23 de maio de 2018, 6h09
Por Lúcio Delfino
Há algo cujo odor vem incomodando narizes mais sensíveis à detecção de arbitrariedades do poder. Parcela da doutrina, pouco deslumbrada com progressismos de ocasião, já advertia para o risco de excessos, e hoje em dia editoriais e artigos publicados em conhecidos periódicos alertam que não se constrói uma democracia lacerando direitos fundamentais (entre os quais aqueles inerentes ao devido processo legal) (por todos: Lenio Luiz Streck, em obras e ensaios jurídicos). Não importa o órgão ou agente estatal, tampouco os argumentos e as intenções que empregam, não é tolerável a implosão daquilo que configura o alicerce sobre o qual se devem(riam) projetar o Estado Democrático de Direito e a sociedade.
O que está em jogo, sendo erodida paulatinamente, é a estabilidade constitucional. E o exemplo, por mais bizarro que seja, surge de cima, pois seu principal algoz é a instituição desenhada sobretudo para protegê-la: o Supremo Tribunal Federal. É evidente que, em tempos nos quais a legalidade tem seus limites semânticos evaporando ao sabor dos ideários daqueles que detêm o poder decisório, o argumento não tem lá muita valia, mas é preciso insistir na obviedade de que quem estabeleceu a razão de existir do STF foi ninguém menos que o constituinte originário. O comando está gravado, com clareza invejável, para conferência e apreensão de qualquer um: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente a guarda da Constituição...” (CRFB/88, artigo 102, caput). Decerto que o advérbio grifado não foi ali plantado, no coração da frase imperativa, por obra do acaso ou para fins estéticos, senão para assinalar o papel contramajoritário que deve(ria) distinguir a atuação desse órgão judicial.
Infelizmente, tem-se visto o STF curvar-se não ao texto constitucional, e sim ao “sentimento do povo”, seja lá o que isso possa significar. As bolas da vez: a garantia de não ser preso antes do trânsito em julgado (HC 152.752, relator ministro Edson Fachin) e o foro por prerrogativa de função (AP 937, relator ministro Roberto Barroso). A Carta Constitucional brasileira é daquelas rígidas, porquanto a sua alteração exige processo legislativo especial, mais dificultoso (votação em dois turnos, nas duas Casas do Congresso Nacional), e um quórum qualificado para a aprovação (ao menos três quintos dos integrantes de ambas as Casas Legislativas) (CRFB/88, artigo 60, parágrafo 2º), lembrando existirem nela prescrições invioláveis, haja vista a importância que as distingue, de modo que a sua abolição (ou relativização) é inadmitida mesmo por emenda constitucional. Pois ao que parece, a cada novo julgamento, o Supremo coloca em xeque essa concepção, afastando a rigidez característica da Constituição para dotá-la de uma tamanha flexibilidade que as mudanças das quais é alvo, atingindo até aquilo que não tolera fraturas, sequer dependem da atuação parlamentar, porque bastante é a força da autoridade de julgadores supostamente iluminados.
É a “voz das ruas” sobrepujando inclusive garantias seculares, muitas delas conquistadas a duras penas, com sangue, suor e lágrimas, revestidas por uma carapaça normativa que em tese deveria ser suficiente para impedir o seu extermínio pelos exercentes do poder estatal (CFRB/88, artigo 60, parágrafo 4º). Nunca é demais lembrar, aliás, que no nazismo, nas legislações que produzia, já se fazia usual referência ao “sentimento do povo” como maneira de sustentar uma estrutura jurídica absurda, totalitária e racista, cujas consequências nefastas mancharam para todo o sempre a história da humanidade. É expressão amorfa, que por isso pode exprimir pretensões múltiplas e até dissonantes, cujo manuseio serve para a apologia de toda e qualquer bandeira, boa ou ruim, mas que não deveria integrar o vocabulário de juízes, pois o compromisso deles é com a lei e com a Constituição, e, por implicação lógica, com julgamentos referendados pela racionalidade e transparência.
Em reforço, não se olvide, pois fator agravante do problema, que o atentado à estabilidade constitucional, com profundos impactos na sociedade, é com frequência fruto de uma prática isolada por parte dos ministros. O Plenário do STF não participa de muitas das decisões ali produzidas, e, quando resolve fazê-lo, eventual modificação fica inviabilizada porque o status quo experimentou contundente perturbação. Ou, ainda, às vezes nem mesmo uma decisão é proferida, sendo suficiente a adoção de determinadas manobras capazes de afetar o comportamento dos atores políticos envolvidos.
Os recursos dos quais se valem para balizar uma atuação em esquiva à colegialidade são variados, de índole formal ou não, indo desde o manejo de decisões liminares monocráticas (que permanecem por meses ou anos sem apreciação do Plenário) até o exercício de poderes para pedidos de vista e definição de agendas para julgamentos (timing control).
