Em 2012, o “voto útil” conduziu adversários do neoliberalismo a escolher Hollande já no primeiro turno a fim de garantir o fracasso de Nicolas Sarkozy. Sabemos no que deu: as orientações principais do presidente vencido foram confirmadas por aquele que se elegera contra ele e a Frente Nacional virou o principal partido
por Serge Halimi
Paradoxo singular, a herança de Margaret Thatcher é repudiada em seu país no momento em que suas poções econômicas mais amargas fazem sucesso na França. Em 5 de outubro, a primeira-ministra britânica, Theresa May, impingiu aos militantes de seu partido um discurso que acabou por deixar alguns deles estupefatos. Denúncia de uma sociedade gangrenada pelos privilégios dos ricos, apologia das famílias trabalhadoras, defesa do papel do Estado “que está lá para fornecer o que os indivíduos, as comunidades e os mercados não podem dar”, menção insistente aos “direitos dos trabalhadores”, elogio do imposto – “preço que pagamos para viver numa sociedade civilizada” –, panegírico dos serviços públicos, sobretudo da educação e da saúde, cujo pessoal foi ovacionado, anúncio de uma retomada das despesas públicas nos setores da habitação e dos transportes: mesmo verbal, uma guinada programática como essa suscitou náuseas nos amantes inconsoláveis da Dama de Ferro. Um deles chegou a denunciar uma “contrarrevolução liberal”.1
E ele pode estar certo: sua heroína obteve, a título póstumo, asilo político do outro lado da Mancha, onde um pot-pourri de medidas neoliberais faz as vezes de programa comum da direita francesa. Sinal da vontade quase unânime de se desembaraçar de François Hollande no próximo ano, mas também do estado de decomposição no qual ele deixa seu partido, anuncia-se já a vitória de candidatos conservadores que prometem aos eleitores o aumento de dois a três anos na idade inicial para aposentadoria, quatro horas suplementares de trabalho semanal sem aumento de salário, a supressão do imposto sobre as fortunas – enquanto a taxa sobre valor agregado (TVA), um imposto sobre o consumo que atinge os rendimentos modestos, seria aumentada –, o caráter decrescente dos auxílios-desemprego, a supressão de 300 mil a 600 mil cargos de funcionários públicos... Em um país em que invocar pesquisas de opinião faz o papel do debate político, o fato de as três primeiras medidas despertarem uma profunda rejeição quase passou despercebido.2
O mais estarrecedor, porém, ainda está por vir. Em vez de se mobilizarem contra um expurgo thatcheriano ao qual mesmo os conservadores britânicos renunciam, certos eleitores de esquerda, generosamente ecoados pelos meios de comunicação, acreditam ser necessário participar este mês das primárias da direita, correndo o risco de conferir ao candidato que sair vencedor delas uma legitimidade suplementar quando ele for aplicar seu programa. Em 2012, o “voto útil” conduziu adversários do neoliberalismo a escolher Hollande já no primeiro turno a fim de garantir o fracasso de Nicolas Sarkozy. Sabemos no que deu: as orientações principais do presidente vencido foram confirmadas por aquele que se elegera contra ele e a Frente Nacional se tornou o principal partido da França. Dessa vez, sempre para vencer Sarkozy, seria preciso apoiar um de seus ex-ministros, Alain Juppé, que, incidentalmente, foi o articulador há trinta anos da virada liberal da direita francesa...3Ficou realmente complicado demais reservar energia política para a defesa de ideias?
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).
1 Nicolas Baverez, “Le virage antilibéral de Theresa May” [A virada antiliberal de Theresa May], Le Figaro, Paris, 17 out. 2016. 2 56% de hostilidade à supressão das 35 horas, 64% ao aumento da idade para a aposentadoria, 67% à supressão do imposto sobre as fortunas (pesquisa Ifop-Atlantico, 23 maio 2016). 3 Ler François Denord, “Et la droite française devint libérale” [E a direita francesa se torna liberal], Le Monde Diplomatique, mar. 2008. |
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