Em tempos atuais, precisamos mais do que um direito positivado na Constituição como garantia fundamental. Há uma necessidade de afirmação do que a Escola de Frankfurt chamava de “ênfase na dialética e contradição como propriedades inerentes da realidade”. É que a realidade, hoje, constitui uma disputa entre uma geração rispidamente rancorosa com a perda de espaço e poder de um lado, e uma classe marginal que dentro de um projeto construtivo de democracia busca há algumas décadas consolidar o sonho de 1988.
Contudo, quem avança é o desmonte das garantias e liberdades individuais. Afirmar a dialética, na realidade brasileira pós-impeachment, parece que se tornou uma das tarefas mais árduas e profícuas a se realizar. O problema é que esvaziar uma liberdade individual torna a própria Constituição esvaziada. E, em consequência, o próprio regime democrático, ventre livre da Carta Magna.
O Supremo Tribunal Federal, no dia 27 de outubro, por maioria, julgou o Recurso Extraordinário 693.456/RJ, afetado pelo instituto da repercussão geral, declarando que o poder público deve suspender, de imediato e automaticamente, por meio do corte de ponto, o pagamento dos vencimentos de servidores que iniciarem uma manifestação grevista.
Inimaginável, do ponto de vista jurídico, que o exercício de um direito constitucional autoaplicável deva impor um ônus processual ao trabalhador ao determinar a prova de conduta ilícita do poder público. É que, na fixação da tese, os ministros excepcionaram o corte de ponto dos grevistas caso fique demonstrado que a greve foi provocada por conduta ilícita da administração pública. Ora, qual conduta ilícita? Aquela justamente razão pela qual os servidores decidiram em uma assembleia soberana que estavam sendo lesados e deveriam entrar em greve?
Não há nem parâmetro para o que seja conduta ilícita do Estado. Pressupõe-se, dessa maneira, que a conduta ilegal deva ser provada em juízo, por meio de um Poder Judiciário a quem o Conselho Nacional de Justiça, órgão fiscalizador da atuação administrativa e financeira desse poder, imputa em pesquisa recente que um processo judicial dura em média 10 anos. Ao certo, provar ilicitude do poder público diz respeito a fiscalizar seu ato administrativo, prerrogativa última que condiz ao Judiciário dentro de um sistema tripartite entre órgãos independentes e harmônicos.
O servidor público, órfão de uma legislação de greve, agora se torna viúvo da Constituição Federal. As condicionantes ao exercício do direito de greve, invocada pelos ministros da corte suprema, transmuta de forma insofismável ao cidadão brasileiro uma sanção prévia, indispondo até mesmo qualquer espécie de contraditório e ampla defesa, pois a lista dos grevistas não pode ser extraída de modo unilateral pela própria administração, e sim advir de um contraponto de entidades sindicais que, por determinação legal, decidem pela instauração do movimento paredista.
É cediço, ainda, que as diferenças acerca do regime jurídico estatutário e celetista estão plenamente mantidas. O jurista Celso Antônio Bandeira de Mello é incisivo em determinar a natureza jurídica que o ocupante de cargo público tem com a administração:
“A relação jurídica que interliga o Poder Público e os titulares de cargo público, como já foi dito — e ao contrário do que se passa com os empregados — não é de índole contratual, mas estatutária, institucional[1]”.
E, na sequência, para tentativa de compreensão do entendimento em que o Supremo debruçou-se, não se pode aplicar uma analogia em “suspender” a relação institucional de vínculo entre servidor e poder público, como ocorre no regime celetista indicado pela Lei 7.783/89, em seu artigo 7º[2].
