A VISÃO revela o que a investigação tem contra o juiz suspeito de vender sentenças judiciais: a lista dos clientes, as escutas, os emails e os movimentos bancários de uma alegada rede que usava o poderoso Tribunal da Relação de Lisboa
Rui
Rangel já só quase falava por Whatsapp (o sistema VOIP não é rastreável
pelas escutas telefónicas) quando cometeu um deslize a 25 de maio de
2017. Nesse dia, desesperado por dinheiro para pagar as contas, o juiz
enviou várias mensagens a José Bernardo Santos Martins, o advogado que é
suspeito de ser o seu testa de ferro. Apesar de o desembargador ter
disfarçado e ter perguntado como estava o assunto “Rita”, Santos Martins
respondeu falando de uma “Natércia”, e dizendo que pensava que aquela
já teria pago ou iria pagar. Não satisfeito, Rangel voltou a insistir. O
amigo advogado respondeu-lhe que ela tinha andado “a juntar das
receitas dos restaurantes” e no dia seguinte já pagava: “Ainda é um
valor considerável,
€1 300.” Mesmo assim, o juiz do Tribunal da Relação
de Lisboa voltou a dar ordens: “Mas tem de ser hoje, fala com a
Natércia.”
Nesse mesmo dia, Santos Martins ter-se-á encontrado com uma secretária de Natércia, que o informou que já tinha feito o pagamento de uma das referências multibanco (no valor de €258,11) e no dia seguinte pagaria a outra. A 18 de agosto, foi Santos Martins quem voltou a abordar o assunto “Natércia” junto de Rangel, informando-o de que “€130” teriam chegado através dela.
Santos Martins e Rui Rangel falavam sobre Natércia Pina, funcionária hospitalar e dirigente do PSD Oeiras que é suspeita de fornecer ao marido, empresário da restauração, informações confidenciais sobre os concursos para a concessão de cantinas e cafetarias em hospitais no processo Pratos Limpos e que já foi visada em outros quatro processos judiciais por crimes de burla e de abuso de confiança fiscal.
Os procuradores que conduzem a Operação Lex estão convencidos de que Natércia Pina fez pagamentos e transferências bancárias, via Santos Martins, que “beneficiaram diretamente Rui Rangel” ou pessoas indicadas pelo juiz. Natércia é uma das 16 pessoas ou entidades que o Ministério Público aponta como supostos clientes da rede de Rui Rangel.
Como sabia que estava a ser investigado pelo Supremo Tribunal de Justiça, Rangel terá tido cuidados redobrados no último ano, evitando falar ao telefone com alegados clientes e procurando não deixar rasto destes alegados trabalhos paralelos. Foi por isso que, a determinada altura, a investigação ficou vidrada nas conversas telefónicas de Rita Figueira, ex-companheira do desembargador e mãe de uma das suas filhas. A 17 de maio de 2017, Rita Figueira contou ao pai, Albertino Figueira, que o juiz do Tribunal da Relação de Lisboa vendia a sua influência junto de clientes que procuravam decisões judiciais favoráveis. E usou expressões pomposas para descrever a alegada atividade oculta do desembargador. Chamou-lhe serviço de “distribuição [de processos] a juiz da sua confiança para decisão a contento” (decisão satisfatória). Acrescentou ainda, nessa mesma conversa, que todo o dinheiro do desembargador estava nas mãos do advogado Santos Martins, nas contas do filho desse advogado (Bernardo Martins) e “lá fora”. Cerca de dois meses depois, a 27 de julho, a ex-companheira de Rangel trouxe ao processo outro pormenor sumarento, confidenciando ao pai que o juiz teria escondido dinheiro numa casa de Santos Martins, na Guarda.
Também Santos Martins, detido na Operação Lex por suspeitas de manter negócios privados com Rangel e de ser há anos o guardião do seu dinheiro, esteve sob escuta durante meses. A 30 de maio de 2017, enquanto conversava com um alegado cliente seu e do juiz, desabafou que Rangel tinha “a vida toda enredada” à sua volta, pelo que, se ele caísse, o juiz também cairia e iria ser “uma grande confusão”.
