Benvindo ao universo dos leitores do Izidoro. Você está convidado a tecer comentários sobre as matérias postadas, os quais serão publicados automaticamente e mantidos neste blog, mesmo que contenham opinião contrária à emitida pelo mantenedor, salvo opiniões extremamente ofensivas, que serão expurgadas, ao critério exclusivo do blogueiro. Não serão aceitas mensagens destinadas a propaganda comercial ou de serviços, sem que previamente consultado o responsável pelo blog.
As infrações de menor potencial ofensivo, assim consideradas as contravenções e delitos apenados até dois anos, são apuradas por meio do denominado "termo circunstanciado", conhecido pela sigla TC e previsto no artigo 69 da Lei 9.099/95:
"A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários.
Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança".
O TC substitui, preliminarmente, o auto de prisão em flagrante e o correlato inquérito policial [1] e constitui procedimento no qual, embora de complexidade reduzida [2], devem ser promovidas as diligências investigatórias do rol exemplificativo do artigo 6º do CPP, mediante oitiva dos envolvidos (suposto autor, vítima e testemunhas), em versões formalizadas de modo resumido e em peça subscrita pelo delegado de polícia presidente, pelas aludidas pessoas e pelo escrivão ou agente de polícia judiciária que secretariar a elaboração (CPP, artigo 6º, IV e V). A autoridade policial determina também as demais providências cabíveis, de acordo com o caso concreto, e consigna o acervo coligido que motivou sua convicção pelo enquadramento jurídico na infração de menor potencial ofensivo imputada ao suposto autor, como a apreensão de objetos ou instrumentos (drogas, armas brancas, documentos ou outros materiais) e a requisição dos exames periciais pertinentes (CPP, artigo 6º, II e VII) [3].
Após questionamentos de leis estaduais que indevidamente admitiam a formalização de TC por órgãos de policiamento preventivo, o STF, ao julgar a ADI 3.614, pacificou o entendimento de consubstanciar atribuição de polícia judiciária, sob pena de usurpação de função, posição técnica reiterada em julgados subsequentes, como na ementa abaixo reproduzida [4]:
"RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PERANTE O TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL. LEI ESTADUAL Nº 3.514/2010. POLÍCIA MILITAR. ELABORAÇÃO DE TERMO CIRCUNSTANCIADO. IMPOSSIBILIDADE. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA. ATRIBUIÇÃO DA POLÍCIA JUDICIÁRIA - POLÍCIA CIVIL. PRECEDENTE. ADI Nº 3.614. INVIABILIDADE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO".
Aludida exegese extrai-se também da inteligência, a contrario sensu, do colacionado parágrafo único, do artigo 69 da Lei 9.099/95, segundo o qual, se o suposto autor do caso de menor potencial ofensivo não se comprometer a comparecer ao JECrim, será a ele imposta prisão em flagrante e arbitramento de fiança, medidas decretadas e presididas pelo delegado de polícia (CPP, artigos 304 e 322), que obstam a expansão de tais atribuições a outros órgãos, até para evitar atuações disfuncionais.
Ocorre que, contrariando os citados precedentes da própria Corte Suprema, o ministro Edson Fachin, ao iniciar no último dia 10 o julgamento da ADI 5.637, que impugna a Lei Estadual 22.257/16 de Minas Gerais, a qual em seu artigo 191 prevê a lavratura de TC por todos os integrantes dos órgãos policiais estaduais, manifestou-se pela improcedência da ação e sustentou, em síntese, que o TC não teria função investigativa e não seria atribuição privativa de polícia judiciária [5], concluindo que "tendo a norma federal indicado ser possível que qualquer autoridade possa proceder à lavratura do termo, aos Estados cabe apenas indicá-las e foi, precisamente, o que fez o Estado de Minas Gerais".
Com a devida vênia, trata-se de entendimento baseado em premissas equivocadas. Diverso do alegado no citado voto do relator na ADI 5.637, a norma federal (Lei 9.099/95, artigo 69) é categórica em indicar à "autoridade policial" e não a "qualquer autoridade" a lavratura do termo circunstanciado.
Destarte, tanto por uma leitura sistemática quanto por uma interpretação literal do ordenamento, da mesma maneira que "autoridade judicial" designa o juiz de Direito, "autoridade policial" designa o delegado de polícia, inclusive por comando da Lei Federal 12.830/13, que, no §1º de seu artigo 2º, estipula expressamente ao delegado de polícia a qualidade de "autoridade policial", incumbido da condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou "outro procedimento previsto em lei", sendo o TC justamente o outro instrumento legal destinado à apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais de menor potencial ofensivo.
Com efeito, não há respaldo normativo para enviesar narrativa utilitarista que compactue com elastério conceitual da expressão "autoridade policial" legitimada a determinar a lavratura do TC que, na Justiça Criminal comum, sempre foi e permanece sendo o delegado de polícia [6].
De antemão, frisa-se que não se quer insuflar divergências entre instituições. Ao revés, o que se busca com as ponderações lançadas é trazer a lume o campo de atuação de cada órgão estatal, cujas funções estão estritamente delineadas na CF e na legislação infraconstitucional.
