Por Andressa Jarletti Gonçalves de Oliveira e Sólon Almeida Passos de Lara
Em recente decisão, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino afetou o Recurso Especial 1.578.526/SP para julgamento pelo rito do artigo 1.040, CPC/2015, com o objetivo de definir a controvérsia sobre a “validade da cobrança, em contratos bancários, de despesas com serviços prestados por terceiros, registro de contrato e/ou avaliação de bens”. Como ressaltado na decisão que determinou o processamento do recurso como repetitivo, o tema em questão é objeto de inúmeros processos judiciais, o que justifica ao Superior Tribunal de Justiça harmonizar a interpretação jurisprudencial que deve ser dada à matéria. Cumpre então tecer algumas linhas gerais a respeito das orientações que tem sido desenvolvidas pelos tribunais brasileiros,[1] para reconhecer que a cobrança de tais tarifas é abusiva, o que justifica a revisão dos contratos e o expurgo dos respectivos valores.
Inicialmente, é importante ressaltar que as cobranças de tarifas bancárias passaram a constituir relevante fonte de recursos para as instituições financeiras, especialmente após a estabilização da inflação na década de 1990. Antes do Plano Real, a principal receita dos bancos advinha das taxas de inflação (floating) e, com a diminuição destas receitas, as instituições financeiras passaram a cobrar tarifas pela prestação de serviços.[2]
A cobrança de tarifas nos contratos bancários, conforme preconizado pela Súmula 297/STJ e ADI 2591-1/DF, deve ser analisada à luz dos preceitos do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, que estabelece a boa-fé objetiva e a equidade material como princípios basilares nos contratos de consumo. Como consequência da submissão dos contratos bancários ao CDC, Antônio Carlos Efing esclarece que, “qualquer tarifa cuja cobrança não for prévia e adequadamente informada ao consumidor, que o coloque em desvantagem exagerada, ou que for incompatível com a boa-fé e a equidade (artigo 51 do CDC) — ainda que arrolada em resolução do Bacen como lícita — é abusiva”, ante o caráter de norma de ordem pública e interesse social do CDC (artigo 1°, CDC).[3]
Para compreender de que forma a cobrança das tarifas de serviços de terceiros, inserção de gravame e avaliação infringem as normas do CDC, é necessária uma breve distinção entre tarifas e encargos bancários, que apresentam finalidades e naturezas distintas.
Os encargos bancários podem ser remuneratórios ou moratórios. Os primeiros correspondem, em regra, aos juros compensatórios pagos pelo devedor ao banco ante a concessão do crédito. Ou seja, os encargos remuneratórios literalmente remuneram o fornecedor pela disponibilização do crédito ao devedor, transferindo ao devedor o ressarcimento tanto dos custos de captação do crédito, quanto os acréscimos (spread) que compõe o lucro da operação. Os encargos moratórios, por sua vez, são devidos por ocasião da impontualidade no pagamento ou inadimplência do devedor.
Enquanto os encargos bancários são destinados a compensar o credor, seja pela concessão do crédito (juros remuneratórios), seja pelo atraso no pagamento da obrigação (encargos de mora), as tarifas bancárias correspondem ao preço que deve ser pago pelo devedor, em razão de outros serviços ofertados e prestados pelo fornecedor. Portanto, as tarifas decorrem de serviços adicionais prestados ao tomador do crédito, serviços estes que não se confundem com os custos inerentes à concessão de crédito, que já são repassados nos encargos remuneratórios.
Compreendido que as tarifas bancárias devem corresponder a outros serviços, distintos dos custos normais de concessão de crédito, cumpre então analisar a que serviços corresponderiam as tarifas de serviços de terceiros, inserção de gravame e avaliação, que são comumente cobradas em contratos de financiamentos de veículos e em contratos de leasing. A tarifa de serviço de terceiro constitui, na prática, a comissão paga pelo banco aos revendedores de veículos, pela intermediação do financiamento. As tarifas pela inserção de gravame são cobradas, em tese, pelos custos de registro da alienação fiduciária como garantia nos financiamentos de veículos. E a tarifa de avaliação corresponderia aos custos pela avaliação de veículos usados, para aferir o valor do bem que ingressará como garantia fiduciária no contrato de financiamento.
