Embora tenham sido transformados pela imprensa numa espécie de Al Qaeda, os manifestantes que fazem uso da tática black bloc estão inseridos numa longa tradição de reflexão sobre a forma mais adequada e eficaz de se produzir mudança social por meio do protesto de rua.
Os primeiros black blocs eram grupos informais de autodefesa dos movimentos autônomos da Alemanha ocidental nos anos 1980, os Autonomen. As táticas do grupo consistiam na constituição de linhas de frente para enfrentar a repressão policial e na organização de cordões de isolamento para impedir a infiltração de agitadores nas passeatas. O nome black bloc, (em alemão, “der schwazer Block”) era originalmente uma brincadeira que aludia ao fato das manifestações de rua na Alemanha se organizarem por meio de “blocos” como o verde (formado pelos ambientalistas) e o vermelho (por socialistas ligados aos sindicatos).
Nos Estados Unidos, no final dos anos 1990, os black blocs ganharam um novo contorno, isto é, foram ressignificados. Um pouco antes, na primeira metade dos anos 1990, pequenos black blocs no estilo alemão tinham ocasionalmente aparecido em protestos nos EUA devido à difusão da tática em artigos e livros, como o de George Katsiaficas, antigo aluno de Marcuse.
Mas o black bloc ganhou seu contorno atual durante os protestos contra a Organização Mundial do Comércio, em Seattle, em 1999, quando um grupo optou por romper com a tática de bloquear ruas e praticar resistência passiva, na tradição da desobediência civil não violenta de Gandhi e Martin Luther King Jr.
A desobediência civil não violenta tinha se estabelecido como paradigma dos movimentos sociais dos Estados Unidos depois da vitória do movimento pelos direitos civis nos anos 1960. A tática consistia em desobedecer uma lei injusta e não reagir à violência do Estado que tentava defendê-la. Assim, os ativistas do movimento pelos direitos civis desobedeciam as leis que determinavam lugares separados para negros e brancos ocupando com sit-ins restaurantes e outros ambientes segregados. Quando a polícia reprimia com violência esse ato de desobediência pacífica, as imagens divulgas pela imprensa de manifestantes de uma causa justa sofrendo a repressão violenta do Estado geravam indignação da opinião pública que pressionava pelo fim da segregação.
Mas nos anos 1990 havia um sentimento que aquela tática tinha se esgotado porque a desobediência civil não tinha como gerar efeitos políticos sem a cobertura da violência policial pela imprensa. O professor de Antropologia da London School of Economics, David Graeber, um dos ativistas que compuseram o black bloc de Seattle relata assim o debate que se deu:
Estratégias gandhianas não tem funcionado historicamente nos Estados Unidos. Na verdade, elas nunca funcionaram em escala massiva desde o movimento pelos direitos civis. Isso, porque os meios de comunicação nos EUA são constitutivamente incapazes de noticiar os atos de repressão policial como "violência" (o movimento pelos direitos civis foi uma exceção porque muitos americanos não viam o sul como parte do mesmo país). Muitos dos jovens que formaram o famoso Black Bloc de Seattle eram na verdade ativistas ambientais que estiveram envolvidos em táticas de subir e se prender em árvores para impedir que fossem derrubadas e que operavam em princípios puramente gandhianos -- apenas para descobrirem em seguida que nos Estados Unidos dos anos 1990, manifestantes não-violentos podiam ser brutalizados, torturados e mesmo mortos sem qualquer objeção relevante da imprensa nacional. Assim, eles mudaram de tática. Nós sabíamos de tudo isso. E decidimos que valia a pena correr o risco.