Estas conversas são consideradas vitais para a investigação por sustentarem a tese de que Rui Rangel, desde pelo menos 2004, “de forma sistemática e reiterada”, ofereceria a terceiros um alegado poder de influência junto de outros magistrados para conseguir decisões judiciais favoráveis. O Ministério Público chama-lhe “mercado de traficância de influência” e alega que Rangel chegaria mesmo a invocar junto da sua clientela que teria poderes “de manipulação da distribuição de processos aos juízes do Tribunal da Relação de Lisboa” – onde trabalhava e onde chegam os recursos da maior parte dos processos mediáticos do País. Tem 154 juízes e é o fim da linha para muitos arguidos que lutam por uma medida de coação mais reduzida, uma vez que só algumas penas permitem que se recorra para o Supremo Tribunal de Justiça (tribunal acima da Relação). É também o tribunal para o qual se recorre das decisões de juízes de instrução. Ou seja: é onde um arguido pode tentar invalidar escutas e arrestos de bens ou reduzir as suas medidas de coação.
Uma boa parte das verbas chegaria via Santos Martins. O advogado terá depositado €394 mil em dinheiro vivo em contas conjuntas do desembargador com a juíza Fátima Galante (com quem Rangel ainda é casado oficialmente), entre janeiro de 2007 e janeiro de 2017. Ao todo, terão sido 270 depósitos em numerário, havendo dias em que houve três em três agências bancárias distintas. 2013 foi o ano em que mais dinheiro vivo caiu nas contas de Rangel via Santos Martins: 124 mil euros.
O advogado alega que fazia há anos pagamentos a Rangel e a Galante para saldar uma dívida decorrente de negócios imobiliários. Mas a frequência das operações e a sofreguidão de Rangel nos pedidos de auxílio financeiro deixam o Ministério Público com muitas dúvidas sobre esta defesa.
Além dos depósitos em numerário, Santos Martins terá feito chegar às contas de Rangel mais €156 mil através de cheques e transferências bancárias. Terá ainda assegurado pagamentos de um crédito pessoal contraído por Rangel e Galante junto da Credibom, num total de perto de €48 mil; comprado móveis para Rangel de quase €20 mil e cedido perto de €10 mil para pagar despesas do juiz com telefone, carro, água, luz, gás e farmácia. A investigação também detetou depósitos de Santos Martins nas contas de Rita Figueira e do seu pai, Albertino Figueira, e desconfia que o advogado suportou pelo menos uma parte das rendas mensais de €2 350 de um apartamento no Saldanha, em Lisboa, onde Rangel morou entre 2012 e 2013.
Alguns destes movimentos bancários estão até sublinhados a negrito no processo. O Ministério Público reparou, por exemplo, na coincidência das datas dos depósitos nas contas de Rui Rangel com as datas de transferências do ex-agente de futebolistas José Veiga para Bernardo Martins, filho de Santos Martins – porque coincidem com dois momentos: um primeiro, em que Veiga manda a Santos Martins o recurso que ia apresentar no Tribunal da Relação de Lisboa; um segundo momento, já após Veiga ter sido absolvido por aquele tribunal superior.
José Veiga encabeça a lista de alegados clientes de Rangel: é suspeito de ter pago pelo menos €280 mil pelas alegadas influências de Veiga nesse processo da Relação de Lisboa; de ter intercedido junto de Rangel para saber informações sobre o estado de um processo fiscal pendente no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, e para que influenciasse a juíza da Relação de Lisboa a quem tinha sido distribuído um processo que visava Pedro Sousa, ex-assessor de comunicação do Sporting e amigo de Veiga. O Ministério Público ainda está à procura de indícios que demonstrem se Rangel exerceu influência junto desses juízes, como terá prometido a Veiga.
A análise aos movimentos bancários ainda não está concluída, mas a investigação já suspeita de que, no final, os valores somados ficarão aquém dos montantes alegadamente pagos a Rangel pela sua clientela, já que algumas quantias terão sido entregues em mãos ao desembargador, ou diretamente pelos clientes, ou pelo intermediário Santos Martins, quando se encontravam no escritório do advogado no 4.º andar do número 30 da Avenida de Berna.
Para já, o Ministério Público terá descoberto que o magistrado encontrara outras formas mais criativas de receber dinheiro pelos seus alegados serviços. Nalguns casos os clientes seriam chamados a pagar contas do juiz, usando as referências multibanco; noutros, assinariam contratos de arrendamento e pagariam as rendas de apartamentos em Lisboa.
Até ao momento, a investigação já detetou transferências, cheques, depósitos, pagamentos de rendas, de contas e de outras despesas do dia a dia de Rangel ou de pessoas próximas no valor de mais de €900 mil.
