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quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

A água e a imortalidade

 

Se levarmos em consideração que a maior parte dos nossos corpos é composta de água, podemos pensar que esse precioso líquido é o que mais nos aproxima da reencarnação.

15 de dezembro de 2006 · 15 anos atrás


  • Marc Dourojeanni
    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...


Nestes dias a chuva está incontinente. Chove todo dia, de manhã, à tarde e à noite, sem trégua e sem piedade dos humanos que se afogam nos rios ou se asfixiam sob a lama. É triste que após longos meses de espera ansiosa pela água salvadora esta, quando chega, o faz com tanta violência que, quase, se perde o desejo de desfrutar de seus benefícios e até há quem a maldiga. Quando chove tanto como agora, a gente não dispõe de muitas alternativas de trabalho ou recreação ao ar livre. A gente fica confinada no seu lar ou no seu escritório e os dias cinzentos não convidam ao bom humor nem à alegria. Mas, convidam a pensar até na imortalidade do mosquito.

Assim, pensando na água e na imortalidade me ocorreu que o ciclo da água seja o fato que mais aproxima o homem à reencarnação. Com efeito, a maior parte dos nossos corpos é água, tanto como 80% quando nascemos e ainda tanto como 58% quando morremos. A probabilidade de que moléculas de água que já pertenceram a outros seres vivos, dentre eles humanos, conformem nossas células, tecidos e órgãos, é relativamente elevada. Podemos imaginar que quando os nossos cadáveres secam, as moléculas que fogem para a atmosfera ou para o solo, subsolo e lençol freático, conseguem se manter mais ou menos agrupadas e depois de limpas de impurezas são assimiladas por outro ser vivo, uma mulher grávida por exemplo, que as transfere ao novo ser em suas entranhas, que as acumula em seu corpo, inclusive no seu cérebro e coração. Aquele novo ser poderia ter muito da gente do mesmo modo que nós devemos ter muito de outros que nem conhecemos. Claro é que a ciência não confirma isso. A ciência nem se preocupou em saber se as moléculas, átomos e partículas subatômicas do oxigênio e hidrogênio têm alguma forma de memória, como o DNA o que, admitidamente, é altamente improvável. De outra parte, grande parte da água no nosso corpo entra e sai, não sendo residente estável. Mas, neste universo, tudo é possível e muitas vezes, a imaginação supera a realidade. No final -ou no começo- a Bíblia diz que de pó somos e de pó seremos. Que o diga o General Pinochet agora transformado num pouco de pó num recipiente e toda sua água vital planando ameaçadoramente sobre Santiago.

Quando a chuva cai em cima podemos nos divertir imaginando quantas dessas gotas de água possuem moléculas que já pertenceram a personagens famosos e desejáveis como Cleópatra ou Marilyn Monroe ou que, pelo contrário, foram parte de Nero, Gengis Khan ou, pior, de Stalin ou Hitler. Também devemos pensar que algumas delas foram há muito ou pouco tempo, elementos constitutivos dos excrementos, da urina e do suor de humanos e animais assim como, evidentemente, das plantas mais diversas. No final essa probabilidade apenas revela que a água, como os nutrientes que formam o pó de que está feito nosso barro corporal, são comuns a absolutamente todos os seres vivos e esses elementos básicos da vida circulam de um para os outros, sem respeito, nem consideração por hierarquia ou fortuna. Na verdade, saber que estamos feitos por elementos reciclados de outros seres, sejam eles humanos ou não, nos obriga a sermos humildes. De fato, isso pareceria demonstrar que, ao final, os seres vivos do planeta são um único e gigantesco organismo. A teoria Gaia? Mas, de qualquer modo, isso também não deixa de abrir uma porta aos desejos tão humanos de ser imortal…. pelo menos até antes que acabemos com a vida no planeta.