As sinalizações públicas sobre decisões futuras em jornais, manifestações em congressos e entrevistas, não raramente entrecortadas de críticas abertas a seus colegas, representam outro mecanismo muito comum, embora legalmente proibido (sobre a temática, consultar o excelente trabalho: ARGUELHES, Diego Werneck; RIBEIRO, Leandro Molhano. Ministrocracia – O Supremo Tribunal individual e o processo democrático brasileiro. Revista Novos Estudos. Cebrap, São Paulo, ano 1, n. 37, p. 13-32, jan./abr., 2018)[1].
Se a justificação do poder judicial praticado pelo STF encontra problemas seriíssimos em circunstâncias de afronta à Constituição (supremocracia), mormente quando barreiras contramajoritárias são ultrajadas por argumentos não jurídicos, ainda mais preocupante, e injustificável sob a perspectiva da legitimidade democrática, é verificar tais ocorrências sendo perpetradas pelo agir individualizado de seus integrantes (ministrocracia).
Já há análises sociológicas defendendo que alguns ministros da corte suprema trabalham em respeito a uma agenda política. E para implementá-la é estratégico atribuir a empreitada ao “sentimento popular de justiça”, espécie de aval para que magistrados “interpretem” a ordem jurídica a partir de uma miragem vanguardista. Vale tudo, até decidir contra legem, se esse for o melhor caminho para se fazer “justiça social” ou atender certos reclamos, pouco importando a ausência de inconstitucionalidades. No fundo, nada além de uma armadilha retórica que esfola no osso o Direito em sua autonomia, fazendo dele mera racionalidade instrumental à mercê de um realismo jurídico à brasileira subserviente a toda sorte de voluntarismos.
Propositadamente ou não, sobra o sentimento de que foram esquecidos os motivos que levaram ao surgimento do constitucionalismo moderno, em especial acerca da importância de uma Constituição e da própria função de uma corte constitucional. Basta dizer que se o constitucionalismo do segundo pós-guerra transferiu aos juízes um papel relevante, liberando-os dos grilhões do exegetismo e da jurisprudência dos conceitos aos quais estavam submetidos no século XIX, assim foi com o intuito de fortalecer a autonomia conquistada pelo Direito, jamais para favorecer ativismos judiciais. Muito pelo contrário, pois a substituição da discricionariedade de legisladores e/ou doutrinadores pelo voluntarismo de juízes só faz fragilizar a ordem jurídica, acarretando inseguranças, além de representar um oximoro para a própria teoria constitucional, que há séculos concentra esforços em elaborar mecanismos institucionais para o controle do poder (LIMA, Danilo Pereira. Constituição e Poder. Limites da Política no Estado de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018).
A pergunta que não quer calar: para que queremos um Supremo Tribunal Federal (ou 11 Supremos”, que legislam sem mandato popular) que insiste em menosprezar a Constituição e desatender o anseio de viver sob o governo das leis?
*Este texto corresponde ao editorial da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro) n. 102, ainda no prelo.
[1] Confira-se a (preocupante) conclusão a que chegaram Diego Werneck e Leandro Molhano: “Diante de seus ministros, portanto, o Supremo não parece tão supremo assim. Mostramos que o STF aloca de maneira individual e descentralizada uma série de poderes individuais de agenda, de sinalização e mesmo de decisão formal. A experiência brasileira recente, envolvendo alguns dos mais importantes conflitos políticos que já chegaram ao STF desde a redemocratização, sugere que o uso de poderes depende muito mais da virtude individual do que de mecanismos institucionais de controle. E, enquanto o plenário não se pronuncia sobre essas ações individuais mais ou menos virtuosas, ministros solitários mudam o status quo e moldam a política nacional. Esse cenário está em conflito direto com algumas das categorias que tipicamente usamos para pensar o papel do STF na democracia brasileira”.
Em outro trecho do estudo, os pesquisadores exemplificam o fenômeno a partir da (controversa) liminar proferida pelo ministro Gilmar Mendes, que suspendeu a nomeação do ex-presidente Lula como ministro de Dilma Roussef: “Nas três semanas (18 de março a 7 de abril) que se passaram até que ele liberasse a questão para julgamento, Dilma já havia sido suspensa provisoriamente do cargo, ficando prejudicada a questão. Por uma liminar monocrática, portanto, um ministro anulou a nomeação de um ministro de Estado, em um momento crítico para o destino do governo Dilma. O plenário não se pronunciará sobre questão tão decisiva para os rumos do país e para o direito constitucional brasileiro — tudo que temos é a decisão liminar de Gilmar Mendes. Ministro decide individualmente, e ministro decide individualmente se e quando poderá haver decisão colegiada sobre sua decisão individual: esse 'loop' entre poder de agenda e poder de decisão individual tem sido decisivo para entender a atuação do STF na política brasileira, muito além das situações 'excepcionais' previstas na legislação” (ARGUELHES, Diego Werneck; RIBEIRO, Leandro Molhano. Ministrocracia – O Supremo Tribunal individual e o processo democrático brasileiro. Revista Novos Estudos. Cebrap, São Paulo, ano 1, n. 37, p. 13-32, jan./abr., 2018).
Lúcio Delfino é advogado, pós-doutor em Direito (Unisinos) e doutor em Direito (PUC-SP). Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e diretor da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro).
Revista Consultor Jurídico, 23 de maio de 2018, 6h09
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