Comecemos
por um dos mais sonantes: Luís Filipe Vieira. Em 2017, o dirigente
benfiquista Fernando Tavares e o advogado Jorge Barroso terão
intermediado um pedido para que Rangel influenciasse uma juíza que tinha
nas mãos um processo fiscal relacionado com uma empresa de Vieira, hoje
designada como Votion – Investimentos Imobiliários. Era importante,
dizia o presidente do Benfica, pelo menos saber “o nome do juiz” e que a
questão estivesse resolvida antes do encontro com os “marqueses”. Em
troca, Rangel teria um cargo bom no Benfica, com um salário “atrativo”
de diretor. Por várias vezes, ao telefone, Jorge Barroso terá pedido a
Rangel para que ele não se esquecesse do assunto. Enquanto o juiz ia
desviando a conversa ou dando respostas vagas, como “está a andar”, e
Jorge Barroso se queixava de que o desembargador era “um baldas”, Luís
Filipe Vieira dizia que ia “apertar” com Rangel para ver se este
resolvia aquele problema.
O juiz e Jorge Barroso terão mantido outros contactos relacionados com negócios do SLB que nada tinham que ver com processos judiciais. Ao longo de 2017, discutiram a formulação dos estatutos para um projeto de uma fundação conexa com o Benfica, serviços de catering para o SLB e os planos para construir um centro de alto rendimento, apetrechado de um hotel e de uma clínica, nos terrenos da Câmara de Lisboa, onde é o Rock in Rio. Para o último projeto, Jorge Barroso terá mesmo chegado a encontrar-se com Azim Jamal, membro do grupo Azinor, que controla a cadeia de hotéis Sana, apresentando-se como amigo de Rangel e sugerindo um jantar com Luís Filipe Vieira.
Ao mesmo tempo, Rangel também terá intermediado encontros entre Barroso e Jaime Rodrigues, administrador da Visagest Investments, em que seriam discutidos negócios com o grupo de investidores que adquiriu o BES de Cabo Verde.
O advogado com escritório na Avenida de Berna escreveu um email a uma mulher chamada Nady, dizendo que seguia as instruções de “Rui”, o “meritíssimo” e “amigo em comum”. Prometeu-lhe uma compensação monetária e identificou Carlos Feijó, ex-chefe da Casa Civil e ex-ministro de Estado do governo de Angola, como a pessoa que podia influenciar o Ministério das Finanças angolano a emitir a declaração. Santos Martins ainda deu nota à Nady de que os 2,5 milhões de dólares afetos àquela questão seriam libertados, assim que o banco aprovasse o financiamento à Visagest.
Em comunicações posteriores, fica claro que a Visagest terá conseguido atingir estes objetivos com a intervenção de “pessoas influentes”. E, em 2011, a empresa volta a aparecer nos emails de Santos Martins, numa relação com Renato Pereira, ligado à Hotel Jupiter e que também aparece no processo Lex como suspeito de ser cliente de Rangel. Em julho de 2011, Santos Martins propôs-lhe um projeto de reabilitação de um hotel no Porto e adiantou-lhe que o negócio podia ser feito em Angola e pago em kwanzas. Em novembro, Renato Pereira concordou em ceder um patrocínio de €1 500 à tuna académica do filho de Rangel e, em dezembro desse ano, acedeu que a sua empresa disponibilizasse à Visagest €80 mil. Esse dinheiro destinar-se-ia a financiar uma viagem de Jaime Rodrigues, administrador da Visagest, aos Emirados Árabes Unidos, na companhia do general Higino Carneiro.
O Ministério Público acredita que Renato Pereira pagava os serviços de Rui Rangel e de Santos Martins “de forma dissimulada”, usando a conta bancária de Bernardo Martins. Em junho de 2012, as relações entre os três azedaram, queixando-se Renato Pereira, num email, de que entregara dinheiro a Santos Martins, porque o mesmo lhe dissera que era “para o Rui”.
Já a Visagest não saiu de cena. O Ministério Público desconfia que a empresa poderá ter pago algumas das rendas mensais do apartamento que Rui Rangel arrendou, em 2012, na Praça Duque de Saldanha, em Lisboa. Isto porque Santos Martins remeteu para um email da empresa, com o assunto “Saldanha Piso 5”, uma mensagem do proprietário do imóvel dando conta de que pretendia rescindir o contrato de arrendamento por falta de pagamento.
Rangel acabaria por deixar este imóvel em julho de 2013, data em que encontrou outro, na Avenida Infante Santo, com quatro lugares de garagem e uma renda mensal de €3500. Eliseu Bumba, um angolano que é arguido no caso Vistos Gold e a quem Rangel terá prestado serviços, terá suportado, através de uma das suas empresas angolanas (a MERAP), os pagamentos da renda desse apartamento, onde Rangel morou durante 31 meses. Essa ajuda terá permitido ao juiz poupar €108 500. Até fevereiro de 2016, o juiz foi enviando a Santos Martins faturas da água, gás, luz e MEO que ascendiam aos€ 721. Nenhuma estava emitida em seu nome.