A jurista e advogada Zênia Cernov invoca um argumento plausível quando alude que “em termos de direito administrativo, inserem-se no contexto dos regimes apenas três modalidades de ausência lícita ao serviço, quais sejam: férias, licenças e afastamentos. Não há hipótese de ‘suspensão’ do liame que liga tais servidores ao cargo público”. E complementa:
“Não se podendo caracterizar greve como férias, sequer como licença, a solução mais viável é considerar esse período como de afastamento do cargo. Ocorre, no entanto, que as hipóteses de afastamento do cargo público são aquelas especificadas nos próprios regimes jurídicos, e se esse não prever como tal a participação em greve, não se poderia simplesmente ‘inserir’ uma nova modalidade de afastamento do servidor, sem ferir o princípio da legalidade[3]”.
Ao nosso sentir, essa é a principal razão de que o corte de ponto, se assim fosse efetivado, deveria advir a partir de uma decisão de abusividade e ilegalidade do Poder Judiciário, dando substrato jurídico plausível a essa sanção ao servidor. Caso contrário, o corte de ponto no início do movimento grevista detém caráter ínsito de retaliação, ilicitude, pois não é amparado em lei e, como é certo pelo princípio da autocomposição, desiguala a relação jurídica entre trabalhador e Estado por ocasião das tratativas em acordo.
Com efeito, o controle social exercido pelo Poder Judiciário, nas vestes togadas do Supremo, torna-se questionável em um ambiente democrático na medida em que a fundamentação e motivação da decisão judicial abala sistematicamente direito social e pétreo da Constituição. No caso, a greve, tida como último instrumento de uma luta até mesmo por subsistência e dignidade do trabalhador, foi reduzida ao patamar de expectativa de direito e distante do que Campilongo chamava de “instrumento de afirmação dos direitos fundamentais e superação do déficit de cidadania[4]”.
Atualmente, a jurisprudência brasileira vem entendendo que cabe ao Poder Judiciário o dever de garantir a eficácia dos direitos sociais, como expressão dos direitos fundamentais, insculpidos na Constituição de 1988. Assim, a via judicial é um forte instrumento à disposição da sociedade em defesa dos direitos individuais e sociais, visando realizar os fundamentos do Estado Democrático de Direito, da cidadania e da dignidade da pessoa humana.
A gravidade com que se desnatura o exercício regular do direito constitucional de greve é análoga a uma traição. Nesses moldes de implemento, ou seja, uma infidelidade institucionalizada. Diretamente refletido para o povo. Sub-reptícia como uma traição. Confiávamos na possibilidade de buscar aquilo em que sonhamos. Depois da decisão do Supremo Tribunal Federal, aos 27/10/2016, teremos o ônus de provar a legitimidade de viver, já que buscar melhores condições de vida demanda um revés inicial em não deter subsistência alimentar para questionar o Estado.
Cabe aduzir, por ora, que o termo "acordo" estipulado na tese de repercussão geral deverá ser utilizado em sua elasticidade interpretativa. Tal acordo deve seguir os ideais das normas fundamentais do processo civil dispostas no Capítulo I, Título Único e Parte Geral da Lei 13.105/2015, a partir da judicialização da matéria. E mesmo na esfera pública administrativa, onde o estatuto processual ingressa por seus ideais, deve-se prevalecer o acordo com devolução dos vencimentos em folhas suplementares e reposição por metas e desempenho os dias parados. No fundo, a Constituição deve ser recuperada em um acordo final entre trabalhador e Estado.
Se a concretização do princípio da motivação das decisões jurídicas garante o pleno exercício do contraditório, na via endoprocessual e a partir da análise das fontes legais e jurídicas sólidas, como questionar o que tangencia a ausência de racionalidade nas decisões é que nos causa preocupação. Para dizer em outras palavras, questionar o que vem na forma exposta de política de controle social transforma-se em um exercício difícil porque decisões judiciais sem fundamentação são típicas de governos totalitaristas.
As últimas decisões que o Supremo vem emanando ferem nossos direitos frontalmente. Além da retirada do direito consagrado de greve dos servidores públicos, o STF foi mais longe aprovando a rejeição à desaposentação e a suspensão de processos da Justiça do Trabalho baseados em direitos de acordos coletivos vencidos, a chamada Súmula 277. Além disso, a relativização do princípio da presunção da inocência indica um marco temporal entre o Estado Democrático e o Estado policialesco.