Pois bem. A respeito das tarifas em contratos bancários, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu, no julgamento do REsp 1.251.331/RS, que a condição de validade prévia para admitir a cobrança de tarifas é a previsão em norma do Banco Central do Brasil. A ausência de previsão expressa em Resolução do Bacen é um dos fundamentos que tem sido adotados para afastar a cobrança das tarifas de serviços de terceiros, inserção de gravame e registro de contratos.[4]
Além de não preenchido o requisito de validade formal, para legitimar a cobrança (previsão expressa em Resolução do Bacen), pode-se reconhecer a abusividade material da cobrança da tarifa de serviços de terceiros que, como visto, corresponde à remuneração do correspondente que intermedia o financiamento bancário. A ilicitude no repasse de tal custo aos consumidores já foi apontada pela associação de defesa do consumidor Proteste, eis que “não pode ser cobrado do consumidor tarifa, comissão, valores referentes a ressarcimento de serviços prestados por terceiros, ou qualquer outra forma de remuneração, pelo fornecimento de produtos ou serviços de responsabilidade da referida instituição”. Ou seja, mesmo a despeito da utilização dos correspondentes bancários, “o consumidor não deve pagar nada além do que seria cobrado se usasse a agência bancária”.[5]
A ilicitude da cobrança de tarifa de serviço de terceiro pode ser facilmente identificada, quando se observa que eventuais despesas havidas pelo banco, com a intermediação do financiamento integra o custo inerente à atividade bancária, de captação de novos clientes. Portanto, como tais custos já são repassados ao devedor por meio dos juros remuneratórios, a inclusão de tais despesas na forma de tarifa de serviço de terceiros implica bis in idem na cobrança, violando o princípio do equilíbrio contratual, ao exigir vantagem exagerada do consumidor, sem que lhe seja prestado diretamente qualquer serviço pela instituição financeira. Neste sentido, há julgados que reconhecem a ilicitude da cobrança, justamente por transferir ao consumidor custo que já é repassado nos juros remuneratórios, sem existir qualquer serviço adicional prestado em benefício do consumidor.[6]
Além disso, mesmo quando se admite a possibilidade de cobrança de serviços prestados por terceiros, com base na Resolução CMN 3.919/2010 (que estipula que o repasse de custos com serviços de terceiros não caracterizaria cobrança de tarifas), ainda assim já há decisões que analisam os requisitos que devem ser atendidos, para que se possa legitimar a cobrança perante o consumidor. São basicamente dois os pressupostos exigidos: (i) que efetivamente seja demonstrada a realização do serviço e o respectivo pagamento pela instituição financeira; e (ii) que haja previsão clara e expressa no contrato, a respeito do serviço prestado.[7]
O mesmo raciocínio tem sido adotado para reconhecer a abusividade da tarifa de avaliação de bens usados, reconhecendo-se que, a despeito da tarifa ser especificada na Resolução CMN 3919/2010, sua incidência não é automática, pois a cobrança somente deve ser admitida quando comprovada a realização do serviço de avaliação.[8]
Em síntese, a cobrança de tarifas deve ser reconhecida como abusiva, sempre que constatada qualquer uma das seguintes condições: (i) inexistir previsão expressa para cobrança em Resolução do Banco Central do Brasil; (ii) a cobrança corresponder a custos inerentes à atividade bancária, que já são repassados ao consumidor por meio dos juros remuneratórios; (iii) a cobrança for realizada sem a demonstração efetiva da realização do serviço, ônus que incumbe à instituição financeira; e (iv) a cobrança decorrer de previsão contratual genérica, sem o devido esclarecimento ao consumidor. Por meio de tais parâmetros, permite-se a adequação das cobranças de tarifas bancárias às normas de ordem pública do CDC, coibindo os abusos no setor financeiro, que contribuem para a multiplicação de demandas judiciais.
[1] Dentre outros, os seguintes tribunais já reconheceram a abusividade da cobrança de tais tarifas: TJ-DF, TJ-PR, TJ-SC, TJ-SP, TJ-RS, TJ-MS, TJ-MG, TJ-RJ, TJ-ES, TJ-MT, TJ-AC, TJ-AM, TJ-AP.
[2] EFING, Antônio Carlos. Contratos e Procedimentos Bancários à Luz do CDC. 2 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 320-321.
