CATARINA GOMES (Texto), RUI GAUDÊNCIO (Fotografia) e VERA MOUTINHO (Vídeo, na Ilha de Santiago, Cabo Verde)
21/02/2016 - 00:16
Portugal deporta-os porque cometeram crimes ou por falta de documentos. Há pessoas que ficam “à deriva no aeroporto”. Como o caso do senhor expulso ainda com a pulseira de internamento em Psiquiatria no Hospital de Santa Maria. As autoridades cabo-verdianas falam em “violação dos direitos humanos”.
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No dia apontado para sair em liberdade condicional, a 20 de Março de 2015, Isolino Tavares Rocha foi deportado para Cabo Verde.
Na prisão, regras são regras, ele sabe, com tantos anos que leva atrás de grades — preso há sete, três condenações por tráfico de droga. Quando as portas da cela se fecham, às 19h00, não há nada a fazer. Não pode telefonar a ninguém, à família, à advogada, “não abrem nem para ir ao hospital”. Por isso, não protestou quando lhe disseram: “O SEF vem buscar-te às 4h30 da manhã. Tem as coisas prontas.” “Vou para Cabo Verde? “Eles é que decidem se ficas ou vais.”
Obedeceu. Arrumou o que tinha na cela, o que as regras deixam que tenha — pouco mais do que duas calças de ganga, dois calções, um casaco e dois pares de ténis — e pôs tudo dentro de um daqueles sacos pretos de pôr o lixo. Na cela não se pode ter malas, é outra regra. Não dormiu, esteve pronto nove horas e meia.
Foi no carro do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que soube que ia a caminho do aeroporto. Lá, de uma cabine de moedas tentou ligar à advogada, eram seis da manhã, não atendeu. Conseguiu apanhar o primo Orlando, que chegou a tempo de o ver, mas não de lhe ir buscar a mala a casa, como lhe tinha pedido. Isolino pediu ao menos que deixassem que o primo lhe entregasse o relógio, “para saber as horas”. “A tua família depois manda-te o relógio.” “Quando vou?” Não responderam. Daí a pouco: “Vais agora.” Ia para a ilha de São Vicente. “Mas eu sou de Santiago”, “lá tens voo de ligação”. “Meteram-me no avião e foram-se embora.” O passaporte cabo-verdiano, caducado na cadeia, foi entregue à tripulação.
Isolino entrou sozinho no avião, sentou-se no número que dizia no bilhete. Não sabia que horas eram, mas pediu, por favor, ao senhor do lado se lhe deixava ligar do seu telemóvel. Estava nervoso mas conseguiu explicar-se: “Eu estava preso, vou para Cabo Verde, não consegui falar com família, não consegui falar com advogada.” “Era uma pessoa simpática”, perguntou-lhe antes se o número para onde ia ligar era tarifário Moche, era, e ele deixou.
A advogada atendeu, dessa vez, eram 8h30, mas ficou confusa, porque sabia que ele era de Santiago e que nesse dia havia voo directo às 20h45. Fez entrar a providência cautelar às 8h58, para tentar suspender a ida, dois minutos antes da hora de início de funcionamento dos serviços dos tribunais. O voo VR 613 partiu às 9h. O tribunal não se chegou a pronunciar.
Isolino conseguiu avisar a irmã Vanilda que ia chegar a Cabo Verde quando já estava no país. Depois de todos os passageiros terem saído pela porta da frente, Isolino saiu pela traseira, saco de plástico de lixo com a roupa na mão.
A irmã Vanilda estava à espera, 15 anos mais velha. Isolino saiu de Cabo Verde com 18 anos, regressava com 34. A capital, a Praia, agora estava cheia de prédios e estradas de alcatrão que ele não conhecia, o caminho que o levava à aldeia onde nasceu já não era de terra batida, demora-se 30 minutos em vez de uma hora, na aldeia agora havia luz eléctrica o dia inteiro, já não era só à noite, das 19h às sete da manhã. Algumas coisas tinham mudado, outras nem tanto.
Quem visita esta parte do interior da ilha de Santiago como turista de certeza que descreveria a paisagem onde fica a aldeia de Isolino com adjectivo de brochura turística, como esplendorosa. A certa altura, na ascensão à serra, há um encontro que parece improvável entre um corvo e um macaco. A estrada, vê-se, é pouco percorrida por carros, há ervas secas a irromper do piso pouco cuidado.
Ali no cimo, para quem vai, fica a Loura, uma povoação que é uma rua ao comprido onde viverão umas 250 pessoas. Numa das casas térreas, pintada de amarelo, está Isolino, um homem entroncado. Está sentado num bojudo sofá de lugar único do qual ele parece fazer parte.
A Loura de onde Isolino Rocha saiu adolescente está rodeada de uma imensidão de montanhas e escarpas com misturas perfeitas de castanho e verde. Na prisão do Linhó (Sintra) ia ao ginásio todos os dias, para se manter em forma. Ali estava finalmente livre, podia ir correr. Foi o que tentou. “Só dois dias, não consegui mais. Tenho a cabeça muito cheia”, são os seus pensamentos que o imobilizam, que o prendem ao sofá no centro da sala da mãe.
