SUBSCREVO, NA TOTALIDADE, AS PALAVRAS DO CLÓVIS.
EFETIVAMENTE, É UMA DESGRAÇA A INVASÃO CULTURAL QUE PROMOVE A TROCA DA MÚSICA LOCAL PELA PORCARIA CANTADA PELO TELÓ.
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Pode me chamar de brega, mas acho muito simpática a música andina. A bem da verdade, simpatizo com todos os ritmos típicos da América Latina, dos mariachis mexicanos ao tango argentino.
Mas o som da quena, aquela espécie de flauta em geral feita de bambu, é especialmente atraente porque provém do início dos tempos e nada deve aos colonizadores.
Fiquei ainda mais simpático ao folclore, no caso peruano, na recente estada em Lima, para a 3ª Cúpula Aspa (América do Sul/Países Árabes).
Acontece que, ao passar pela Ripley, loja de departamentos da capital, colidi com ele, sim, com Michel Teló e o indefectível "ai, se eu te pego".
Nada contra Teló, até porque minha neta Alice canta essa música com aquela graça que crianças de três anos sempre têm (ao menos aos olhos dos avós, sejamos francos).
Mas, caramba, que sentido faz trocar a quena por um cantor brasileiro?
Não foi só a quena que parece ter desaparecido da Lima moderna. Fazia muito tempo que não ia ao Peru, país que frequentei muito, nos anos 70, durante o regime do general Velasco Alvarado, uma espécie de Hugo Chávez do século passado, um militar esquerdista cercado de regimes militares de direita por quase todos os lados.
Minha memória de Lima é, pois, de uma cidade de casas baixas, de carros velhos sem limpador de parabrisas (quase nunca chove por lá), muita pobreza, muita gente descendente de indígenas, com aquela típica cor de cobre dos andinos.
É verdade que, desta vez, fiquei preso praticamente aos bairros de Miraflores e San Isidro, de classe média alta, com esparsas passagens pelo centrão. É outro planeta, que pouco parentesco tem com o Peru profundo.
Nesses bairros, nada se parece à Lima que conheci. Claro que, no centro velho, ainda há muitos vestígios, ainda há as casas com aquelas sacadas de madeira típicas do período colonial. Só que, agora, todas estão devidamente protegidas por grades, que a insegurança pública não é um fenômeno só brasileiro.
Sobrou, como é óbvio, muita gente cor de cobre. Mas surpreende (a mim pelo menos) a quantidade de loiras em um país moreno como esse.
Na já citada Ripley, nem sequer se vendem ponchos, que eu não usei nem quando era jovem (faz tanto tempo que os incas ainda mandavam no Peru, me parece). Menos ainda usaria agora. Mas pelo menos me dariam a sensação de que o Peru ainda é o Peru.
As marcas à venda são as de qualquer outra cidade do mundo. Você sai do hotel (da rede Sheraton) e cai quase diretamente num Starbucks, em frente a um McDonald's. Na esquina, "orelhão" da Telefonica. Em frente a um "orelhão" da Claro.
Nem sinal das "chifas", os restaurantes chineses que começaram a brotar faz quase um século.
Dos habitantes originais, restaram, que eu tenha visto, apenas um "InkaCash", caixa eletrônico, e uma "Inka-Farma", farmácia que promete preços de deixar sem emprego todos os velhos curandeiros da tribo.
A globalização tem lá suas vantagens, é óbvio. Mas reduziu formidavelmente a margem para o típico. Não estou sendo saudosista, não.
Resisto bravamente à tentação de ser argentino e sair por aí dizendo que "todo tiempo pasado fue mejor". O Peru progrediu muito desde minhas incursões de 30 anos atrás, como é óbvio e inevitável.
A América Latina também avançou muito. Só o fato de ver, como aconteceu na "foto de família" da Aspa duas mulheres, Dilma Rousseff e Cristina Kirchner, ao lado daquele bando de machos que, antes, eram os únicos donos do poder, já é incomparavelmente melhor.
Mas essa massificação global tira muito da graça de viajar, que deveria ser uma maneira de enriquecer-se com a cultura de outras tribos, não com Michel Teló.
Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às terças, quintas e domingos no caderno "Mundo". É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo e "O Que é Jornalismo". Escreve às terças, quintas e domingos na versão impressa do caderno "Mundo" e
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