A crítica que os ativistas do Black Bloc de Seattle fizeram às táticas clássicas de Gandhi não é, no entanto, nova. Ela retoma um debate que já havia ocorrido nos anos 1940 entre o socialista dissidente George Orwell e o próprio Gandhi. Num artigo célebre, Orwell argumenta que o método de resistência passiva gandhiano não podia ser generalizado para circunstâncias nas quais não havia uma imprensa livre e atuante que alimentasse uma opinião pública liberal. Ele ironizava, assim, a recomendação de Gandhi de que os judeus perseguidos pelo nazismo deveriam ter cometido suicídio coletivo para despertar a consciência alemã:
A posição do Gandhi era que os judeus alemães deveriam cometer suicídio coletivo, o que “despertaria o mundo e o povo da Alemanha para a violência de Hilter”. Após a guerra, ele se justificou: os judeus teriam sido mortos de qualquer maneira, então pelo menos eles poderiam ter morrido de maneira significativa. (…) Há motivo para pensar que Gandhi, que nasceu em 1869, não entendeu a natureza do totalitarismo e via tudo mais nos termos de sua própria luta contra o governo britânico. A questão importante não é tanto que os britânicos o tenham tratado com tolerância mas o quanto ele sempre pode atuar publicamente. Como se pode ver na sentença citada acima, ele acreditava num “despertar do mundo” que só é possível se o mundo tem a oportunidade de conhecer o que você está fazendo. É difícil imaginar como os métodos de Gandhi podiam ser aplicados em um país no qual os oponentes do regime desaparecem no meio da noite para nunca mais serem encontrados. Sem uma imprensa livre e o direito à reunião é impossível não apenas apelar para a opinião externa, mas criar um movimento de massas ou mesmo fazer suas intenções serem conhecidas pelo adversário.
Tanto Orwell como os ativistas do black bloc de Seattle entendiam que a ausência de uma imprensa livre e atuante impedia que as ações de desobediência não violenta tivessem impacto na opinião pública gerando efeitos políticos. Para enfrentar esse dilema, os ativistas americanos propuseram ressignificar as táticas do black bloc alemão concentrando sua ação numa modalidade de desobediência que era a destruição seletiva de propriedade privada. O objetivo era duplo: por um lado, resgatar a atenção dos meios de comunicação de massa; por outro, transmitir por meio dessa ação de destruição de propriedade uma mensagem de oposição à liberalização econômica e aos acordos de livre comércio.
Ao contrário do que normalmente se pensa, essa ação não apenas não é violenta como é predominantemente simbólica. Ela deve ser entendida mais na interface da política com a arte do que da política com o crime. Isso, porque a destruição de propriedade a que se dedica não busca causar dano econômico significativo mas apenas demonstrar simbolicamente a insatisfação com o sistema econômico. Há obviamente uma ilegalidade no procedimento de destruir a vitrine de uma grande empresa, mas é justamente a conjugação de uma arriscada desobediência civil e a ineficácia em causar prejuízo econômico à empresa ou ao governo que confere a essa ação seu sentido expressivo ou estético, num entendimento ampliado. A destruição de propriedade sem outro propósito que o de demonstrar descontentamento simbolizava e apenas simbolizava a ojeriza aos efeitos sociais da liberalização econômica.
Também é preciso salientar que essa tática se inscreve na longa tradição de não violência do movimento social norte-americano. A destruição seletiva de propriedade privada não é feita de maneira arbitrária, mas segue regras pactuadas pelos ativistas: não podem ser alvo pequenos comércios e as ações não podem resultar na agressão a pessoas ou a animais.
Embora não esteja claro em que medida as ações black bloc foram capazes de transmitir a mensagem política desejada, elas foram sem dúvida eficazes em capturar a atenção dos meios de comunicação de massa – afinal, tinha se mostrada acertada a intuição dos ativistas de que nada despertaria mais a atenção da grande mídia do que uma desobediência do coração do sistema jurídico que é a proteção da propriedade privada.
O impacto midiático das ações do black bloc em Seattle foi tão grande que terminou ofuscando, em parte, a grande construção coletiva que levou tanto às passeatas de massa organizadas pela central sindical AFL-CIO, como aos bloqueios de rua organizados pelos ativistas da Direct Action Network. Esse sucesso em capturar a atenção dos meios de comunicação foi logo percebido por ativistas em todo o mundo e a tática black bloc, na sua roupagem americana, logo entrou no repertório dos movimentos sociais, disseminando-se por todo o planeta nos primeiros anos do século XXI.