Dali se levanta todos os dias, a custo, para fazer o que fazia antes de ir para Portugal ser calceteiro, com o tio José — cuidar de animais. Levanta-se às 6h e regressa às 10h30, é o tempo que lhe demora a dar de comer e mudar a palha à vaca e ao vitelo que são da mãe. Estas poucas horas de trabalho são a retribuição que ele sente que tem de lhe dar, por o ter acolhido de volta, assim, sem nada, sem mesmo nada.
A mãe, Teresa Tavares, ouve a conversa, está vestida de preto, não se sabe se porque está de luto por algum familiar, mas a cor condiz com a forma como fala daquele regresso “do único filho macho”. As outras quatro filhas nunca tiveram a oportunidade de sair de Cabo Verde, nem a Vanilda, que atendeu o telefone, nem a Onilda, nem a Milda, nem a Lurdes. Foi ele o único que experimentou emigrar.
Soube que o filho ia chegar quando já tinha chegado. “O meu filho veio com roupa dentro de um saco de plástico. Deportado como um cão”, diz pausadamente e em tom baixo. “Ia para uma vida melhor, mas a sorte não deixou.”
Jacinta Almeida, a sua companheira portuguesa de origem cabo-verdiana, está sentada junto a ele no braço do sofá de lugar único, do lado direito, para que se perceba que são como um, “se ele cair, caímos juntos”. Emigrada em Inglaterra, onde é “auxiliar médica”, teve de ir primeiro a Portugal buscar-lhe a bagagem. Veio a Cabo Verde também para se casar com ele, “uma cerimónia simples”, o suficiente para provar oficialmente que o quer com ela e com a filha de ambos, em Inglaterra, onde não tem que contar moedas como em Portugal.
Jaciara, uma menina de cinco anos, que anda aos pulos pela aldeia-rua, entra de repente na sala onde está o sofá com Isolino e a mãe, mas continua a saltitar, alheia ao peso da conversa de adultos — “foi mandado como um animal, para não dar tempo... Para não podermos fazer nada. Foi aqui deixado como um saco de batatas. Não se tratam assim pessoas”, diz Jacinta.
Jaciara nunca conheceu o pai em liberdade senão ali. Já lhe foi explicado que o pai, mesmo estando fora da cadeia, não pode ir com elas.
Com a expulsão de Portugal, Isolino passou a fazer parte da “Lista nacional de pessoas não admissíveis”. Durante oito anos não pode voltar a Portugal. A decisão inclui “os países de Schengen”, lê-se. Mas ele não sabe o que é isso de Schengen. É a Europa? “Posso ir para Inglaterra?” “Pode perguntar à minha advogada?”
A advogada Susana Alexandre não tem resposta para lhe dar. Sabe que Inglaterra não faz parte do espaço Schengen, mas não sabe se, tendo Isolino interdição no restante espaço europeu, o deixarão algum dia entrar naquele país.
Jacinta tinha esperança que os 22 dias que tirou de férias chegassem para se casarem, para tratar dos documentos. Mas em Cabo Verde pedem a Isolino um “atestado de residência” e uma declaração que comprove que nunca foi casado, que têm de ir de Portugal. O tempo não vai chegar.
Isolino ficará na Loura, à espera, sentado no sofá de couro, todos os dias a ir tratar da vaca e do vitelo, entre as 6h e as 10h30.
O advogado José Manuel Ramos, que apresentou queixa do caso de Isolino junto do Observatório dos Direitos Humanos (uma parceria de dez associações, como o SOS Racismo e a Associação Solidariedade Imigrante), diz que uma coisa é avaliar da legitimidade do “afastamento coercivo” — e o observatório considerou-o legítimo à luz da actual lei de estrangeiros, por Isolino ter “cometido actos criminosos e se encontrar irregular” — outra coisa é a forma como se fez a expulsão.
E aí este observatório conclui que “foi alvo de um tratamento que colocou em causa a sua dignidade. Foi enviado sem as condições mínimas de bem-estar, uma vez que não lhe foi possibilitado levar os pertences ou despedir-se da família ou amigos”.
“Foram buscá-lo pela calada da noite. Há horários, senão isto é o faroeste”, diz José Manuel Ramos. “Os tribunais abrem às 9h” e a legislação prevê que as libertações “sejam durante a manhã”. “Por que é que não se esperou pelo voo directo para a sua ilha de origem, que era nessa noite?”, pergunta Susana Alexandre. A advogada de Isolino diz que era para não dar tempo para a providência cautelar suspender o voo.
Isolino foi expulso em 2015 mas o seu processo de afastamento coercivo do território nacional tinha sido aberto ainda em 2004, altura em que o SEF o ouviu. O observatório conclui assim que saiu violado o seu “direito de defesa e de audiência”. “Há uma vida depois disso”, refere a advogada. Teve uma companheira, nasceu-lhe uma filha, ambas portuguesas. O SEF respondeu que “o cidadão não veio ao processo comunicar factos supervenientes com eventual relevância para o processo”.
