por Carlos Drummond — publicado 18/11/2016 11h33
Os ganhos dos detentores de patentes, propriedades e ativos financeiros não param de crescer. É um modelo semelhante ao que existia na Europa Medieval
O capitalismo funciona a partir da mera propriedade de bens e direitos e remete ao período da economia feudal, anterior a 1453
Menos estridente que o retrocesso da política, a regressão da economia é uma realidade incontestável. O assunto aqui não são os efeitos deletérios da recessão, mas o encolhimento de formas tradicionais de obtenção de ganhos, a exemplo dos lucros e salários proporcionados pelo investimento em capacidade produtiva. No vácuo cresce o rentismo, obtenção de recursos proporcionados pela mera propriedade de bens e direitos.
Sua forma mais conhecida é o aluguel, mas detentores de recursos naturais, patentes, ativos financeiros e propriedades intelectuais também obtêm aquele retorno. A mudança é interpretada como uma marcha à ré, pois a renda dos donos da terra era a fonte de acumulação típica da Europa medieval, entre a queda do Império Romano no Ocidente, no século V – alguns historiadores definem o início no ano 1000 – e a tomada de Constantinopla, em 1453.
“Nós vivemos na era do capitalismo rentista”, diagnostica Guy Standing, professor da Universidade de Londres. “A renda, ligada ao controle de recursos naturais, à propriedade, aos ativos financeiros e à propriedade intelectual, tornou-se uma força dominante na economia global”, defende no livro A Corrupção do Capitalismo: Por que os rentistas prosperam e o trabalho não remunera.
Alguns números ilustram as dimensões do fenômeno. Só o estoque de patentes em vigor, perto de 8,7 milhões em 2012, vale mais de 10 trilhões de dólares, segundo a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi). A receita com direitos e taxas de licenciamento superou 200 bilhões de dólares em 2010, sete vezes mais que em 1990.
A remuneração aos detentores das dívidas públicas, em expansão significativa nas últimas décadas, é um meio importante de obtenção e concentração de renda, principalmente em países como o Brasil, de taxas de juro consolidadas há anos no topo do ranking mundial. Mais de 90% dos juros da dívida são pagos ao próprio sistema financeiro, calcula a organização Auditoria Cidadã da Dívida. Uma bolada de 367,67 bilhões de reais em 2015, segundo o Tesouro Nacional.
Bancos nacionais e estrangeiros, investidores estrangeiros e seguradoras, muitas delas pertencentes aos conglomerados bancários, perfazem 62% dos beneficiários. Os fundos de investimento, em grande medida ligados aos grandes grupos financeiros, detêm 18% da dívida e os fundos de pensão, 13% do conjunto. O chamado Tesouro Direto, forma de aplicação de pessoas físicas em títulos do governo, responde por 0,36% do estoque da dívida interna.
Diferentes modalidades de rentismo proliferam. Algumas corporações poderosas, diz Standing, constroem enormes carteiras de patentes para consolidar o status de monopólio ou travam batalhas de patentes para garantir bilhões de dólares em renda. A guerra de smartphones entre Samsung e Google é um exemplo recente. Há ainda uma indústria lucrativa de empresas especializadas que nada produzem e se limitam a comprar patentes com a única intenção de rastrear supostos infratores, processá-los e enriquecer.
Os rendimentos pagos pelo direito de usar, explorar ou comercializar um produto, obra ou terreno, também crescem sem parar para filmes, músicas, vídeos, programas de computador, bancos de dados e muito mais. No caso das gravações sonoras, o prazo de proteção aumentou para 70 anos na União Europeia e para 95 anos nos Estados Unidos. Segundo a Ompi, em alguns países, as indústrias intensivas em direitos autorais são mais lucrativas do que a construção, os transportes e a mineração.
Historicamente, os direitos autorais foram conquistados não por criadores de ideias, mas por editores, com uma proteção de 14 anos. No caso das obras literárias, as regras garantem a renda por 50 anos – e em um número crescente de países, por 70 anos –, após a morte do autor.
Os monopólios dos autores, diz o escritor Cory Doctorow na revista Locus, não se tornaram propriedade intelectual por acidente. A mudança semântica foi projetada pela indústria de entretenimento, que visava torná-los tangíveis e indevassáveis. Também não foi casual a consolidação do direito de criação de softwares.
Uma série de casos judiciais e de iniciativas legislativas estabeleceu, gradualmente, que eles eram algo semelhante a uma forma literária e, portanto, poderiam ser protegidos os mesmos direitos de autoria válidos para livros.
