03.02.2018 às 19h00
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Quando a cabeça é a pior inimiga de alguém, uma simples dor de barriga pode transformar-se, de repente, num cancro no estômago em fase terminal. Conheça melhor a hipocondria, a doença sobre a qual ainda se tem medo de falar
"No
meu grupo de amigos sou chamado de 'doentinho' por estar muitas vezes
com essa mania", diz Guilherme Duarte. Essa mania, a das doenças,
entenda-se. É o autor do blogue Por Falar Noutra Coisa, mas fala desta
em particular sem preconceitos nem tabus. É hipocondríaco, embora não
diagnosticado, e já fez (continua a fazer) todos os exames médicos que
são possíveis. "Da última vez que fiz análises ligaram-me do hospital,
eu não vi a chamada e fiquei logo a pensar que era para me chamarem à
parte e me dizerem quanto tempo tinha de vida", conta.
A
hipocondria, ou "perturbação de ansiedade relacionada com a doença",
como a comunidade médica lhe chama, é uma preocupação irracional em
estar ou vir a estar com uma doença grave. Neste caso, as pessoas não
fingem qualquer sintoma nem mentem, porque a crença que têm um problema
de saúde crítico é real.
"Os hipocondríacos ficam alarmados
quando ouvem que alguém ficou doente ou lêem alguma notícia relacionada
com a saúde e estas preocupações não abrandam perante os resultados
negativos de exames, nem com a tranquilização de um médico", refere
Diogo Telles Correia, médico psiquiatra, psicoterapeuta e professor na
Faculdade de Medicina de Lisboa.
Um médico ou dois. Ou três.
Estes pacientes, geralmente, vão a vários, para confirmar que não têm
mesmo nenhum problema de saúde ou na ânsia de encontrar um que lhes faça
o diagnóstico que tanto procuram: uma doença terminal ou um cancro, por
exemplo. O normal é que, antes de contactarem um psiquiatra, passem por
profissionais de todas as especialidades. E o pior é que nem sempre
chegam a consultar um psicoterapeuta.
"É fundamental não repetir
os exames desnecessariamente e convencer o paciente a não recorrer a
muitos médicos, apenas a um ou dois em quem confie plenamente", diz o
psiquiatra. Mas também há os hipocondríacos evitantes, aqueles que, ao
contrário da maioria, evitam a todo o custo hospitais e médicos com medo
que os resultados dos exames indiquem alguma doença grave.
A bola de neve
Sintomas
normais como o batimento do coração, por exemplo, podem fazer com que a
pessoa hipocondríaca detete um sinal de doença. "Por outro lado, a
ansiedade associada à hipocondria pode induzir ela própria certos
sintomas corporais, como as dores de cabeça, a tensão muscular, diarreia
ou prisão de ventre e tonturas, por exemplo", menciona Diogo Telles
Correia. É uma bola de neve que cresce rápido: os sintomas de ansiedade
são amplificados pelos doentes porque eles também os interpretam como
sinais de doença grave e tornam-se muito mais dolorosos.
"Quando
faço stand up comedy, por exemplo, acabo por ficar mais nervoso antes
porque tenho arritmias. Depois, fico com receio de falecer ali em palco e
ninguém me acudir a pensar que faz parte da atuação", brinca Guilherme
Duarte.
Os hipocondríacos auto-examinam-se frequentemente, estão
constantemente a apalpar-se para ver se encontram um nódulo ou um sinal
estranho no corpo ou a verem ao espelho se está tudo bem com a garganta.
Muitas vezes também se auto-medicam:
Segundo Célia Lopes,
psicóloga e psicoterapeuta em Lisboa, a hipocondria começa a
manifestar-se, geralmente, no início da idade adulta. "Pode aparecer em
momentos críticos da vida da pessoa ou depois de acontecimentos com
grande significado, como por exemplo lutos, perdas ou separações de
alguém próximo", refere.
Os especialistas conseguem perceber a
diferença entre uma pessoa preocupada normalmente com a saúde e alguém
que não controla o medo. "Quando os exames se mostram normais, o doente
deve ser descansado e ser tratada a sua doença de base que não é médica
mas sim psiquiátrica". diz Diogo Telles Correia.
De acordo com
Célia Lopes, também se pode recorrer ao Manual de Diagnóstico e
Estatística das Perturbações Mentais, onde se encontram os vários
critérios para o diagnóstico, uma vez que a doença entra na
classificação de Perturbações Somatoformes.
"É fácil pensar na hipocondria como uma mania que não deve ser valorizada"
A
hipocondria é considerada uma doença psiquiátrica porque se associa a
um grande sofrimento psíquico. Talvez seja por isso que é um tema sobre o
qual é difícil falar. "Nós que sofremos disso, sabemos, lá no fundo,
que é uma mania irracional e talvez por isso haja mais vergonha em falar
disso, porque sendo irracional é complicado discuti-la e mostrar o
nosso lado a quem não tem esse problema", conta Guilherme.
Normalmente,
esta doença relaciona-se com traços da personalidade das pessoas, o que
significa que pode acompanhá-las ao longo de toda a vida. Mas o
sofrimento que se associa a esta perturbação pode ser minorado. "O
tratamento passa, na maioria dos casos, por psicoterapia do tipo
cognitivo-comportamental, onde são identificados e postos em causa os
pensamentos disfuncionais, numa tentativa de os substituir gradualmente
por pensamentos mais saudáveis", menciona Diogo Telles Correia.
Também
é necessário recorrer, por vezes, a medicação psiquiátrica por um
período de tempo que, segundo o psiquiatra, é muito bem tolerada pelos
pacientes e não tem efeitos secundários relevantes. O mais importante é
não se ter vergonha de falar sobre o assunto.
"O preconceito está
nas outras pessoas mas também nos próprios pacientes, que preferem
rodar todos os especialistas à procura de doenças físicas do que aceitar
que o problema é mental e ir ao psiquiatra" diz o psicoterapeuta .
Para
Guilherme Duarte, a hipocondria já não é uma luta constante para ele,
nem condiciona muito a sua vida. "É fácil pensar na hipocondria como uma
mania que não deve ser valorizada. Com o tempo aprendi
a relativizar e pensar que da vezes todas que pensei que era uma doença
grave e que ia morrer, acabei por sobreviver e que por isso, pela lei
das probabilidades desta vez é capaz de ser só mesmo uma cólica e não
uma apendicite aguda que me vai matar", diz.
Os hipocondríacos no mundo
Segundo
Diogo Telles Correia, a prevalência da hipocondria situa-se, em estudos
internacionais, entre os 4 e os 15%, quando se fala em doentes que
recorrem a cuidados médicos em geral. Os homens são afectados na mesma
porporção das mulheres e a doença atinge qualquer nível sociocultural,
da mesma forma. Já em Portugal, embora os números devam ser semelhantes,
não se conhecem as prevalências da doença.
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