveniente do que preservá-la e evitar o uso indevido. Por outro lado, a reforma permitiu uma maior concentração dos direitos sobre a água em poucas mãos.
De acordo com uma pesquisa publicada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), o preço de venda dos direitos sobre a água nas regiões chilenas centrais, como Valparaíso e Coquimbo, pode ser até 22 vezes maior do que a multa por não usá-la. Como consequência, muitos dos detentores desses direitos preferem pagar a multa para manter os direitos da água até o seu preço subir, e, portanto, ganhar mais dinheiro mais tarde.
Esse sistema não tem nada a ver com o comércio de quantidades reais de água mercantilizada, para uso em agricultura ou serviços urbanos. É um mercado financeirizado, no qual os direitos sobre a água são vendidos e comprados com o único propósito de acumular lucro. Em tempos de escassez de água ou quando sua demanda aumenta por causa, por exemplo, da expansão de atividades industriais de mineração, esses direitos adquirem mais valor, de modo que as oportunidades de lucrar nos mercados financeiros aumentam. O impacto desse processo é absolutamente real: o preço da água é um dos mais altos da América Latina, muitos habitantes de zonas rurais e urbanas não têm acesso, e os detentores dos direitos sobre ela estão aumentando seu poder político e econômico, o que permite o controle social.
Implicações
As implicações da mercantilização e da financeirização da água para as comunidades locais e o meio ambiente são reais, muito reais. Descobrir onde elas diferem e onde se oculta a financeirização da água, e como ela se relaciona com a transformação da natureza em ativos financeiros rentáveis, tem uma importância considerável em termos de organização e apoio às comunidades que lutam contra as consequências. Entender esses processos também é importante para a compreensão de como podemos contribuir para revertê-los.
A água está cada vez mais sendo financeirizada pela criação de classes de ativos com base na mercadoria (commodity) “água” (como no caso do carbono, das florestas, do petróleo, dos alimentos etc.). Esse processo está intimamente ligado à lógica que permite a geração de novos produtos “virtuais” através de “mecanismos de compensação” baseados no maior controle de territórios. Isso abre um horizonte quase ilimitado ao potencial de lucro financeiro e, portanto, demanda que as organizações da sociedade civil atuem de forma solidária para com as comunidades afetadas em todo o mundo, para repensar os métodos tradicionais de defesa e promoção da causa.
Nesse quadro mais amplo, está em jogo a natureza em sua totalidade. E os “mecanismos de compensação”, o comércio de “serviços ecossistêmicos”, o princípio do “capital natural”, os “títulos verdes”, os “créditos de conservação”, os “bancos de biodiversidade” e todos os mecanismos e estruturas relacionados que se baseiam na ideia de colocar um preço em elementos ou funções específicas da natureza estão se tornando verdadeiros desafios. Eles estão acoplados à lógica perversa e ao marco das políticas que estão sendo desenvolvidas para facilitar a apropriação da natureza e de territórios pelo capital financeiro atual. Revelada, essa lógica explica por que esses mecanismos devem ser rejeitados, pura e simplesmente.
A partir desse cenário em mudança, surgem novas questões, que pode ser útil tentar responder coletivamente: o que essa mudança implicam para as comunidades? Até que ponto esse cenário representa uma oportunidade para a construção de alianças para combater e reverter o processo de financeirização? Confrontados com essa nova complexidade, como vamos identificar de forma eficaz as metas de nossas ações? A quem essas novas lógicas e mecanismos realmente beneficiam? Como vamos enfrentá-los de forma eficaz?
Debater estas questões é urgente, pois é fundamental para o avanço das críticas à “financeirização da natureza” de forma mais ampla. E, ao responder a essas questões, podemos lentamente identificar, junto aos afetados, as estratégias possíveis para reverter esta tendência devastadora.
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- Água: a vida…ou a Bolsa?
13 de dezembro de 2020
Latifa Madani
ODIARIO.INFO
Vital ou não, quanto mais um recurso escasseia, mais ele aguça o apetite do capital. A prova: o ouro azul da Califórnia está chegando a Wall Street.