A extensão da renda proporcionada pelos softwares é simétrica à enorme expansão do seu uso. Qualquer coisa com software tem, por definição, um trabalho com direitos autorais no seu interior. Tudo tem software nos dias de hoje, de casas, fábricas, carros e aviões a termômetros, bombas de insulina e gaiolas inteligentes, além dos redundantes smartphones e smart TVs, além de uma quantidade infindável de objetos e sistemas.
“Para as empresas, é quase bom demais para ser verdade. Cada uma delas tem preferências comerciais que desejavam tornar obrigações legais. Com a Lei dos Direitos Autorais do Milênio Digital dos Estados Unidos, de 1998, e a proliferação da computação barata, cada empresa consegue tornar seu desejo realidade”, critica Doctorow.
Se a mera presença de um trabalho com direitos autorais em um dispositivo significa que seu fabricante nunca para de possuí-lo, diz o escritor, então isso significa que você nunca pode começar a tê-lo. “Há uma palavra para isso: feudalismo. No feudalismo, a propriedade é o domínio exclusivo de uns poucos privilegiados, e nós somos inquilinos. No século XXI, a nobreza não são terras e castelos hereditários, mas formas de vida artificiais transumanas e imortais, as corporações de responsabilidade limitada, que usam os seres humanos como sua flora intestinal.”
O rentismo completou o desmoronamento do sistema de distribuição de renda do século XX e isso só não fica mais claro porque um véu de mentiras dissimula a ruína, analisa o professor da Universidade de Londres. A alegação de que o capitalismo global está baseado no livre-mercado, por exemplo, não se sustenta quando há um sistema de patentes com garantia de rendas de monopólio por 20 anos, óbvio obstáculo à concorrência.
Ao contrário também da versão dominante, os direitos de propriedade intelectual desestimulam a tomada de risco. Desde a aprovação, em 1995, do acordo sobre direitos de propriedade intelectual na Organização Mundial do Comércio, o TRIPS, na sigla em inglês, as indústrias intensivas em conhecimento, que representam 30% do PIB global, ganham mais com a propriedade intelectual do que com a produção de bens e serviços.
Outra inverdade é o suposto estímulo da globalização ao crescimento do capitalismo. A correlação é maior com custos ecológicos, instabilidade econômica e crises financeiras cada vez mais graves, como a de 2008 nos Estados Unidos, quando perto de 8,2 milhões de habitantes perderam suas casas. Do mesmo modo, a associação da obtenção de lucros com a eficiência gerencial e os retornos da tomada de risco não se comprova. As multinacionais, as eficientes e as ineficientes, podem solucionar litígios com os Estados de outros países em cortes arbitrais internacionais.
São os acordos ISDS, na sigla em inglês, um seguro contra leis, regulamentos, decisões judiciais ou administrativas tomadas em qualquer esfera, consideradas prejudiciais aos lucros das empresas e dos investidores estrangeiros que compram bens, de 1 acre de terra a uma fábrica, ações e títulos. A Philip Morris, por exemplo, processou os governos da Austrália e do Uruguai sob alegação de queda dos lucros, em consequência de campanhas antitabagismo.
A alardeada capacidade de o trabalho constituir o melhor caminho para sair da pobreza é mais uma inverdade. Plataformas digitais de serviços como o Uber multiplicam a ocupação precária de milhões de prestadores de serviço mal remunerados, geram desemprego, maximizam lucros e aumentam a desigualdade.
Os ganhos dos proprietários dos aparatos tecnológicos dessa natureza, protegidos por patentes e outros instrumentos, ultrapassam 20%. “Recebem muito para fazer pouco, se aceitarmos a sua alegação de que eles apenas fornecem tecnologia para colocar os clientes em contato com ‘contratantes independentes’ de serviços”, contesta Standing.
A combinação entre o avanço do rentismo e as resistências em cobrar mais impostos dos mais ricos arremessa as sociedades rumo ao passado. “Uma mensagem política repetida ad nauseam nestes dias é de que movimentos para aumentar a progressividade dos impostos acabam por prejudicar a economia, em vez de ajudá-la. Essa teoria, do tipo ‘eu alimentaria você, mas você pode se tornar dependente de alimentos’, é central para mostrar como as sociedades de consumo como a nossa estão retornando às distribuições feudais de riqueza”, alerta o economista Michael Hudson, professor das universidades do Missouri e de Pequim.
A solução, sugere Standing, é adotar a proposta de Keynes, da eutanásia do rentista, entendida como o cerceamento da sua possibilidade interminável de ganhos. “Vai ser uma luta, mas é viável. Exige um novo sistema de distribuição de rendimentos, incluída uma renda básica paga a partir de um imposto sobre todas as formas de proventos. Sem isso, uma nova Idade das Trevas ameaça.”
*Reportagem publicada originalmente na edição 927 de CartaCapital, com o título "Senhores feudais"
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/
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