Deputados ruralistas fazem pressão para a criação de leis que dificultam ainda mais o reconhecimento de áreas indígenas
TALITA BEDINELLI São Paulo 14 JUN 2014 - 20:03 BRT
Agentes em confronto com os índios em Brasília, em maio. / J. ALVES (REUTERS)
As imagens de índios disparando flechas contra policiais durante um protesto em Brasília, centro do poder do país, causou espanto há duas semanas. Os indígenas pretendiam discutir com o Governo os motivos da demora na demarcação de suas terras e, frustrados, abandonaram uma reunião com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, pintaram a bandeira brasileira de vermelho e declararam: “Estamos em guerra”. “Por culpa dele [ministro da Justiça], muitos fazendeiros vão morrer”, afirmou um dos índios, segundo uma reportagem da Folha de S.Paulo.
A revolta surgiu, segundo eles, após a recusa de Cardozo em assinar 11 portarias de áreas que precisam seguir para a homologação da presidenta Dilma Rousseff (PT) para se tornarem oficialmente indígenas. A justificativa, segundo os índios, seria a tentativa de evitar o acirramento de um confronto entre eles e os fazendeiros, que já deixou muitas vítimas no interior do país. “Diante de um Governo que tem medo de cumprir a lei, a gente decidiu que vai demarcar por conta própria as nossas terras”, conta Lindomar Terena, uma das 18 lideranças indígenas presentes na reunião.
Índios e fazendeiros estão envolvidos em um confronto que já se arrasta há décadas. Uma briga bastante delicada porque os dois lados têm razão em suas reivindicações. Parte dos 817.963 índios brasileiros (0,21% da população do país) de diversas etnias reivindicam a demarcação das terras às quais têm direito, de acordo com estudos antropológicos feitos nessas áreas a pedido do Governo federal que comprovaram que as terras pertenceram aos ancestrais deles.
Na outra ponta estão produtores rurais, desde os pequenos até os latifundiários, que produzem em terras de onde os índios, século após século, foram sendo expulsos pelos governos locais. Alguns proprietários exibem o título de propriedade. Outros foram colocados nessas áreas pela reforma agrária do próprio Governo federal. “Muitos são imigrantes italianos, alemães, que no passado foram chamados pelo Governo brasileiro para vir ao país. Compraram 25 hectares de terra, onde já viveram cinco gerações. Agora vivem uma insegurança jurídica porque um laudo antropológico diz que elas não têm mais o direito às terras”, afirma o deputado Luis Carlos Heinze (PP), coordenador da Frente Parlamentar da Agropecuária.
A Constituição brasileira diz que os índios têm direito às suas terras tradicionais, mas não prevê que os proprietários sejam indenizados pela terra, apenas pelo que construíram nela, diminuindo o valor a ser pago pela desapropriação. Com isso, os proprietários não concordam em sair e recorrem à Justiça para se manter na área. Os índios, cansados de esperar pela resolução do impasse, vivendo em terras improvisadas e em situação de extrema pobreza, passaram a ocupar as áreas. Os fazendeiros, por sua vez, pressionam para que eles saiam. Os índios denunciam casos de espancamentos nas aldeias, estupros de índias e incêndios que começam de madrugada no meio da noite nas barracas dentro de áreas retomadas. Muitos caciques acabam assassinados. Desde 2003, 563 índios foram mortos no país.
Do outro lado também existem vítimas. Muitos pequenos produtores pobres, que dependem da agricultura para a própria subsistência, acabam sendo expulsos de suas terras. Na cidade agrícola de Faxinalzinho, no Rio Grande do Sul, cinco índios kaingang foram presos neste ano sob suspeita de terem matado a pauladas dois colonos que tentavam passar por uma estrada bloqueada pelos indígenas. Na Serra do Padeiro, na Bahia, outro Estado em litígio, um cacique tupinambá chegou a ser preso sob suspeita de matar um agricultor. Em novembro do ano passado, três índios haviam sido mortos em uma emboscada na região.
Mortes e suicídios nas terras indígenas
Um levantamento do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), uma organização que luta pelos direitos indígenas, mostra que entre 2003 e 2012, 563 índios foram mortos no país, a maior parte deles (317) no Mato Grosso do Sul (MS), um dos focos principais dos conflitos. Só em 2012, foram 60 mortes, 37 no MS.
Diante da situação de insegurança e de extrema pobreza, não são poucos os casos de alcoolismo dentro das aldeias e há até um número grande de índios que se matam. Um relatório que será divulgado pelo CIMI neste mês mostra que, no ano passado, o número de suicídios de indígenas no Mato Grosso do Sul foi o maior em 28 anos: 72 guarani-kaiowás, a maioria entre 15 e 30 anos, tiraram a própria vida.
A situação se agrava pela morosidade do Governo. A gestão de Dilma Rousseff foi a que menos demarcou terras desde a volta da democracia no país, aponta o Conselho Missionário Indigenista (CIMI). Nos oito anos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, foram 145 áreas demarcadas; e nos oito anos deLuiz Inácio Lula da Silva, 79. Nos dois primeiros anos de Rousseff, foram dez. Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), 65 áreas já reconhecidas como indígenas aguardam a homologação da presidenta.
Enquanto isso, os deputados ruralistas tentam emplacar legislações ainda mais restritas para a demarcação. Uma delas, a que causa o maior temor entre as entidades de defesa dos direitos indígenas, é a PEC 215, uma emenda à Constituição que busca transferir para o Congresso a responsabilidade de demarcação das terras. Outra é a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar supostas irregularidades da FUNAI, órgão do Governo que auxilia na realização dos estudos antropológicos.
Uma fonte próxima ao Governo disse a este jornal que o objetivo, neste ano eleitoral, é acalmar os ânimos no Congresso e evitar que os confrontos piorem ainda mais nas áreas em disputa. Com isso, uma comissão especial criada para discutir a aplicação da PEC, o penúltimo passo obrigatório para que ela seja votada no plenário, tem sido mantida em banho-maria, enquanto os indígenas ignoram os convites dos deputados para participar da discussão e fazem protestos contra ela.
Procurado, o Governo federal não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre situação da demarcação. Neste momento, as lideranças indígenas organizam em todo o país encontros com os caciques de suas regiões para definir de que forma iniciarão a tal guerra que foi declarada. De uma coisa eles têm certeza: não pretendem mais sentar para conversar com nenhum “homem branco”.
Fonte: EL PAIS
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