ALEXANDRA LUCAS COELHO, RIO DE JANEIRO
A capela de São Sebatião, na favela da Varguinha em Manguinhos, Rio de Janeiro, vai receber a visita do Papa numa operação altamente vigiada pelas forças policiais
REUTERS/RICARDO MORAES
Será o maior esquema de segurança de sempre para proteger uma única pessoa.
Sónia Cristina Miranda, de 54 anos, mãe de quatro filhas, está a trabalhar para o Papa Francisco. A sua missão é acolher os fiéis que sobem as escadas da paróquia de Nossa Senhora de Copacabana. Faz isso todos os sábados, enquanto "católica comprometida", mas este sábado é único na vida dela e do Rio de Janeiro: os fiéis vêm de 175 países e seis vão dormir em casa dela, ali ao virar da esquina.
Quando o movimento acalma, Sónia pega no seu kindle. Está com ele na mão no momento em que a repórter chega. A ler o quê, já agora? "Nietzsche." Ah, bom? ""Sim. O Anti-Cristo". E dá uma gargalhada.
Uma carioca a ler a versão kindle do Anti-Cristo enquanto trabalha para o Papa é uma imagem complexa, mas, como diria o ex-presidente Lula da Silva, nunca antes na história deste país tudo foi tão complexo.
O Papa Francisco aterra no Rio de Janeiro às 16h de hoje (20h em Lisboa) num auge de tensão pública. Após semanas de protestos que chegaram a um milhão na rua, incluindo confrontos violentos entre polícia e manifestantes, o que espera Francisco é o maior esquema de segurança já montado para proteger um único indíviduo.
Só a segurança pessoal envolve 1500 polícias federais, com helicópteros de escolta. A polícia militar vai ter 14 mil homens na rua. Entre Exército, Marinha e Aeronáutica, contam-se 28 mil soldados. Mais torres de vigia e infiltrados entre a multidão, calculada em dois milhões apenas em Copacabana.
Ainda assim, apesar dos alertas de segurança, Francisco alterou o percurso que o levaria do aeroporto ao Palácio da Guanabara: pediu para desfilar de papamóvel. Ou seja, vai encontrar o povo antes dos governantes.
O Palácio da Guanabara é a sede do governo do estado do Rio de Janeiro, liderado por Sérgio Cabral, a figura local mais visada pelos protestos. O prédio de Cabral, no Leblon, tem sido um ponto de reivindicações várias, a começar pelo facto de o governador ser o responsável pela Polícia Militar (PM).
Os excessos da PM, com gás lacrimogéneo, balas de borracha, espancamentos e detenções arbitrárias fizeram dela um alvo de críticas. Até que, na quarta-feira, as manifestações do Leblon evoluíram para cocktails molotov, barricadas, e destruição de bancos e lojas sem que a polícia interviesse, durante horas.
Em suma, a Jornada Mundial da Juventude, na qual a visita do Papa se integra, acontece num momento em que parte da população quer mais intervenção da polícia, outra parte acha que a polícia fez de propósito para virar a opinião contra os manifestantes. Há toda uma discussão sobre o meio-termo policial entre excesso e inacção, e a necessidade de distinguir entre manifestantes não-violentos, politizados violentos e violência não-politizada, incluindo traficantes e milicianos infiltrados.
Os acontecimentos populares da presença de Francisco no Rio são: o desfile hoje no centro; a ida à favela de Manguinhos e a acolhida dos jovens em Copacabana, na quinta-feira; a via-sacra em Copacabana, na sexta-feira; e a vigília de sábado para domingo em Guaratiba, nos arredores do Rio, com missa campal de manhã.
Católicas pela mudança
Além das manifestações políticas nas imediações do Palácio da Guanabara, já hoje, há protestos anunciados ao longo dos próximos dias contra posições da Igreja Católica em temas como aborto e homossexualidade, incluindo a organização não-governamental Católicas pelo Direito de Decidir, liderada por Maria José Rosado (professora da Pontifícia Universidade Católica), que se juntará em Copacabana à Marcha das Vadias, um grupo feminista.
"Vamos participar com várias católicas que levarão uma cópia da carta aberta que fizemos para o Papa e cartazes com as questões que defendemos: direito a decidir no aborto, direito dos homossexuais ao casamento e à adopção, uso de contracepção e laicidade do Estado", explica esta académica, por telefone, a partir de São Paulo, de onde virá o grupo.
A Igreja Católica na América Latina, e concretamente no Brasil, tem uma tradição de proximidade dos pobres, na linha do que parece ser o discurso deste novo Papa, ele mesmo filho de um bairro popular de Buenos Aires.
Mas enquanto uma figura lendária da Teologia da Libertação como Leonardo Boff acredita que Francisco pode, de facto, fazer diferença na igreja e no mundo (ver texto ao lado), Maria José Rosado acha que essa diferença será sobretudo no Vaticano: "Este Papa tem um estilo distinto, e há a expectativa de que ele saneie o Vaticano, tanto em relação à corrupção como à pedofilia. Tem demonstrado que vai actuar. Quantos aos aspectos doutrinais, no campo da moral sexual não acredito numa mudança."
Francisco já brincou com a hipótese de os padres virem a casar, mas não brinca com o casamento gay.
Do ponto de vista da Igreja Católica no mundo, a visita ao Brasil deverá ser um momento de clarificação quanto ao que é conservador e reformista no pensamento do seu líder máximo. Francisco chega hoje e só parte domingo, quase uma semana, no maior país da América Latina. Além da dimensão simbólica que a visita tem, politicamente, para o Brasil, pode também ser um ponto de viragem para os católicos.
A Time desta próxima semana antecipou-se, pondo Francisco na capa, com o título "O Papa do Povo". Caberá ao Papa comprovar de que forma, num momento em que o Brasil é também o exemplo de um país que continua a perder católicos para as igrejas protestantes, sobretudo neopentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus. Numa pesquisa ontem divulgada pelaFolha de S. Paulo, 57% dos brasileiros com mais de 16 anos são católicos, o valor mais baixo de sempre. Em 2007, eram 64%. Em 1994, 75%. Uma perda de quase 1% ao ano.
Sónia, a leitora de Nietzsche, é um exemplo do contrário: "Quanto mais estudava o calvinismo, mais via contradições. E nunca gostei do nome protestante. Protesto contra quê?" Converteu-se ao catolicismo há sete anos, com uma fé tal que se diz "apaixonada pelo Papa Bento com um amor que não acaba". Recusa-se a comparar Bento e Francisco, diz apenas que Bento era um intelectual e Francisco "é mais sorridente".
Enquanto falamos, chegam cinco peregrinos da Venezuela, que se ofereceram como voluntários. Fizeram 18 horas de autocarro até à fronteira, depois mais dez horas de avião, tudo pago por eles, entre família, amigos, paróquia. Estão a dormir em sacos-cama numa paróquia da periferia, como a grande maioria dos 350 mil peregrinos esperados para a Jornada Mundial da Juventude, bem longe dos cartões-postais do Rio.
Trabalho de voluntário quer dizer tudo, desde fazer cordões de segurança a dar informações aos peregrinos. E tudo isso porquê? "Por amor a Cristo", diz Gera, uma das duas raparigas. "Para viver uma experiência que mudará as nossas vidas", diz Jesus, o rapaz mais mestiço. "Uma marca que nunca se apagará."
Fonte: PUBLICO (Pt)
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