[3] EFING, Antônio Carlos. Op. cit., p. 324-325.
[4] “Com a entrada em vigor da Resolução CMN 3.518/2007 (30.04.2008), as tarifas passíveis de cobranças ficaram limitadas às hipóteses taxativamente previstas em normas padronizadoras expedidas pela autoridade monetária, devendo ser considerada ilícita a cobrança de encargos não previstos na Resolução CMN 3.919/2010 como serviços bancários passíveis de tarifação. É o caso, por exemplo, das tarifas de inserção de gravame, de registro de contrato e de serviços de terceiros”. TJDF, 1 Turma Cível, Apelação Cível 20130810009783, Rel. Desa. Simone Lucindo, j. 9.9.2015, unânime.
[5] PROTESTE. Consumidor não deve pagar taxa de serviços, publicação em 26/03/2012. Disponível em: ps://www.proteste.org.br/institucional/imprensa/press-release/2012/..., acesso em 30/09/2016.
[6]“A tarifa de serviços de terceiros, além de não estar prevista em resolução do BACEN, não remunera nenhum serviço prestado em benefício do consumidor. Ao revés, a beneficiária é a própria instituição financeira, a qual deve arcar com os custos, sob pena de violação do disposto no artigo 39, V e artigo 51, IV, XII e §1°, todos do Código de Defesa do Consumidor”. TJDF, 5 Turma Cível, Apelação Cível n. 20130110610895, Rel. Des. Sebastião Coelho, j. 22.04.2015, unânime.
“A remuneração da instituição financeira advém do pagamento dos juros remuneratórios e demais encargos contratuais, de modo que é abusiva a cobrança da tarifa de serviço correspondente prestado à financeira, consoante o art.51, inc. IV, do CDC”. TJDF, 6 Turma Cível, Apelação Cível n. 20130110411256, Rel. Desa. Vera Andrighi, j. 16.09.2015, unânime.
[7] “4. Apesar de admitida a cobrança da tarifa de serviço de terceiros, para legitimar, todavia, sua incidência, ao banco incumbe o dever de esclarecer objetivamente quais os serviços de fato prestados à instituição contratante, bem como demonstrar que efetivamente pagou por eles diretamente aos respectivos fornecedores ou prestadores de serviços. 4.1. A singela informação inserida no contrato acerca da incidência de uma despesa, eventualmente custeada pelo banco, à míngua de clara discriminação e comprovação do referido custeio, viola as disposições do Código de Defesa do Consumidor, notadamente o art. 39, V e o art. 51, IV. Os encargos administrativos não caracterizam, a priori, contraprestação de serviço pela instituição financeira ao consumidor, pois constituem custos ínsitos à própria atividade por ela desenvolvida. Por isso, não é razoável a transferência de tais ônus ao consumidor. Além do mais, não existe informação segura acerca de quais serviços foram efetivamente prestados, o que, como ressaltado, revela a abusividade da cobrança violando as disposições do Código de Defesa do Consumidor, notadamente o artigo 39, V e o artigo 51, IV”. TJDF, 2 Turma Cível, Apelação Cível n. 20140110278408, Rel. Des. João Egmont, j. 12.08.2015, unânime.
[8] “Apesar de a cobrança da tarifa de avaliação estar especificada na Resolução CMN 3.919/2010, sua exigência apenas tem cabimento se comprovada a realização do serviço mediante laudo de vistoria e de avaliação do veículo ou outro documento apto a demonstrar o dispêndio do valor respectivo.” TJDF, 1 Turma Cível, Apelação Cível 20130810009783, Rel. Desa. Simone Lucindo, j. 9.9.2015, unânime.
Andressa Jarletti Gonçalves de Oliveira é advogada e diretora-adjunta da região sul do Brasilcon (Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor). Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professora na Escola Superior de Advocacia da OAB-PR e de pós-graduação (Universidade Positivo, Unicuritiba, ABDConst, Damásio Educacional, Faculdades de Gestão da Indústria do Paraná e Univel).
Sólon Almeida Passos de Lara é advogado e sssociado do Brasilcon (Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor. Advogado). Pós-Graduado em Direito Civil e Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Pós-graduando no LLM em Direito Empresarial Aplicado pela FIEP (Faculdades de Gestão da Indústria do Paraná).
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 9 de novembro de 2016, 8h01
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