Nesse contexto, não se deve confundir o vocábulo "autoridade" com a expressão "autoridade policial", que define o delegado de polícia. Qualquer agente estatal, de natureza civil ou militar, servidor ou não, pode ser considerado "autoridade" em sentido amplo, pois exerce parcela do poder estatal e, assim, responde por eventuais excessos ou desvios, sobretudo para fins de responsabilização por abuso de autoridade, na forma da Lei 13.869/19 (artigo 2º).
Logo, todo agente público é provido de algum grau de autoridade estatal para o exercício de suas funções e efetivação do poder de polícia (Lei 5.172/66, artigo 78). Numa distinção mais detalhada, a Lei 14.133/21, em seu artigo 6º, incisos V e VI, considera agente público o "indivíduo que, em virtude de eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, exerce mandato, cargo, emprego ou função em pessoa jurídica integrante da Administração Pública", enquanto define autoridade como o "agente público dotado de poder de decisão".
Portanto, todos os policiais (civis, federais, penais, rodoviários ou militares) são "autoridades" em sentido amplo, assim como todos os guardas municipais, agentes de trânsito, juízes, defensores públicos, serventuários da Justiça, promotores, auditores, fiscais, entre tantos outros agentes estatais, porém apenas ao delegado de polícia a legislação confere a expressão "autoridade policial", notadamente no ordenamento penal e processual penal comum, com todas as responsabilidades atreladas à carreira na direção das instituições de polícia judiciária e no poder-dever de tomada de decisões na apuração de ilícitos penais.
O legislador, quando destaca atribuições entre autoridades policiais ou agentes policiais, o faz expressamente, como na hipótese do chamado flagrante obrigatório (CPP, artigo 301) e mais especificamente na possibilidade de imposição de medida protetiva de afastamento do agressor nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06, artigo 12-C, II e III).
É preciso ter em mente que a lavratura do TC precede uma avaliação técnico-jurídica motivada, voltada a verificar, primeiro, se o fato configura ilícito penal e se este é de menor potencial ofensivo, por meio da oitiva de vítimas, de testemunhas e do suspeito de ser o autor da conduta imputada, observando-se os parâmetros legais e em especial as garantias fundamentais. O suspeito deve ser apresentado na delegacia para então a autoridade responsável decidir sobre a classificação jurídica e formalização do adequado procedimento previsto em lei (termo circunstanciado, auto de prisão em flagrante, boletim de ocorrência para instauração de inquérito policial via portaria, entre outros).
Como se observa, a instrução extrajudicial simplificada dos elementos amealhados no TC não suprime a detida análise jurídica dos fatos e imanentes juízos de tipicidade, ilicitude e culpabilidade pela autoridade investigante. Aplicam-se ao TC todos os direitos e garantias inerentes ao devido processo, precipuamente aqueles afetos à atuação da defesa do autor a quem os fatos são imputados, enquanto acusado em geral (CF, artigo 5º, LV), como o direito à defesa, composto pela autodefesa (negativa e positiva) e pela defesa técnica, com possibilidade de assistência advocatícia, exame dos autos e participação via formulação de pedidos de diligências e escorreito exercício do direito à não autoincriminação.
A dimensão da avaliação jurídica para a decisão acerca da elaboração de termo circunstanciado ou de auto de prisão em flagrante pelo delegado de polícia, carreira jurídica e autoridade encarregada de classificar legal e preliminarmente os fatos, fica patente em situações em que o primeiro enquadramento jurídico reverbera diretamente no procedimento investigatório a ser formalizado e em suas respectivas consequências.
Na prática, referida distinção é, muitas vezes, tênue, em casos como na diferenciação entre uma lesão corporal dolosa ou uma tentativa de homicídio (CP, artigos 129, caput, ou 121, c.c. 14, II), entre uma ameaça, um constrangimento ilegal ou uma coação no curso do processo (CP, artigos 147 e 148 ou 344), entre uma receptação culposa ou uma dolosa (CP, artigo 180, §3º ou caput), ou ainda entre o porte para consumo pessoal ou o tráfico de drogas ilícitas, hipóteses nas quais há necessidade de fundamentação pelo delegado de polícia (Lei 11.343/06, artigos 28, caput, e §2º, 33, caput, e 52, I). É certo que a análise de ocorrências em tese tidas como de pequeno potencial ofensivo exige cuidadosa valoração jurídica pelo delegado de polícia para a adoção do procedimento legal adequado.
Mesmo para casos que seriam de menor potencial ofensivo pela pena cominada em abstrato, como nos delitos de injúria ou ameaça, se envolverem violência doméstica e familiar contra a mulher, não caberá TC, diante da inaplicabilidade da Lei 9.099/95, e o suspeito capturado poderá ter sua prisão em flagrante determinada pelo delegado de polícia (Lei 11.340/06, artigo 41).