Pior, este novo índice do mercado de ações pode tornar-se «uma referência mundial no preço da água». Um precedente inédito e desastroso para a humanidade.
A água é vida, dizemos nós. É também e acima de tudo um maná financeiro inestimável para negociantes ávidos e sem escrúpulos. Os operadores da Chicago Mercantile Exchange (CME) e da Nasdaq anunciaram, em 27 de outubro, o lançamento no final do ano de contratos a termo sobre as águas californianas. Uma nova etapa na financeirização da água consagrada ainda como um direito humano universal pela ONU.
O recurso vital torna-se um produto financeiro juntamente com o petróleo ou o trigo num dos mercados de ações mais especulativos em que os «especuladores poderão empurrar os preços para cima, tentando vender caro o que compraram barato, colocando portanto em dificuldades agricultores, municípios e os seus habitantes», explica Pierre Ivorra, jornalista econômico («L’Humanité», 28 de outubro).
Esta mudança perigosa do estatuto da água tinha sido anunciada há cinco anos após a COP21. «A alteração climática terá um grande impacto na água disponível. O período da água de nascente que flui naturalmente na ducha terminou”, disse Willem Buiter, consultor do Citigroup, um grande banco americano. «É necessário que as pessoas sintam na carteira em cada gole de água que bebem que a água tem um custo. Não é porque água é vida que não signifique que não deva ter um preço», acrescentou sem complexos. «Encontramo-nos no início da revolução financeira da água.»
Cinco anos depois, aqui estamos. Privatizada na Grã-Bretanha por Thatcher, propriedade de fundos de investimento na Austrália, a água está a caminho de se tornar um índice bolsista no qual os negociantes irão apostar. Com um clique na tela, eles comprarão, venderão ou controlarão megalitros de água. Um recurso sem o qual não haveria vida. O novo índice bolsista de água da Califórnia pode tornar-se “uma referência mundial em preços de água”, avança a Chicago Mercantile Exchange em 27 de outubro, acrescentando: «Dois terços da população mundial vão enfrentar escassez de água em 2025.»
ÁGUA CONTAMINADA MATA 2,6 MILHÕES DE PESSOAS
Quanto mais o recurso escasseia, pela procura e pelo aquecimento global, mais aguça o apetite do capital. A escassez pode afetar, segundo a ONU, 5 bilhões de pessoas em 2050. 2,6 milhões de pessoas, especialmente crianças, morrem todos os anos de doenças relacionadas à água contaminada. A procura de água provoca guerras e migrações. No seu relatório de março, a ONU teme que essas tensões aumentem no futuro.
Uma bênção, por outro lado, para especuladores que contam com este quadro dramático. Para eles, o setor promete um futuro brilhante: “O recurso mais cobiçado do planeta tem uma avenida de crescimento. O seu valor pode em breve superar o do petróleo”, argumentou a revista “Capital” na edição de março, por ocasião do Dia Mundial da Água. «A urbanização, que deve promover um aumento de 80% no consumo urbano» daqui a 2050, “irá beneficiar aqueles que gerem o transporte e distribuição de água” como indica, na mesma revista, um especialista do grupo de gestão dos ativos do Pictet Asset Management. Para “lucrar com as boas perspectivas para as profissões de água”, o especialista recomenda um fundo dedicado, como o Pictet Water. Criado há vinte anos, este fundo registou um ganho de 263% desde o início e de 15% nos últimos doze meses.
No dia 27 de outubro, a Bolsa de Valores de Chicago anunciou o lançamento de futuros sobre a água da Califórnia. São produtos financeiros que podem gerar enormes especulações, especialmente neste Estado em que as reservas de água baixam dramaticamente (frente ao lago Oroville que está seco).
1,1 BILHÕES:
Esta é, em dólares, a estimativa do mercado de água na Califórnia. 40% do consumo neste Estado está ligado à irrigação de 3,5 milhões de hectares de produção agrícola.