Relembro que o ministro Teori Zavascki, ao proferir seu voto no RE 693.456/RJ, atestou em Plenário que a CF não assegura direito de greve com pagamento de salário. Ora, mas essa condição não veio estipulada na Carta Magna. Não há possibilidade de a Constituição prescrever corte de salário nessa hipótese porquanto verba de caráter alimentar, sendo que em seu texto há defesa expressa da irredutibilidade de vencimentos, proteção à miserabilidade e, mais ainda, em seu artigo 1º traz como fundamento da República a dignidade da pessoa humana.
Estaria, contrario sensu, dando um direito fundamental e retirando outro, o da subsistência própria e garantia do sustento familiar. Absurdo. Não há comando legal, tampouco constitucional em cortar o ponto no exato momento em que a greve é iniciada. Menos ainda cortado pelo empregador, unilateralmente, a partir de ato administrativo claramente coator em que a decisão política da administração prevalecerá em detrimento do interesse público primário.
A paridade de armas entre Estado e servidor é comprometida seriamente quando o trabalhador precisa decidir entre a greve ou a vida. Mais gravoso torna-se atualmente, já que podemos afirmar que as circunstâncias e requisitos para as greves gerais ocorridas na Europa e EUA no final do século XIX e início do século XX são os mesmos.
A importância das greves gerais permanece porque remanescentes, na totalidade, as condições gravosas e injustas da lógica social contra as classes populares. Limitações dos direitos sociais e fundamentais, repressões violentas dos protestos sociais, derrotas sindicais no domínio da proteção laboral e decisões políticas contra o interesse nacional são exemplos dos grandes debates pré-anúncio das greves gerais no passado e debates no interior do movimento operário e de partidos revolucionários.
O sistema judicial e político no Brasil não age mais a partir de um verniz de legalidade, nem mesmo na aparência. Suprimem-se garantias conquistadas dentro de um processo histórico amplo e longo que é o estabelecimento da democracia e redução da desigualdade social em um país advindo do subdesenvolvimento pós-revolução industrial.
Diante da decisão recente da corte suprema, quando prenuncia que o trabalhador não deve ganhar seu vencimento caso deflagre movimento paredista, sem mesmo um "terceiro" (Poder Judiciário) dizer sobre a abusividade ou não, atesta-se de uma forma clara que a greve dos servidores públicos é um direito fundamental natimorto na Constituição Federal. Cremado no dia 27 de outubro de 2016.
[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 11. Ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 183.
[2] Art. 7º Observadas as condições previstas nesta Lei, a participação em greve suspende o contrato de trabalho, devendo as relações obrigacionais, durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho.
[3] CERNOV, Zênia. Greve de Servidores Públicos. São Paulo, LTr, 2011, p. 68.
[4] CAMPILONGO, Celso Furtado. Os desafios do Judiciário: um enquadramento teórico. IN: Faria, José Eduardo (org.). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 2002.
[2] Art. 7º Observadas as condições previstas nesta Lei, a participação em greve suspende o contrato de trabalho, devendo as relações obrigacionais, durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho.
[3] CERNOV, Zênia. Greve de Servidores Públicos. São Paulo, LTr, 2011, p. 68.
[4] CAMPILONGO, Celso Furtado. Os desafios do Judiciário: um enquadramento teórico. IN: Faria, José Eduardo (org.). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 2002.
Rodrigo Camargo Barbosa é advogado coordenador do Núcleo de Direito Público e Sócio Laboral do escritório Cezar Britto & Advogados Associados. Assessor jurídico de entidades sindicais, secretário-geral da Comissão Especial de Diversidade Sexual da OAB-DF e membro da Comissão de Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB. Graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pós-graduando em Direito Sindical pelo IESB.
Nenhum comentário:
Postar um comentário