(...) Nas ruas de Londres nunca se escapa da visão da pobreza abjeta; basta caminhar cinco minutos em qualquer direção para se chegar a um bairro miserável.
Mas a região que meu fiacre adentrava naquele instante era uma favela sem fim. As ruas estavam tomadas por uma raça nova e diferente de pessoas, de baixa estatura, aparência infeliz e na maior parte encharcada de cerveja.
Rodamos milhas e milhas, passando por prédios de tijolo aparente e muita sujeira, e a cada rua ou alameda transversal víamos fachadas de tijolos e miséria a perder de vista.
Aqui e ali cambaleavam um homem ou uma mulher bêbados, e o ar tornava-se obsceno com o vozerio e as altercações.
Num mercado, velhos e velhas trêmulos procuravam restos de verdura, feijão e batatas podres em meio ao lixo lançado na lama, enquanto crianças, como moscas que rodeiam um monturo de frutas apodrecidas, mergulhavam os braços até a altura dos ombros num líquido putrefato de onde retiravam nacos deteriorados, que eram devorados ali mesmo.
(...)
Até onde a vista alcançava, havia sólidas paredes de
tijolos, calçadas viscosas e ruas barulhentas; e ali, pela primeira vez na vida, fui assombrado pelo temor da multidão. Era
como o temor do mar – as turbas miseráveis, rua após rua,
assemelhavam-se às ondas de um mar imenso e fétido, que
me envolvia e ameaçava me arrebatar.
(...)
depenam sua carteira de um modo que faria corar até mesmo os
usurários que trabalham com juros compostos.
(...)
e fiquei muito
impressionado com o fato de minha vida ter sido depreciada
em proporção direta às roupas que usava. Antes, quando pedia
informações a um policial, ele geralmente perguntava: “Ônibus
ou fiacre, senhor?”. Agora perguntavam: “A pé ou de carona?”.
Do mesmo modo, nas estações de trem me empurravam um
bilhete de terceira classe sem maiores questionamentos.
(...)
Pela primeira vez
fiquei cara a cara com as classes baixas inglesas e as conheci de
perto. Quando vagabundos e trabalhadores, nas esquinas e botequins, conversavam comigo, conversavam como um homem
conversa com outro, e conversavam como homens comuns deveriam conversar, sem a menor intenção de obter alguma coisa
em função do que falassem ou do modo como falassem.
Quando finalmente cheguei ao East End, percebi satisfeito
que o temor da multidão já não me assombrava. Tornara-me
parte dela. Aquele mar imenso e fétido havia me arrebatado,
ou talvez eu tivesse mergulhado nele de mansinho, percebendo
que não havia nada a temer ali (...)
(...) um quarto parecia ser considerado suficiente para
uma família pobre cozinhar, comer e dormir.
(...)
Fiquei sabendo que não eram apenas as casas que visitei
que não tinham banheiras, mas que também não havia banheiras nos milhares de casas que eu vira. Naquelas circunstâncias,
com mulher, filhos pequenos e um par de hóspedes sofrendo
com a amplidão excessiva de um quarto, tomar banho numa
bacia de lata seria tarefa impossível. Mas a compensação viria
com a economia de sabão; daí estaria tudo bem, com a graça
de Deus.
(...) Olhei para ela. Ali estava uma mulher da mais fina estirpe da
classe trabalhadora inglesa, com numerosos indícios de refinamento, sendo lentamente engolfada pela pútrida e malcheirosa
onda de humanidade que os poderes constituídos estão empurrando para fora de Londres.
Bancos, fábricas, hotéis e prédios
de escritório precisam ser construídos, e a gente pobre é uma
raça nômade; daí migram para o leste, em ondas, saturando e
degradando região por região, obrigando a classe melhor de
trabalhadores que os precederam a se aventurar, como pioneiros,
para os limites da cidade, ou degradando-os, se não na primeira
geração, certamente na segunda ou na terceira.
(...)
Em alguns anos”, diz, “o contrato do meu aluguel termina. Meu senhorio é do nosso tipo. Não aumentou o aluguel
de nenhuma das casas, e isso permitiu que ficássemos. Mas
qualquer dia ele pode querer vender, ou pode morrer, o que pra
gente dá no mesmo.
A casa é comprada por um especulador,
que monta uma dessas lojas que escraviza empregados no
quintal lá no fundo, onde agora está minha parreira, amplia
a casa e aluga um quarto para cada família. Pronto! Johnny
Upright vai pra rua”.
(...)
Ele imediatamente identificou minha nacionalidade e respondeu com uma pergunta: “Você veio pra cá nalgum navio
transportador de gado?”.
A partir daí engatamos uma conversa que se estendeu a
uma taberna e a algumas canecas de half and half, uma mistura
de cerveja escura com cerveja clara. Isso produziu uma certa
intimidade entre nós, de modo que quando trouxe à luz um
xelim em moedas (que fiz questão de dizer que eram minhas), e
separei seis pence para o pernoite e seis pence para mais half and
half, ele generosamente propôs que bebêssemos todo o xelim.
