O Beato José Lourenço nasceu em Pilões de dentro na Paraíba por volta de 1870. Aos quatorze anos saiu de casa e foi tentar a vida em Serraria como amansador de cavalos.
Ao voltar prá casa, teve a surpresa: a família migrara para a Meca do Sertão, Juazeiro do Padre Cícero. A Hoje grande cidade de Juazeiro do Norte surgira como um povoado de romaria após o dito fenômeno de que a hóstia na boca de uma beata, Maria de Araujo teria se transformado em sangue.
O padre Cícero ganharia projeção nacional e houve quem acreditasse que ele quisesse aliar-se a Antonio Conselheiro, beato que fundou o povoado de Canudos e lilderou a resistência desse arraial contra as formas públicas e militares. Contudo Cícero Romão Batista, ainda que tivesse sofrido punições pela alta hierarquia católica, já que não era aceita sua simpatia por milagres não oficialmente reconhecidos, nunca se indispôs com os coronéis do sertão.
Era o tempo de guerras de famílias, onde como já vimos, trabalhar como capanga de coronel, aparecia ao roceiro como uma alternativa.
O beato José Lourenço agregou-se ao grupo do padre Cícero e foi administrar um sítio chamado Baixa Dantas no município do Crato em 1894.
Em 1914, Floro Bartolomeu, líder político de projeção estadual e espécie de guia político do padre Cícero lidera uma rebelião de coronéis contra o governador Franco Rabelo, que contava com o apoio do presidente Hermes da Fonseca. Era a sedição de Juazeiro, abençoada pelo Padre Cícero. O sítio de José Lourenço é destruído por forças governamentais.
A comunidade é reconstituída, mas Lourenço chega a ser preso por alguns dias em 1919, correndo a lenda que ficara vários dias sem comer e sem beber na prisão.
Dois anos depois o beato ganha um boi do Padre Cícero: chamado Mansinho. O boi é visto como santo e muitos começam a endeusá-lo, acreditando que o mesmo fazia milagres. Por ordem de Bartolomeu, Lourenço é preso e o boi morto, e a carne distribuída entre a população, mas muitos se recusaram a comê-la. O próprio beato teve de provar da carne, segundo relatos locais.
De qualquer modo o negro José Lourenço pode voltar a Baixa Dantas no Crato, mas em 1926 teve de se mudar para o sítio do Caldeirão. O dono da Baixa Dantas, que o arrendara ao padre Cícero vendera a terra e José Lourenço com seus seguidores dirigiu-se ao sítio na Serra do Araripe.
Segundo Domingos Sávio de Almeida Cordeiro as memórias produzidas pelos que viveram no Caldeirão evocam esse tempo como o melhor de suas vidas. Numa terra marcada pela seca, como no ano de 1932, o Caldeirão conseguia não apenas o autoabastecimento, mas também acolher refugiados da seca, que chegavam espeecialmente dos estados vizinhos do Rio Grande do Norte e Pernambuco, onde Severino Tavares costumava recrutar novos crentes.
O Caldeirão crescia, mas como Canudos, arrebatava mão-de-obra aos proprietários locais, e além do mais aquela extensa área marcada por uma produção extremamente importante e inclusive com irrigação, passou a ser o objeto de desejo dos padres salesianos, que com a morte do Padre Cícero em 1934, passaram a requerer a expulsão de uma comunidade, que contava com milhares de pessoas.
Os boatos sobre o Caldeirão começavam a circular na Imprensa Cearense. Num momento, José Lourenço tinha uma atividade sexual promiscua, noutro havia ali práticas fanáticas, já que o beato era considerado o sucessor do Padre Cícero. Depois do frustrado levante comunista de 1935 ficou fácil acusar de comunista a uma comunidade onde a propriedade da terra era coletiva, onde o algodão era vendido para reverter em obras, que beneficiavam a todos e onde também não se cristalizava a noção de propriedade privada.
Os boatos se intensificavam ainda mais que Severino Tavares era do Rio Grande do Norte, era o comunismo, que tinha de ser exorcizado. O capitão José Bezerra, segundo nos lembra Sávio foi espionar os romeiros disfarçado de comerciante interessado na exploração da oiticica. Seu relatório era o que o governador Meneses Pimentel esperava. O Caldeirão era um reduto de fanáticos, desordeiros e comunistas e tinha que ser desmontado com urgência. Como nos lembram Cordeiro e Chico Sá o que mais marca este momento nas memórias dos antigos moradores era o fato de Bezerra ter tido um “tratamento de rei”, comendo do bom e do melhor para depois cometer a “traição” entregando o reduto ao governo do estado.
Não houve confronto neste momento: o beato José Lourenço fugiu, houve a destruição de casas, roças e moinhos, numa ação que só encontrou, segundo alguns relatos, o protesto de uma mulher, que ateou fogo ao corpo.
Mas a experiência do Caldeirão não terminara. Enquanto José Lorenço se abrigava num lugar conhecido como Mata de Cavalos, Severino sonhava retomar o Caldeirão.
Em maio de 1937 ocorreria um combate entre forças lideradas por ele e os policiais sob comando de José Bezerra, o mesmo espião já citado. Como no contestado os dois comandantes morreram. Mas a morte de Bezerra significava para os proprietários locais, para os políticos de fortaleza a vitória do fanatismo e do comunismo. O governo estadual pediu forças armadas e o exército chegou com aviões no mesmo mês de maio.
Pela primeira vez no Brasil aviões bombardeavam camponeses falando-se em pelo menos setecentos mortos. Para a memória das forças armadas brasileiras era mais um Canudos a ser abatido.
O beato José Lourenço não foi morto e ainda voltou ao Caldeirão no ano de 1938, sendo novamente expulso dois anos mais tarde, sem nenhuma indenização dos prejuízos sofridos.
Estabeleceu-se finalmente no Sítio União em Exu, Pernambuco, onde conseguiu comprar a terra e organizar uma comunidade nos moldes da Cearense. Com sua morte em 1946 a comunidade se desagrega.
O Brasil mudava a partir da Revolução de 1930, com o incentivo a indústria e uma política social mais favorável aos trabalhadores da cidade. Mas no campo, ainda que setores da burocracia central buscassem efetivar algumas reformas, o poder dos coronéis continuava incontrastável quando se tratava de confronto com os roceiros.
O Caldeirão ficou esquecido durante muitos anos, só sendo recordado inicialmente nos textos de Ruy Facó nos anos sessenta. Aliás segundo este autor parte dos sobreviventes do Caldeirão teria sido massacrada em pau de colher, um sítio do Médio São Francisco na Bahia junto à divisa com o Piauí em 1938. Atualmente existe uma revalorização desta experiência, com os sem terra cearenses procurando legitimar sua luta como uma continuação daquela empreendida pelo beato José Lourenço.
A ONG SUS Direitos Humanos equipara o massacre do Caldeirão à guerrilha do Araguaia e ingressou com uma Ação Civil Pública reivindicando em 2008 a identificação da cova coletiva onde estariam sepultados os restos mortais dos massacrados, sua identificação, via DNA, bem como a indenização às suas famílias. O pedido foi negado em primeira instância e foi apresentado em 2010 um recurso ao Tribunal Regional Federal de Recife.
Por Vanderlei Vazelesk Ribeiro.
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