O tema das vítimas da água por excesso vem duplamente à tona nestes dias em que coincidentemente, a SOS Mata Atlântica e o INPE divulgam cifras catastróficas de desmatamentos novos na Floresta Atlântica. Neste caso, o caráter catastrófico não se refere às cifras de eliminação de “milhões de hectares”, como acontece todo ano na Amazônia, mas, à sua importância relativa por serem fatos ocorrendo num bioma já quase extinto, com menos de 7% da sua superfície original, sem mencionar que as florestas remanescentes estão extremamente degradadas. Com efeito, no último qüinqüênio o país perdeu 95.000 ha a mais da sua Floresta ou Mata Atlantica, concentradamente nos estados de Paraná e Santa Catarina onde foram extirpados quase 74.000 ha principalmente dominados pelo pinho paranaense, ou seja, a formação vegetal mais ameaçada do bioma. Esse fato demonstra uma vez mais que nada detém os que pretendem fazer dinheiro por cima de qualquer outra consideração, razão ou lei. Mas, neste caso, o que se deseja salientar é a óbvia relação entre os problemas de inundações, deslizamentos e outras catástrofes letais que assolam os pobres que se instalam na beira de rios ou nas fraldas das montanhas e o maltrato contínuo às florestas da Mata Atlântica. Os que violam a lei com fins de “fazer mais dinheiro” deveriam ser tratados como homicidas culposos. Diga-se de passagem, que não se compreende como nem porque, frente às evidências que o material do INPE revela de modo indiscutível, os culpados não são indiciados e processados e nem, pelo menos, severamente multados.

O ciclo anual da imbecilidade é tão inexorável como o da água. De uma parte, leis e outras medidas legais que se discutem ardorosamente, quase raivosamente, como as que se referem ao manejo das bacias hidrográficas, áreas de preservação permanente, reservas legais, controle da contaminação, saneamento e unidades de conservação, dentre outras ligadas direta ou indiretamente à água, são praticamente esquecidas, ou seja, não aplicadas, desde o dia seguinte de sua aprovação. Os pobres rurais, peri-urbanos e urbanos se instalam onde querem e como querem sem que nenhuma autoridade se oponha, nem lhes informe do risco que os espera e a outros, rio ou ladeira abaixo e, até o fazem com o apoio de políticos que dizem ter “sensibilidade social” que tampouco lhes oferecem nenhuma alternativa. Os ricos desmatam o que desejam sem nenhuma consequência que lhes preocupe realmente, pois as multas, se por muito azar forem aplicadas, são ridiculamente baixas.

A cada ano, se gastam milhões para resgate e ajuda de danificados e outros tantos para reconstruir as infra-estruturas danificadas. A cada ano, com o coração pesado frente ao balanço das perdas em vidas e materiais, se fala intensamente desses problemas e se promete à sociedade que essas tragédias não se repetirão, que as bacias serão manejadas, os desmatamentos controlados e os invasores dos locais de maior perigo reassentados. Mas, igual que com a aprovação das leis, essas promessas são relegadas ao esquecimento, apenas quando o sol volta a brilhar e, em contrapartida, as autoridades e a sociedade passam a se preocupar da falta de água nos rios e da raridade da precipitação pluvial. Outra vez aparecem os danificados, em especial os pobres rurais, sem água para beber nem para produzir alimentos no nordeste e até no sul do país. Os salvadores da pátria então inventam, com grande pompa, a transposição das águas do rio São Francisco. Esquecem que esse mesmo rio está morrendo porque a sua bacia alta, encravada em relictos florestais moribundos, não recebe nem a milésima parte da atenção nacional merecida, que representaria a centésima parte do que se gastará em concreto para derivar suas águas na parte baixa. É melhor, nem falar da energia elétrica gerada pela água, que agora se procurará nos confins da Amazônia a custos financeiros, sociais e ambientais extravagantes quando as hidroelétricas do resto do país morrem rapidamente por não se cuidar das bacias hidrográficas respectivas.

Nada novo é dito aqui. Tudo isso está comprovado, anunciado, reiterado. O economista Jeffrey Sachs também falou disso há poucos dias, em aplaudida palestra em São Paulo, onde repetiu com outras palavras o que Al Gore também tinha dito, lá mesmo, com igualmente grande sucesso, semanas antes. Ele lembrava, uma vez mais, que para quebrar o circuito vicioso da pobreza deve se basear, o esforço do desenvolvimento, na educação, como o propunha Cristovam Buarque, e na proteção do entorno natural. Reiterava que está demonstrado que a economia e o manejo do ambiente são partes da mesma equação, suportes indissolúveis do desenvolvimento durável. Mas, isso, como Cristovam Buarque sentiu na pele, não pega nem paga politicamente. O ciclo da imbecilidade é tão inexorável como o da água. Ou, para fechar por onde comecei, a imbecilidade humana é imortal.

Fonte: https://oeco.org.br/colunas/16406-oeco-20051/


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