Meu companheiro de quarto amarrou um fogo ontem
à noite”, explicou. “E os tiras levaram ele. Então você pode
dormir no meu quarto. O que acha?”
Disse que achava bom. Depois de nos encharcarmos com
mais um xelim de cerveja e passarmos a noite numa cama
miserável num cubículo igualmente miserável, eu sabia tudo
sobre ele. E ele de algum modo representava grande parte dos
trabalhadores de Londres, como a experiência me demonstrou
posteriormente.
Ele nascera em Londres, de um pai foguista e beberrão.
Quando criança, sua casa foram as ruas e as docas. Nunca
aprendeu a ler e nunca sentiu necessidade – dizia que era uma
habilidade vã e inútil para um homem na sua posição.
Tivera mãe e vários irmãos e irmãs ruidosos, que viviam
apinhados em dois quartos e dividiam uma comida pior e
menos constante do que aquela que ele geralmente arranjava
sozinho. Na verdade, nunca ia para casa, a não ser quando não conseguia a própria comida. Furtando ninharias e
mendigando nas ruas e docas, uma ou outra viagem ao mar
trabalhando como garçom, mais algumas viagens como carO HOMEM E O ABISMO
regador de carvão, tornara-se foguista habilitado, o que para
ele significava o topo.
Ao longo da vida, construíra uma filosofia de vida, uma
filosofia feia e repulsiva, mas que também tinha sua lógica e
sua razão de ser. Quando lhe perguntei qual era a sua razão
de viver, respondeu imediatamente: “Bebida”. Uma viagem ao
mar (pois um homem deve trabalhar para obter seus meios),
e aí vinha o pagamento e a grande bebedeira final. Depois
disso, pequenas bebedeiras ocasionais, mendigadas nos pubs
a companheiros como eu, que dispunham de alguns cobres
a mais, e, terminada a mendicância, outra viagem ao mar e a
repetição do ciclo brutal.
E as mulheres?”, perguntei depois de ele declarar a bebida
como fim único da sua existência.
“Mulheres!” Bateu a caneca no balcão e discursou com
eloquência. “Aprendi a não mexer com mulheres; não compensa, companheiro, não compensa. O que um homem que
nem eu vai querer das mulheres, hein? Me diga. Tive minha
mãe, e já foi o suficiente. Falava sem parar na nossa cabeça e
fazia o meu velho se sentir miserável quando vinha pra casa,
o que ele fazia raramente, tenho de admitir. E por que ele não
vinha? Por causa da minha mãe! Ela não fazia a casa dele feliz,
era por isso. E as outras mulheres, como é que elas tratariam
um pobre foguista como eu, com alguns xelins no bolso?
Uma
boa bebedeira é tudo o que ele tem no bolso, uma boa e longa
bebedeira, e as mulheres pegam o dinheiro dele tão rápido que
mal consegue tomar um copo. Sei muito bem. Tive minha
experiência e sei como é. Vou lhe dizer uma coisa: onde há
mulher há problema – berreiro, choradeira, briga, tumulto, e
depois vêm a polícia, os juízes, um mês de trabalho forçado na prisão e nada de pagamento quando você sai de lá de dentro.”
“Mas mulher e filhos”, insisti. “Uma casa sua e tudo o
mais. Imagine você voltando de viagem, as crianças subindo
na sua perna, a mulher feliz e sorridente, um beijo em você
enquanto ela põe a mesa, e um beijo dos bebês antes de irem
pra cama, o apito da chaleira e o longo relato sobre onde você
esteve e tudo o que viu, e ela contando sobre os acontecimentos
domésticos na sua ausência…”
“Bobagem!”, gritou, amistosamente batendo seu punho
no meu ombro. “Que brincadeira é essa? Uma mulher me
beijando, as crianças subindo na minha perna e a chaleira
apitando, tudo isso por quatro libras e dez xelins mensais
quando você arranja trabalho num navio, e por absolutamente
nada quando não arranja. Vou lhe dizer o que consigo com
quatro libras e dez xelins mensais: uma mulher dando bronca,
crianças berrando, nada de carvão para fazer a chaleira apitar
e a chaleira no prego, é isso que conseguiria. Suficiente para
ficar feliz em voltar pro mar. Uma mulher! Pra quê? Pra fazê-lo
miserável? Filhos? Ouça meu conselho, companheiro, melhor
não tê-los. Olhe pra mim! Posso tomar minha cerveja quando
quero, sem uma bendita mulher e crianças chorando por pão.
Estou feliz, estou mesmo, com minha cerveja e companheiros
como você, um bom navio chegando e a promessa de outra
viagem pro mar. É o que digo, vamos pedir outro copo. Um
half and half pra mim.
(...)
A palavra “casa” despertava nele
apenas associações desagradáveis. Nos baixos proventos do pai e de outros homens da mesma condição social, encontrou
razões suficientes para estigmatizar mulher e filhos como estorvos e causas da miséria masculina. Hedonista inconsciente,
completamente amoral e materialista, buscava o máximo de
felicidade para si, e a encontrou na bebida.
