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- Bernardo Strobel Guimarães
No turbilhão de eventos que vêm assolando o país, um marco importante para a comunidade jurídica passou quase desapercebido; a promulgação de um novo Código de Processo Civil. Embora a lei tenha sido promulgada há mais de ano, somente agora é que as novas disposições entraram em vigor. E como ser brasileiro costuma ser deixar tudo para a última hora, a turbulência vai ser grande para juízes, promotores e advogados.
E não é sem razão, pois o Código de Processo Civil trata das regras para processar as causas de natureza não criminal, sendo aplicado ainda a diversos outros campos, como processos administrativos e trabalhistas. É algo que de alguma maneira todos os que trabalham junto aos Tribunais precisam conhecer, pois diz respeito ao dia a dia das pessoas. Num paralelo de que gosto: saber processo é como conhecer gramática, ambos servem para organizar as ideias em busca da construção do sentido.
O exame do Código traz algumas novidades e em outros pontos cuida de deixar as coisas como elas já eram, com alguns ajustes. Não vou cansar o leitor com detalhes. A principal missão do Código é, contudo, bastante clara tornar a Justiça mais rápida e eficiente. E uma das ferramentas previstas para isso é reforçar a cultura da conciliação. Ou seja, solucionar as discussões por meio de um consenso estimulado, e não pela decisão de um juiz. Tentar conciliar é regra e não opção. O que o Código parece propor é uma nova mentalidade. Aquela que indica para as partes algo que todos os demais envolvidos com a Justiça já sabem: um litígio costuma gerar mais dissabores do que um acordo. No litígio, não raro todo mundo sai um pouco insatisfeito, seja com a decisão, seja com os custos para se obtê-la, seja ainda com o tempo para haver uma resposta definitiva. E é bastante raro num litígio complexo que uma parte seja exclusivamente a dona da verdade. O que costuma haver é um longo processo de degradação, que conduz a ressentimentos que levam a se procurar o Judiciário para resolver questões para as quais o bom senso já não é mais um recurso.
E aqui se encontra o grande desafio a ser vencido. Mudar leis é fácil, basta que haja vontade política. Mudar hábitos é muito mais difícil. E se isso não ocorrer teremos um Código novo e novas regras para os velhos problemas. No final, o resultado social será o mesmo: uma jurisdição assoberbada de feitos, que não consegue dar conta de atender às expectativas da sociedade. Com efeito, sem uma tomada de consciência de todos os envolvidos, as coisas ficarão exatamente como estão. Infelizmente, inclusive, essa parece ser a tendência acaso se acredite que bastou a vigência da nova lei para que tudo fique melhor. Leis não mudam o mundo, pessoas sim.
Nesta perspectiva duas medidas me parecem urgentes. Urgentes, porque a tendência diante do novo é sempre dizer que ele não é tão bom quanto aquilo que nos é familiar. E se gerarmos o consenso de que tudo continua como d’antes, teremos perdido o momento mágico para mudar o mind set . Quando o processo eletrônico foi criado, várias críticas a ele foram feitas. Todas elas de tom saudosista. Hoje, ele é uma realidade com ampla aceitação. À época, contudo, houve um intenso esforço para mudar a mentalidades da comunidade jurídica. É esse esforço que deve ser feito agora.
Nessa linha, a primeira das medidas diz respeito a criarem-se ambientes que verdadeiramente possam conduzir à conciliação. Nada obstante a previsão dessa obrigatoriedade, o Código entrou em vigor e nada há de concreto nesse sentido. Isso porque de nada adianta prever a obrigatoriedade de tentar conciliar e não prover os meios para implementar isso. Salvo algumas raras exceções, o Judiciário não conta com núcleos de conciliação. E isso será fundamental. É ingênuo pensar que pessoas em litígio conciliarão ao serem postas numa mesma sala pela simples força mística do Código. É necessário que haja conciliadores capazes de compreender os pontos de litígio de modo a estimular o consenso. O Código vige e nada há neste sentido até agora, criando um vácuo perigoso! Aqui parece que a carência de meios que atinge o Poder Judiciário conduz à possibilidade de várias parcerias, especialmente com as Universidades, entidades da sociedade civil, etc. É urgente que algo seja efetivo criado (e não só uma solução paliativa). Precisa ficar claro é que a conciliação é multifacetada. Conciliar litígios de família é diferente de conciliar litígios societários e assim por diante. Logo, devem haver vários ambientes públicos e também privados para dar conta dessa missão. Pluralidade é fundamental. Para criar um sistema de conciliação capaz de dar conta da diversidade das demandas, é necessário gente disposta a conciliar. É preciso criar um consenso nesse sentido e envolver outras estruturas além do Judiciário. Muito provavelmente, se houver a tentativa de o Judiciário absorver tudo, a conciliação se tornará apenas uma formalidade ociosa, que retardaria a aplicação do Direito. Esse é um risco a ser combatido já, pois uma vez que se crie a percepção que conciliar é perder tempo, terá havido dano irreparável.
A outra medida é modificar a própria cultura dos advogados. Goste-se ou não, o advogado é o resultado da cultura do litígio. Ela é ensinada nos bancos da Universidade. Toda vez que escuto falar em “paridade de armas” (expressão comum para os processualistas) o que me vem à mente é o duelo de morte, em que devemos matar para não morrer. O litígio é familiar e o advogado consegue analisá-lo de modo estratégico. Tem aquela familiaridade que alimenta o vício. Mais ainda. Negociar muitas vezes é uma habilidade que os advogados não detêm. Chegou a hora de se investir em alterar esse cenário. Os advogados precisam enxergar que a composição do litígio é o modo mais rápido de efetivar o direito do seu clientes. E, a partir daí, buscar reciclar o seu arsenal de atuação. Há aqui, todavia, uma grande vantagem: o advogado está habituado a se reciclar, quando menos no que se refere às normas com que atua. Não faz muito que passamos pela mudança do Código Civil ou pela difusão do processo eletrônico. O desafio agora é diferente, mas pode ser vencido se houver uma mudança de mentalidade. Precisamos nos reciclar e apreender a negociar, conciliar, mediar, deixando o Judiciário como último (mas último mesmo) recurso. Do contrário, nos tornaremos obsoletos como impressoras matriciais. Aqui novamente surgem novas oportunidades para os que se atualizarem. Em breve veremos a figura do advogado especialista não só em conciliação, mas conciliação no âmbito dos litígios de família, consumidor, etc.
Enfim, o novo Código é uma realidade. É preciso enfrentá-lo de frente, beber da sua essência e tentar vivificá-lo. Não há lugar para o saudosismo idílico. Mais do que isso. Não há dúvidas de que o processo precisa mudar, pois a Justiça precisa mudar. O Código é apenas um catalisador da mudança. Para que de fato as coisas mudem é necessário dar incentivos para tal, de modo a transformar a cultura que estimula o litígio. Quem não se aperceber disso corre o risco de ser atropelado pelos fatos.
*Bernardo Strobel Guimarães é advogado, doutor em Direito pela USP e professor da PUCPR.
Fonte: GAZETA DO POVO
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