Os contactos entre Rangel e Eliseu Bumba decorreram pelo menos entre 2010 e 2013. Em 2011, €10 mil de Eliseu Bumba, e que se destinavam a uma conta de Santos Martins, terão sido trazidos para Portugal por Renato Pereira, da Hotel Jupiter.
O juiz do Tribunal da Relação de Lisboa e os seus alegados colaboradores andariam há anos a apostar noutros mercados. É assim que aparece no processo um banqueiro moçambicano: Inaete Merali, presidente do Moza Banco. Apesar de ser arguido no Rota do Atlântico, por suspeitas de receber subornos de empresas para conseguir obras públicas no Congo Brazzaville, José Veiga não parou de apostar em negócios naquele país. Barroso fez a ponte entre o empresário e o banqueiro moçambicano, para um esquema de financiamento de hospitais públicos no Congo que deveria envolver os fundos árabes de Inaete Merali. Barroso iria relatando a Rangel o andamento destes projetos.
O juiz terá ainda sido chamado a arranjar um parecer para uma PPP, no âmbito do setor das pescas em São Tomé e Príncipe, e não se terá inibido de exigir um pagamento a quem lhe fez este pedido (Paulo Morais e Silva, presidente da Fundação Pro-Justitiae).
Estas relações da rede chegam também a países árabes e apanham a multinacional Martifer. Em 2009, Vítor Costa, gestor da Pink Bubble, escreveu um email a Santos Martins, dizendo-se desiludido com os resultados de uma viagem de negócios a um país árabe. Antes disto, Santos Martins tinha enviado outro email com a descrição da viagem, do itinerário e de quem integrava a comitiva, incluindo aqui a Pink Bubble/staff do xeique e a Martifer/Prio, representada pelos fundadores Carlos Martins e Jorge Martins. Nesse texto, Santos Martins dizia que os representantes da Prio poderiam dar uma “oferta de €40-50 mil ao ministro do Interior” do país em causa, o que leva o Ministério Público a suspeitar de corrupção de titulares de cargos políticos no comércio internacional.
No último ano, Santos Martins foi dando informações ao minuto a Rui Rangel sobre o dinheiro que ia entrando nas contas. O advogado chegou ao ponto de sossegar o nervosismo de Rangel, dizendo-lhe que “o homem que traz o dinheiro” estava a chegar. Na verdade, nestes últimos meses, o desembargador foi dando instruções quase diárias a Santos Martins para que aquele fizesse pagamentos diversos. O advogado destacou o seu enteado Nuno Proença para socorrer o juiz nos seus apertos. Um dia, Nuno levava embrulhos de dinheiro a uma das ex-companheiras de Rangel, noutro dia tinha de pagar contas, noutro tinha de ir instalar a Via Verde no carro do desembargador e noutros ainda tinha de ir buscar €1 000 a uma comerciante de Algés, para depois entregar esse dinheiro a Fátima Galante, a juíza com quem Rangel ainda é oficialmente casado.
O juiz saiu do Supremo Tribunal de Justiça indiciado por tráfico de influência, fraude fiscal e branqueamento de capitais, e impedido de contactar 31 pessoas. Todos aqueles que são suspeitos de serem seus clientes estão nessa lista. A defesa de Rangel irá alegar que muitos destes serviços não constituem crimes, apenas condutas que podem sofrer sanções disciplinares. A matéria disciplinar dos juízes prescreve passado um ano dos factos.
Galante é ainda suspeita de ajudar Rangel a fazer acórdãos. O Ministério Público detetou vários pedidos de Rangel neste sentido. Em março de 2017, o juiz queixou-se de que não conseguia fazer seis acórdãos até à segunda-feira seguinte e disse a Galante que lhe ia enviar três e que os outros ficariam para a semana seguinte. Em outubro, o desembargador voltou a queixar-se da falta de tempo: tinha 12 acórdãos para fazer até ao final da semana, pelo que ia enviar alguns à juíza da área cível. Em julho, perante mais um prévio pedido de Rangel, Galante enviou-lhe esta SMS: “Papi, já enviei relatório do 2º acórdão.”
Nesse mesmo dia, Santos Martins ter-se-á encontrado com uma secretária de Natércia, que o informou que já tinha feito o pagamento de uma das referências multibanco (no valor de €258,11) e no dia seguinte pagaria a outra. A 18 de agosto, foi Santos Martins quem voltou a abordar o assunto “Natércia” junto de Rangel, informando-o de que “€130” teriam chegado através dela.