Como asseverado, o TC constitui procedimento investigatório, raciocínio firmado pela menção taxativa do §4º do artigo 48 da Lei 11.343/06, que cuida do "procedimento penal" e trata do TC nos casos de porte de droga para consumo pessoal, ao dispor peremptoriamente que a "autoridade de polícia judiciária" requisitará exame pericial, inequívoca diligência investigatória, mormente acerca da requisição de exame químico-toxicológico das drogas apreendidas, segundo disposição expressa do CPP (artigo 6º, VII), da própria Lei 9.099/95 (artigo 69, caput), da Lei 12.830/2013 (artigo 2º, §2º), e também da Lei 11.343/06 (artigo 48, § 2º).
Referida hermenêutica foi consolidada na nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/19), que, em seu artigo 32, criminaliza a conduta de negar acesso aos autos de investigação preliminar, ao "termo circunstanciado", ao inquérito ou a "qualquer outro procedimento investigatório de infração penal", reconhecendo a natureza procedimental do instituto enquanto ato de polícia judiciária e o acesso ao lastro produzido na etapa extrajudicial como premissa para o exercício do direito de defesa [7].
Ademais, todos os desdobramentos dos fatos apurados no TC denotam atos típicos de polícia judiciária para a apuração de ilícitos penais comuns, como a gestão dos objetos apreendidos e dos laudos requisitados, oitivas e diligências complementares ("cotas"), realizadas pela polícia judiciária e não pelo policiamento preventivo.
Por fim, ainda que se pretenda considerar o TC um "boletim de ocorrência circunstanciado", o legislador também deixa claro tratar-se de atribuição de polícia judiciária, em que são promovidas diligências investigatórias do artigo 6º do CPP e outras cabíveis, como na formalização de flagrante de ato infracional sem violência ou ameaça (Lei 8.069/90, artigo 173, parágrafo único) ou de violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei 11.340/06, artigo 12, I, e §2º).
Espera-se que a Suprema Corte, por uma questão de segurança jurídica, de lógica, de coerência técnica e de respeito aos precedentes, acolha a inconstitucionalidade e julgue procedente a ADI 5.637 [6].
[1] ZOMPERO, Marcelo da Silva; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Fase policial do procedimento sumaríssimo. Jus Navigandi, Teresina, set.2010.
[3] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Prisão em flagrante delito constitucional. Salvador: JusPodivm, 2020, p.286-294.
[4] STF, RE 702.617-AM, Rel. Min. Luiz Fux, j.28/08/12. No mesmo sentido: STF, ADI 3.441, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 09/03/07; STF, ADI 2.427, Rel. Min. Eros Grau, DJ 30/08/06; STF, ADI nº 3.460, Rel. Min. Ayres Brito, DJ 31/08/06.
[5] No aludido voto do relator da ADI 5.637 foram invocados argumentos ventilados no julgamento da ADI 3.807, de 29/06/2020, que discutiu a constitucionalidade do § 3º, do artigo 48 da Lei 11.343/06, que prevê encaminhamento imediato de suspeito de portar drogas para consumo pessoal à autoridade judicial e esta lavraria TC, dispositivo sem maior repercussão prática, porquanto tais suspeitos sempre foram e continuam sendo apresentados nas delegacias e não nos fóruns, para diligências de polícia judiciária de apreensão e requisição de perícia das drogas e decisão, pelo delegado de polícia, sobre a apuração e a respectiva formalização dos fatos.
[6] RANGEL, Paulo. Direito processual penal. São Paulo: Atlas, 2014,p.180; GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2012,p.118; NICOLITT, André. Manual de processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p.526; NUCCI, Guilherme de Souza. Juizados especiais criminais. São Paulo: Saraiva, 2005, p.57; TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar. Curso de direito processual penal. Salvador: Juspodivm, 2016,p.224; SANTOS, Anne Caroline Souza Silva. A polícia judiciária e as infrações de menor potencial ofensivo: legitimidade para lavratura de termo circunstanciado. In: IBRAHIN, Francini; BELIATO, Araceli (Org.). Direito policial: temas atuais. Salvador: JusPodivm, 2021, p.59-77; SAYEG, Ronaldo. O inquérito policial democrático: uma visão moderna e contemporânea. Rio de Janeiro, Lumen Juris, p.26.
[7] BADARÓ, Gustavo; BREDA, Juliano (Coord.). Comentários à lei de abuso de autoridade. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p.161-164; LESSA, Marcelo de Lima; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; GIUDICE, Benedito Ignácio. Nova Lei de Abuso de Autoridade: diretrizes de atuação de Polícia Judiciária. São Paulo: Academia de Polícia, 2020, p.134-141;
Marcelo de Lima Lessa é delegado de polícia de São Paulo e professor da Academia de Polícia de São Paulo (Acadepol).
Rafael Francisco Marcondes de Moraes é delegado de polícia de São Paulo, mestre e doutorando em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP), docente e palestrante em cursos de graduação e pós-graduação e professor da Academia de Polícia de São Paulo (Acadepol).
Ronaldo Augusto Comar Marão Sayeg é delegado de polícia de São Paulo, mestrando em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo IDP/SP, especialista em polícia judiciária e sistema de Justiça criminal e professor da Academia de Polícia de São Paulo (Acadepol).
Revista Consultor Jurídico, 16 de dezembro de 2021, 12h04
Nenhum comentário:
Postar um comentário