PIONEIROS AUSTRALIANOS COM DENTES LONGOS
Os fundos de investimento inauguraram na Austrália o mercado de água como um bom investimento. Neste país, particularmente afetado pelo aquecimento global, cada gota de água conta. Os cursos de água, variando com o clima, inflacionaram os dividendos dos investidores e provocaram a morte de muitas pequenas explorações familiares. Como podemos especular sobre um produto natural essencial para a vida e a humanidade? «É herético. Os mercados financeiros estão sempre prontos para fazer qualquer coisa, a ir sempre mais longe», comenta Emmanuel Poilane, secretário-geral da France Libertés – Fundação Danielle-Mitterrand. Ele lembra que o CEO da Nestlé queria, há dez anos, a criação deste tipo de contratos sobre a água, alegando que «seria bom para o planeta, porque seria para proteger o recurso». No entanto, em 2010, a ONU proclamou que «o direito à água potável e saneamento é um direito fundamental, essencial para o pleno gozo da vida e exercício de todos os direitos humanos». Uma primeira vitória na longa batalha pelo estatuto da água, bem comum.
As Nações Unidas reconheceram assim a centralidade da água na realização de outros direitos. Contudo, «entre uma resolução da ONU e a implementação efetiva de um direito, existe um mundo», explica Sylvie Paquerot da Fundação Danielle-Mitterrand, professora na Universidade de Ottawa. «Este direito não pôs em causa o estatuto da água, ou seja, uma visão puramente econômica, utilitarista e extrativista, o que causa a destruição de coisas vivas e cria fortes desigualdades de acesso. Hoje mais e mais direitos humanos são condicionados à capacidade de pagamento.» Para a especialista, «As batalhas na água são fundamentalmente batalhas políticas e democráticas».
DIREITO À ÁGUA, BOLÍVIA E EQUADOR NA PONTA
A aposta é civilizacional. É objeto de fortes mobilizações populares no mundo inteiro. O direito à água experimentou um progresso significativo quando o Equador, em 2007, e a Bolívia, em 2009, inscreveram nas suas Constituições, aprovadas por referendo, “água, bem comum nacional submetido ao princípio de não mercantilização”. O Equador também definiu a natureza como sujeito de direito. A Nova Zelândia atribuiu aos seus ecossistemas aquáticos personalidade jurídica.
Na Europa, são regularmente travadas lutas contra a mercantilização da água. Em 2012, a iniciativa europeia “Direito à Água (right2water)” reuniu mais de 2 milhões de assinaturas. A Comissão Europeia tomou nota, sem que isso se tivesse traduzido em fatos. Está cheio de armadilhas o caminho para fazer do direito à água uma realidade, para impor que a água seja o bem comum da humanidade e dos seres vivos, e especialmente que não se torne «ouro azul», o petróleo do século XXI.
Em La Victoria del Portete, a cerca de quinze quilômetros de Cuenca, Equador, Carlos Pérez Guartambel garante que não o vão deixar. “Os meus pais ensinaram-me que água e fogo partilham-se, não se vendem», diz o presidente da União de Sistemas Comunitários de Água de Azuay. Neste país, a gestão da água pela comunidade foi arrancada à custa de sangue. Além disso, promete, «a luta pela água vai ser a luta pela vida».
Original em: https://www.france-libertes.org/wp-content/uploads/2020/12/leau-la-vie-ou-la-bourse-huma-dimanche-201120.pdf
(Traduzido por STAL)
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BTG, Iguá e Aegea: o que está por trás do mercado da água no Brasil
19 de Julho de 2023 às 15:34
"A financeirização da água tem consequências preocupantes, como a privatização dos serviços e a exclusão de populações vulneráveis do acesso a esse bem essencial. " - Foto: Freepik
A financeirização da água e os ataques às estatais criam um ambiente propício para os monopólios
A financeirização da água representa a transformação desse recurso natural em uma mercadoria financeira, sujeita à especulação e ao controle por parte de investidores e grandes corporações. Esse fenômeno global tem se intensificado, impulsionado pela busca de lucros no setor de saneamento básico.