Santos Martins e Rui Rangel falavam sobre Natércia Pina, funcionária hospitalar e dirigente do PSD Oeiras que é suspeita de fornecer ao marido, empresário da restauração, informações confidenciais sobre os concursos para a concessão de cantinas e cafetarias em hospitais no processo Pratos Limpos e que já foi visada em outros quatro processos judiciais por crimes de burla e de abuso de confiança fiscal.
Os procuradores que conduzem a Operação Lex estão convencidos de que Natércia Pina fez pagamentos e transferências bancárias, via Santos Martins, que “beneficiaram diretamente Rui Rangel” ou pessoas indicadas pelo juiz. Natércia é uma das 16 pessoas ou entidades que o Ministério Público aponta como supostos clientes da rede de Rui Rangel.
Como sabia que estava a ser investigado pelo Supremo Tribunal de Justiça, Rangel terá tido cuidados redobrados no último ano, evitando falar ao telefone com alegados clientes e procurando não deixar rasto destes alegados trabalhos paralelos. Foi por isso que, a determinada altura, a investigação ficou vidrada nas conversas telefónicas de Rita Figueira, ex-companheira do desembargador e mãe de uma das suas filhas. A 17 de maio de 2017, Rita Figueira contou ao pai, Albertino Figueira, que o juiz do Tribunal da Relação de Lisboa vendia a sua influência junto de clientes que procuravam decisões judiciais favoráveis. E usou expressões pomposas para descrever a alegada atividade oculta do desembargador. Chamou-lhe serviço de “distribuição [de processos] a juiz da sua confiança para decisão a contento” (decisão satisfatória). Acrescentou ainda, nessa mesma conversa, que todo o dinheiro do desembargador estava nas mãos do advogado Santos Martins, nas contas do filho desse advogado (Bernardo Martins) e “lá fora”. Cerca de dois meses depois, a 27 de julho, a ex-companheira de Rangel trouxe ao processo outro pormenor sumarento, confidenciando ao pai que o juiz teria escondido dinheiro numa casa de Santos Martins, na Guarda.
Também Santos Martins, detido na Operação Lex por suspeitas de manter negócios privados com Rangel e de ser há anos o guardião do seu dinheiro, esteve sob escuta durante meses. A 30 de maio de 2017, enquanto conversava com um alegado cliente seu e do juiz, desabafou que Rangel tinha “a vida toda enredada” à sua volta, pelo que, se ele caísse, o juiz também cairia e iria ser “uma grande confusão”.
Estas conversas são consideradas vitais para a investigação por sustentarem a tese de que Rui Rangel, desde pelo menos 2004, “de forma sistemática e reiterada”, ofereceria a terceiros um alegado poder de influência junto de outros magistrados para conseguir decisões judiciais favoráveis. O Ministério Público chama-lhe “mercado de traficância de influência” e alega que Rangel chegaria mesmo a invocar junto da sua clientela que teria poderes “de manipulação da distribuição de processos aos juízes do Tribunal da Relação de Lisboa” – onde trabalhava e onde chegam os recursos da maior parte dos processos mediáticos do País. Tem 154 juízes e é o fim da linha para muitos arguidos que lutam por uma medida de coação mais reduzida, uma vez que só algumas penas permitem que se recorra para o Supremo Tribunal de Justiça (tribunal acima da Relação). É também o tribunal para o qual se recorre das decisões de juízes de instrução. Ou seja: é onde um arguido pode tentar invalidar escutas e arrestos de bens ou reduzir as suas medidas de coação.
Mais de €900 mil e 270 depósitos
A 8 de janeiro deste ano, dia em que o juiz Pires da Graça ia interrogar Rui Rangel no Supremo Tribunal de Justiça, o desembargador optou por ficar em silêncio. Uma sala cheia de caixas com documentos esperava pelo juiz, mas o seu advogado João Nabais alegou que uma hora seria insuficiente para consultar todo o processo. Além das escutas telefónicas, o Ministério Público já tinha concentrado em dossiers os emails apreendidos nas primeiras buscas e 29 apensos bancários que mostram em pormenor como ele iria recebendo dinheiro dos alegados clientes.Uma boa parte das verbas chegaria via Santos Martins. O advogado terá depositado €394 mil em dinheiro vivo em contas conjuntas do desembargador com a juíza Fátima Galante (com quem Rangel ainda é casado oficialmente), entre janeiro de 2007 e janeiro de 2017. Ao todo, terão sido 270 depósitos em numerário, havendo dias em que houve três em três agências bancárias distintas. 2013 foi o ano em que mais dinheiro vivo caiu nas contas de Rangel via Santos Martins: 124 mil euros.