Um jovem beberrão. Uma ruína prematura. Fisicamente
incapaz de trabalhar como foguista. Era a sarjeta ou o asilo. E
o fim. Enxergava isso tão claramente quanto eu, e não ficava
aterrorizado. Desde que nasceu, todas as forças do seu meio
concorreram para endurecê-lo, e via seu inevitável e desgraçado futuro com uma frieza e uma indiferença que eu era
incapaz de abalar.
Mas ele não era mau. Não era intrinsecamente corrompido ou brutal (...).
Era um sacrilégio desperdiçar uma vida assim, mas devo
confessar que ele tinha razão em não querer se casar ganhando
um salário de quatro libras e dez xelins em Londres. O mesmo
ocorria com o contrarregra, que era mais feliz com o que ganhava num quarto dividido com outros homens do que teria
sido se tivesse que se enfiar com uma família enfermiça num
quarto mais barato, sem conseguir viver com o que ganhava.
Dia após dia, fui sendo convencido de que não só era insensato, mas criminoso que o povo do Abismo se casasse. Eles
são as pedras que o construtor rejeitou. Não há lugar para eles
no edifício social, e todas as forças da sociedade os puxam para
baixo, até que pereçam. No fundo do Abismo estão os fracos,
os estúpidos e os imbecis. Quando se reproduzem, a vida que
nasce deles é tão precária que forçosamente perece. Estão sujeitos às engrenagens do mundo, do qual não desejam e nem
estão aptos a participar. Além do mais, o mundo não precisa
deles. Há muitos homens muito mais aptos, que escalam a
ladeira íngreme e lutam furiosamente para não escorregar.
Em resumo, o Abismo londrino é um imenso matadouro.
Ano após ano, década após década, o interior da Inglaterra
despeja ali uma enxurrada de pessoas vigorosas, que não só
não se reproduzem, mas perecem na terceira geração. As autoridades competentes afirmam que o trabalhador londrino
cujos pais e avós nasceram em Londres é uma espécie rara,
muito difícil de encontrar. (...)
O senhor A. C. Pigou escreveu que os idosos pobres e
os membros do que se convencionou chamar de “as classes
mais necessitadas e carentes” constituem 7,5% da população
de Londres. Isso quer dizer que no ano passado, e ontem, e
hoje, e neste exato momento, 450 mil criaturas morrem miseravelmente no fundo desse inferno social chamado “Londres”.
Sobre como eles morrem, há um caso ilustrativo no jornal
desta manhã.
(...)
AUTONEGLIGÊNCIA
Ontem o dr. Wynn Westcott conduziu um inquérito em Shoreditch sobre a morte de Elizabeth Crews, de 77 anos, moradora
da East Street, 32, bairro de Holborn, que morreu na quarta-
-feira última. Alice Mathieson declarou-se senhoria da casa
onde a falecida vivia. A testemunha a viu pela última vez, com
vida, na segunda-feira anterior. Ela vivia bastante só.
O senhor
Francis Birch, policial substituto no distrito de Holborn, declarou que a falecida ocupou o mencionado quarto por 35 anos.
Quando a testemunha foi chamada, encontrou a velha senhora
em estado terrível, e a ambulância e o cocheiro tiveram de ser
desinfetados depois da remoção.
O doutor Chase Fennell disse
que a morte se deveu a uma infecção sanguínea causada por
escaras, ocasionadas por autonegligência e pelo ambiente sujo,
e o júri deu um veredicto disso.
O mais alarmante sobre esse pequeno incidente envolvendo a morte de uma mulher é a complacência com que as
autoridades examinaram e emitiram o julgamento. Que uma
velha senhora de 77 anos de idade tenha morrido de AUTONEGLIGÊNCIA é a maneira mais otimista possível de encarar o
fato. A culpa por ter morrido foi da velha morta e, uma vez
identificada a responsabilidade, a sociedade segue satisfeita,
para resolver outras questões.
Sobre “as classes mais necessitadas e carentes” o senhor
Pigou disse:
Seja por falta de força física, inteligência, fibra, ou de uma conjunção dessas três coisas, elas são formadas por trabalhadores
ineficientes, indolentes e consequentemente incapazes de se
sustentar…
Em geral são tão prejudicados intelectualmente que
se mostram incapazes de distinguir a mão direita da esquerda
ou de reconhecer os números de suas próprias casas; os corpos
são fracos e sem energia, os afetos são pervertidos e raramente
sabem o que significa a vida em família.
Quatrocentas e cinquenta mil pessoas é uma quantidade
considerável.
O jovem foguista era apenas um, e demorou algum tempo para dizer o pouco que disse. Juro que não gostaria
de ouvir todos eles falando ao mesmo tempo. Mas será que
Deus lhes dá ouvidos?
-=-=-=-=
Gostou do estilo direto, natural, sem retoques, desse estupendo autor socialista?
Procure a obra e leia o restante, como estou fazendo, pela segunda vez.
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