No entanto, é importante ressaltar que a água é um direito humano fundamental e não deve ser tratada como uma commodity financeira. A financeirização da água tem consequências preocupantes, como a privatização dos serviços e a exclusão de populações vulneráveis do acesso a esse bem essencial.
Isso pode resultar em aumentos abusivos de tarifas e na diminuição da qualidade dos serviços, minando a governança democrática e o controle social sobre a água, como nos casos da Casal (Alagoas), Sanetins (Tocantins) e da Cedae (Rio de Janeiro), para ficar nos exemplos nacionais. Entre os exemplos internacionais, está o da Thames Water, de Londres, onde houve intervenção de várias instâncias políticas e econômicas.
Sintomas da financeirização
A venda de 11 concessões pela Iguá Saneamento, como parte de sua estratégia de focar em concessões de grande porte, revela uma tendência preocupante de ataque às empresas estatais do setor. Empresas como a Iguá Saneamento buscam concentrar seus esforços em ativos maiores e mais rentáveis, enquanto concessões menores são vendidas, abrindo espaço para a entrada de empresas privadas.
Ao mesmo tempo, as empresas estatais de saneamento, como a Copasa e a Sabesp, são alvo de ataques e pressões para privatização. Esses ataques, muitas vezes mascarados sob a alegação de aumento da eficiência e melhoria dos serviços, têm o objetivo de enfraquecer o papel do Estado no fornecimento de água e abrir caminho para a entrada do setor privado, ampliando o processo de financeirização.
Os movimentos do mercado financeiro, incluindo a participação de gestoras de private equity, desempenham um papel crucial na busca pelo controle das empresas de saneamento. No caso da Iguá Saneamento, a IG4 Water, uma gestora de private equity, juntamente com o Canada Pension Plan Investment Board (CPPIB) e a Alberta Investment Management Corporation (AIMCo), detêm o bloco de controle da empresa.
Essas gestoras de private equity visam obter altos retornos financeiros com os investimentos no setor de saneamento, aproveitando a crescente demanda por serviços de água e esgoto. Nesse processo, utiliza-se de táticas que favorecem a formação de um monopólio privado, minando a competição e concentrando o poder nas mãos de poucas empresas.
Também há indícios de artifícios bancários utilizados pelo BTG Pactual, como coordenador da emissão de debêntures da Iguá Saneamento, para estabelecer sua posição dominante. Esses artifícios podem incluir estratégias de controle do mercado de capitais, visando maximizar seus lucros e estabelecer uma posição privilegiada dentro do setor de saneamento.
A convergência entre a financeirização da água, os ataques às empresas estatais de saneamento e as movimentações do mercado financeiro cria um ambiente propício à formação de um monopólio privado no setor de água no Brasil. Isso representa uma ameaça aos direitos fundamentais da população e ao controle democrático sobre um recurso vital.
Outros sintomas da formação desse monopólio privado seria a compra da Corsan pela Aegea, questionada em diversas instâncias, inclusive no Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, e o recém-leilão de bloco da Sanepar. Essas ações, em sua maioria com alta tendência de financeirização, e a tática da Iguá, assim como da Aegea, é quase a mesma da Equatorial (Grupo 3G).
Ou seja, transformar tudo em demissões, reduções de salários, aumento da conta para a população. Nada de novo no front, além do velho atraso de nossas elites, com o discurso de que para “promover a universalização e a concorrência”, deve-se evitar a concorrência, inclusive do Estado, que é o grande promotor de políticas públicas. Lembremos também que há um novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) por aí, e bilhões em saneamento terão que ser investidos.
É crucial que a sociedade e os órgãos reguladores estejam atentos a essas dinâmicas e atuem para preservar o caráter público e universal do acesso à água. A garantia de um saneamento básico de qualidade para todos deve ser prioridade, e é necessário promover uma gestão participativa, transparente e orientada para o interesse coletivo, resistindo à crescente influência do mercado financeiro no setor de água.
Lucas Tonaco é acadêmico na área de antropologia social e ciências humanas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), secretário de comunicação da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), diretor de comunicação do Sindágua-MG e membro fundador da Frente de Comunicação Urbanitária.
Edição: Larissa Costa
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