O advogado alega que fazia há anos pagamentos a Rangel e a Galante para saldar uma dívida decorrente de negócios imobiliários. Mas a frequência das operações e a sofreguidão de Rangel nos pedidos de auxílio financeiro deixam o Ministério Público com muitas dúvidas sobre esta defesa.
Além dos depósitos em numerário, Santos Martins terá feito chegar às contas de Rangel mais €156 mil através de cheques e transferências bancárias. Terá ainda assegurado pagamentos de um crédito pessoal contraído por Rangel e Galante junto da Credibom, num total de perto de €48 mil; comprado móveis para Rangel de quase €20 mil e cedido perto de €10 mil para pagar despesas do juiz com telefone, carro, água, luz, gás e farmácia. A investigação também detetou depósitos de Santos Martins nas contas de Rita Figueira e do seu pai, Albertino Figueira, e desconfia que o advogado suportou pelo menos uma parte das rendas mensais de €2 350 de um apartamento no Saldanha, em Lisboa, onde Rangel morou entre 2012 e 2013.
Alguns destes movimentos bancários estão até sublinhados a negrito no processo. O Ministério Público reparou, por exemplo, na coincidência das datas dos depósitos nas contas de Rui Rangel com as datas de transferências do ex-agente de futebolistas José Veiga para Bernardo Martins, filho de Santos Martins – porque coincidem com dois momentos: um primeiro, em que Veiga manda a Santos Martins o recurso que ia apresentar no Tribunal da Relação de Lisboa; um segundo momento, já após Veiga ter sido absolvido por aquele tribunal superior.
José Veiga encabeça a lista de alegados clientes de Rangel: é suspeito de ter pago pelo menos €280 mil pelas alegadas influências de Veiga nesse processo da Relação de Lisboa; de ter intercedido junto de Rangel para saber informações sobre o estado de um processo fiscal pendente no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, e para que influenciasse a juíza da Relação de Lisboa a quem tinha sido distribuído um processo que visava Pedro Sousa, ex-assessor de comunicação do Sporting e amigo de Veiga. O Ministério Público ainda está à procura de indícios que demonstrem se Rangel exerceu influência junto desses juízes, como terá prometido a Veiga.
A análise aos movimentos bancários ainda não está concluída, mas a investigação já suspeita de que, no final, os valores somados ficarão aquém dos montantes alegadamente pagos a Rangel pela sua clientela, já que algumas quantias terão sido entregues em mãos ao desembargador, ou diretamente pelos clientes, ou pelo intermediário Santos Martins, quando se encontravam no escritório do advogado no 4.º andar do número 30 da Avenida de Berna.
Para já, o Ministério Público terá descoberto que o magistrado encontrara outras formas mais criativas de receber dinheiro pelos seus alegados serviços. Nalguns casos os clientes seriam chamados a pagar contas do juiz, usando as referências multibanco; noutros, assinariam contratos de arrendamento e pagariam as rendas de apartamentos em Lisboa.
Até ao momento, a investigação já detetou transferências, cheques, depósitos, pagamentos de rendas, de contas e de outras despesas do dia a dia de Rangel ou de pessoas próximas no valor de mais de €900 mil.
Centro de alto rendimento do SLB
Mas afinal quem são estes clientes de Rui Rangel? A lista não está fechada, e o Ministério Público assume que ainda falta cruzar a lista da alegada clientela do juiz com os visados nos processos que decidiu ou foram decididos noutros tribunais. Para já, a investigação suspeita da existência de 16 clientes que terão sido angariados por Rangel, Jorge Barroso ou Santos Martins num esquema em que os três partilhariam as vantagens obtidas com esses serviços. Essa lista tanto engloba nomes sonantes, como o de José Veiga ou de Luís Filipe Vieira, como o de desconhecidos apresentados apenas pelo nome próprio. Nalguns casos, estarão em causa suspeitas mais graves de tráfico de influência para conseguir decisões judiciais favoráveis; noutros serviços jurídicos prestados pelo juiz do mais variado tipo, desde pareceres para parcerias público-privadas relacionadas com pescas em São Tomé a ajudas na obtenção de vistos.O juiz e Jorge Barroso terão mantido outros contactos relacionados com negócios do SLB que nada tinham que ver com processos judiciais. Ao longo de 2017, discutiram a formulação dos estatutos para um projeto de uma fundação conexa com o Benfica, serviços de catering para o SLB e os planos para construir um centro de alto rendimento, apetrechado de um hotel e de uma clínica, nos terrenos da Câmara de Lisboa, onde é o Rock in Rio. Para o último projeto, Jorge Barroso terá mesmo chegado a encontrar-se com Azim Jamal, membro do grupo Azinor, que controla a cadeia de hotéis Sana, apresentando-se como amigo de Rangel e sugerindo um jantar com Luís Filipe Vieira.