O rompimento do consenso no movimento social americano em torno das táticas gandhianas suscitou muitos debates e desde o princípio o black bloc foi acusado de oportunista, de diversionista, de promotor da violência e de isca da repressão policial. Os calorosos debates do início dos anos 2000 foram resolvidos por meio da ideia da "diversidade de táticas", isto é, da ideia de que as diferentes táticas tinham que conviver, respeitando umas as outras – mais ou menos como o “mundo onde caibam muitos mundos” preconizado pelos zapatistas.
Para esse consenso ser atingido foi necessário que aqueles que advogavam a tática exclusiva de bloqueios e ocupações (sit-ins) não violentos entendessem que os que aderiam à tática black bloc também participavam da tradição da não-violência, pois não atacavam pessoas, mas coisas. A partir desse consenso, os protestos de rua passaram a ser divididos em grupos que ocupavam cada um uma parte da cidade, de maneira que pudessem coexistir. Esse mesmo consenso existiu no Brasil no início dos anos 2000 durante os protestos contra a ALCA, onde aconteceram as primeiras ações black bloc no país.
No entanto, na onda de mobilizações globais que começou em 2011, parece que esse aprendizado foi esquecido e os duros ataques aos black blocs reapareceram no Occupy Wall Street, na insurreição no Egito, nos protestos na Grécia e também no Brasil. Os ativistas que compunham os Black Blocs foram tratados como arruaceiros inconsequentes, luditas irracionais e bandidos oportunistas. O fato de que os grupos no Brasil em geral tem respeitado os princípios da tática, que inclui não agredir pessoas, nem atacar pequenos comércios não é levado em conta nas acusações de "violentos" e, assim, um ato de desobediência civil (a destruição de propriedade) se torna equivalente à agressão a pessoas.
Enquanto a destruição da vidraça de bancos ganha enorme visibilidade, a repressão da polícia a manifestantes pacíficos segue invisível para a maior parte da grande imprensa. E não é só a agressão a manifestantes que é invisível. Toda a ação abusiva e violenta da polícia nas periferias das grandes cidades não recebe cobertura ou recebe uma cobertura discreta, sem destaque editorial.
A imprensa gasta páginas e mais páginas de jornal e dezenas de minutos de jornalismo televiso para discutir a “violência” contra vidraças enquanto a verdadeira violência contra a vida ganha apenas menções pontuais. Ao chamar a atenção para os bancos, para as grandes marcas e para o estado brasileiro, os manifestantes que fazem uso da tática black bloc no Brasil resgatam a atenção dos meios de comunicação e tentam redirecioná-la para o sistema econômico e político que está na gênese da verdadeira violência da nossa sociedade.
São pertinentes as dúvidas se sua mensagem está sendo adequadamente recebida pelo público e se a tática facilita a infiltração de provocadores e afasta simpatizantes da causa. Mas, seja como for, não resta dúvidas de que sua ação não é violenta, nem arbitrária, nem irracional.
Os jovens que estão nas ruas merecem o respeito de serem tratados como atores políticos consequentes – e nossa indignação precisa estar orientada para a verdadeira violência, aquela que agride manifestantes pacíficos e faz desaparecer Amarildos. Afinal, vidas devem valer muito mais do que vidraças.
Referências:
Dupuis-Déri, F. Les Black Blocs: la liberté et l'égalité se manifest. Québec: Lux, 2007 [em português: Black Blocs. São Paulo: Veneta, 2014]
Graeber, D. Concerning the Violent Peace-Police: An Open Letter to Chris Hedges. Disponível em: <http://nplusonemag.com/concerning-t...>
Katsiaficas, G. The subversion of politics: european autonomous social movements and the decolonization of everyday life. Nova Jersey: Humanities Press, 1997.
Orwell, G. Reflections on Gandhi. In: A collection of essays. Wiimington: Mariner books, 1970. [em português: Reflexões sobre Gandhi. In: Dentro da baleia e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005].
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