Ao mesmo tempo, Rangel também terá intermediado encontros entre Barroso e Jaime Rodrigues, administrador da Visagest Investments, em que seriam discutidos negócios com o grupo de investidores que adquiriu o BES de Cabo Verde.
O banqueiro moçambicano e o ex-ministro angolano
Não foi a primeira vez que a investigação se debruçou na Visagest. Em 2010, Santos Martins foi informado por Jaime Rodrigues de que a empresa Levon Construções devia 45 milhões de dólares à Visagest e que o pagamento estava dependente de um financiamento bancário que só seria desbloqueado se o governo angolano emitisse uma declaração de dívida à Levon. No seguimento desta conversa, Jaime Rodrigues disse a Santos Martins que seria necessário “um empurrão” e que, caso esse empurrão fosse dado, haveria compensações financeiras “muito atrativas”.O advogado com escritório na Avenida de Berna escreveu um email a uma mulher chamada Nady, dizendo que seguia as instruções de “Rui”, o “meritíssimo” e “amigo em comum”. Prometeu-lhe uma compensação monetária e identificou Carlos Feijó, ex-chefe da Casa Civil e ex-ministro de Estado do governo de Angola, como a pessoa que podia influenciar o Ministério das Finanças angolano a emitir a declaração. Santos Martins ainda deu nota à Nady de que os 2,5 milhões de dólares afetos àquela questão seriam libertados, assim que o banco aprovasse o financiamento à Visagest.
Em comunicações posteriores, fica claro que a Visagest terá conseguido atingir estes objetivos com a intervenção de “pessoas influentes”. E, em 2011, a empresa volta a aparecer nos emails de Santos Martins, numa relação com Renato Pereira, ligado à Hotel Jupiter e que também aparece no processo Lex como suspeito de ser cliente de Rangel. Em julho de 2011, Santos Martins propôs-lhe um projeto de reabilitação de um hotel no Porto e adiantou-lhe que o negócio podia ser feito em Angola e pago em kwanzas. Em novembro, Renato Pereira concordou em ceder um patrocínio de €1 500 à tuna académica do filho de Rangel e, em dezembro desse ano, acedeu que a sua empresa disponibilizasse à Visagest €80 mil. Esse dinheiro destinar-se-ia a financiar uma viagem de Jaime Rodrigues, administrador da Visagest, aos Emirados Árabes Unidos, na companhia do general Higino Carneiro.
O Ministério Público acredita que Renato Pereira pagava os serviços de Rui Rangel e de Santos Martins “de forma dissimulada”, usando a conta bancária de Bernardo Martins. Em junho de 2012, as relações entre os três azedaram, queixando-se Renato Pereira, num email, de que entregara dinheiro a Santos Martins, porque o mesmo lhe dissera que era “para o Rui”.
Já a Visagest não saiu de cena. O Ministério Público desconfia que a empresa poderá ter pago algumas das rendas mensais do apartamento que Rui Rangel arrendou, em 2012, na Praça Duque de Saldanha, em Lisboa. Isto porque Santos Martins remeteu para um email da empresa, com o assunto “Saldanha Piso 5”, uma mensagem do proprietário do imóvel dando conta de que pretendia rescindir o contrato de arrendamento por falta de pagamento.
Rangel acabaria por deixar este imóvel em julho de 2013, data em que encontrou outro, na Avenida Infante Santo, com quatro lugares de garagem e uma renda mensal de €3500. Eliseu Bumba, um angolano que é arguido no caso Vistos Gold e a quem Rangel terá prestado serviços, terá suportado, através de uma das suas empresas angolanas (a MERAP), os pagamentos da renda desse apartamento, onde Rangel morou durante 31 meses. Essa ajuda terá permitido ao juiz poupar €108 500. Até fevereiro de 2016, o juiz foi enviando a Santos Martins faturas da água, gás, luz e MEO que ascendiam aos€ 721. Nenhuma estava emitida em seu nome.
Os contactos entre Rangel e Eliseu Bumba decorreram pelo menos entre 2010 e 2013. Em 2011, €10 mil de Eliseu Bumba, e que se destinavam a uma conta de Santos Martins, terão sido trazidos para Portugal por Renato Pereira, da Hotel Jupiter.
O juiz do Tribunal da Relação de Lisboa e os seus alegados colaboradores andariam há anos a apostar noutros mercados. É assim que aparece no processo um banqueiro moçambicano: Inaete Merali, presidente do Moza Banco. Apesar de ser arguido no Rota do Atlântico, por suspeitas de receber subornos de empresas para conseguir obras públicas no Congo Brazzaville, José Veiga não parou de apostar em negócios naquele país. Barroso fez a ponte entre o empresário e o banqueiro moçambicano, para um esquema de financiamento de hospitais públicos no Congo que deveria envolver os fundos árabes de Inaete Merali. Barroso iria relatando a Rangel o andamento destes projetos.
O juiz terá ainda sido chamado a arranjar um parecer para uma PPP, no âmbito do setor das pescas em São Tomé e Príncipe, e não se terá inibido de exigir um pagamento a quem lhe fez este pedido (Paulo Morais e Silva, presidente da Fundação Pro-Justitiae).
Estas relações da rede chegam também a países árabes e apanham a multinacional Martifer. Em 2009, Vítor Costa, gestor da Pink Bubble, escreveu um email a Santos Martins, dizendo-se desiludido com os resultados de uma viagem de negócios a um país árabe. Antes disto, Santos Martins tinha enviado outro email com a descrição da viagem, do itinerário e de quem integrava a comitiva, incluindo aqui a Pink Bubble/staff do xeique e a Martifer/Prio, representada pelos fundadores Carlos Martins e Jorge Martins. Nesse texto, Santos Martins dizia que os representantes da Prio poderiam dar uma “oferta de €40-50 mil ao ministro do Interior” do país em causa, o que leva o Ministério Público a suspeitar de corrupção de titulares de cargos políticos no comércio internacional.
No último ano, Santos Martins foi dando informações ao minuto a Rui Rangel sobre o dinheiro que ia entrando nas contas. O advogado chegou ao ponto de sossegar o nervosismo de Rangel, dizendo-lhe que “o homem que traz o dinheiro” estava a chegar. Na verdade, nestes últimos meses, o desembargador foi dando instruções quase diárias a Santos Martins para que aquele fizesse pagamentos diversos. O advogado destacou o seu enteado Nuno Proença para socorrer o juiz nos seus apertos. Um dia, Nuno levava embrulhos de dinheiro a uma das ex-companheiras de Rangel, noutro dia tinha de pagar contas, noutro tinha de ir instalar a Via Verde no carro do desembargador e noutros ainda tinha de ir buscar €1 000 a uma comerciante de Algés, para depois entregar esse dinheiro a Fátima Galante, a juíza com quem Rangel ainda é oficialmente casado.
O juiz saiu do Supremo Tribunal de Justiça indiciado por tráfico de influência, fraude fiscal e branqueamento de capitais, e impedido de contactar 31 pessoas. Todos aqueles que são suspeitos de serem seus clientes estão nessa lista. A defesa de Rangel irá alegar que muitos destes serviços não constituem crimes, apenas condutas que podem sofrer sanções disciplinares. A matéria disciplinar dos juízes prescreve passado um ano dos factos.
A mulher parceira nos acórdãos
Fátima Galante também se remeteu ao silêncio no Supremo Tribunal de Justiça. É suspeita de ajudar a dissimular os dinheiros oriundos das atividades de “traficância de influência” e outras negociatas. Emails do processo mostram que a juíza também pedia a Santos Martins para lhe pagar um carro e outras despesas. Se em algumas alturas se queixava ao advogado por aquele dar preferência a Rangel, noutras ela própria dava instruções para que Santos Martins pagasse despesas do juiz, como a renda da casa do Alto do Dafundo, onde Rangel agora mora.Galante é ainda suspeita de ajudar Rangel a fazer acórdãos. O Ministério Público detetou vários pedidos de Rangel neste sentido. Em março de 2017, o juiz queixou-se de que não conseguia fazer seis acórdãos até à segunda-feira seguinte e disse a Galante que lhe ia enviar três e que os outros ficariam para a semana seguinte. Em outubro, o desembargador voltou a queixar-se da falta de tempo: tinha 12 acórdãos para fazer até ao final da semana, pelo que ia enviar alguns à juíza da área cível. Em julho, perante mais um prévio pedido de Rangel, Galante enviou-lhe esta SMS: “Papi, já enviei relatório do 2º acórdão.”
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