É provável que ao ouvir a história de Isolino Tavares Rocha, condenado por tráfico de droga, reincidente — mesmo com o relatório do Observatório dos Direitos à mistura —, poucos se compadeçam com a sua situação, que se preocupem com o que será da sua vida: Conseguirá Isolino casar-se com Jacinta? Ir viver para Inglaterra com a mulher a filha?
A sua advogada já está habituada a esse encolher de ombros, chama-lhe “consciências adormecidas”. Ouve e sente o mesmo por parte da maioria dos que a rodeiam, da polícia, de advogados, de amigos, da família, de pessoas com quem fala. Isolino Tavares Rocha é um traficante de droga cabo-verdiano. Ponto final.
Há ligeiras variações, mas a ideia é sempre a mesma: “‘São cabo-verdianos, vão para o vosso país fazer porcaria.’ ‘Para criminosos, bastam os nossos.’ ‘Fizeste a cama, tens de te deitar’”, exemplifica. “Destes ninguém quer saber, mesmo que tenham cá filhos.” São os indefensáveis.
“Não são anjos”, diz Susana Alexandre. “Eles estão na cadeia, não se enganaram no caminho para a Igreja.” “Claro que têm o seu passado, mas têm de ver a pessoa diante deles. Para o SEF, a lei é para ser cumprida, não há equidade, não há casos concretos”, critica o advogado José Manuel Ramos.
A legislação portuguesa distingue entre as expulsões administrativas, que são da competência do director do SEF, e as judiciais, decididas pelos juizes, que muitas vezes surgem como penas acessórias ao cumprimento do tempo de prisão. José Manuel Ramos diz que os juízes conhecem o percurso dos reclusos, ouvem os técnicos de reinserção social, “o SEF apenas vê números e crimes”.
No caso de Isolino, o juiz de execução de penas concedeu-lhe “liberdade condicional” tendo em conta “o seu percurso prisional pautado por actividade laboral” e “sem qualquer sanção disciplinar”, concluindo: “Ainda há esperança de que possa reorganizar a sua vida de forma socialmente correcta.”
“Achava que tribunal era mais grande que SEF. Se tribunal não te condena a expulsão, é porque não és perigo para a sociedade”, critica José Constantino, condenado por tráfico de droga, expulso administrativamente para Cabo Verde em Outubro do ano passado, a mulher e os três filhos maiores avisados uma hora antes da partida. “O check in já fechou”, disseram-lhes. Não chegaram a tempo.
Susana Alexandre vai riscando da sua agenda de papel a lista de 30 clientes que tem neste momento à espera de expulsão. José Constantino foi o último. A alguns consegue impedir a expulsão, a outros não. E é sempre em cima do acontecimento.
“Teoricamente, têm 90 dias para impugnar a decisão de afastamento coercivo junto de tribunais administrativos, mas eles sabem lá.” Mesmo que o fizessem, a impugnação não tem efeitos suspensivos. Por isso, chega a extremos, a providências cautelares. “Cada caso é um filme”, diz José Manuel Ramos. “Já fui buscar dois ao aeroporto”, diz a advogada. Aos que foram para Cabo Verde perde-se-lhes o rasto. Ninguém quer saber o que lhes acontece a mais de três mil quilómetros de Portugal.
“Bem-vindo a casa”
“Bem-vindo a casa.” Chamavam-se assim os Gabinetes de Atendimento e Integração dos Deportados. O primeiro abriu em 2002, chegaram a ser quatro, pensados sobretudo para acolher deportados dos Estados Unidos, durante anos o principal país de deportação para Cabo Verde, Portugal surgia como o segundo.
Mas, de acordo com os números da Direcção de Estrangeiros e Fronteiras de Cabo Verde, de 2010 a 2014, chegaram a Cabo Verde 324 pessoas expulsas de Portugal, no mesmo período chegaram apenas 39 dos Estados Unidos. Durante este período, Portugal tornou-se assim o país que mais deporta para Cabo Verde, explica Nádia Marçal, responsável pelo dossier do “Retorno Involuntário” no Ministério das Comunidades de Cabo Verde. Desconhecem quantas são as expulsões decretadas pelos tribunais e quantas são administrativas e decididas pelo director do SEF.
O que acontece é que o Governo de Cabo Verde deixou de conseguir apoiar os deportados. Os gabinetes acabaram em 2012. Por falta de meios. Não há ninguém à espera. “Talvez essa informação não tenha chegado a Portugal. A algumas pessoas foi dito que teriam um assistente social à chegada. Quando vêem que não há ninguém, ficam revoltados”, diz Nádia Marçal.
Agora, o Ministério das Comunidades só intervém mesmo quando “há pessoas à deriva no aeroporto”. Como no caso “do senhor da pulseirinha”.
Foi assim que ficou conhecido no ministério. Era na pulseira plastificada que trazia no pulso que vinha parte da sua história, pelo menos a parte final da sua história, a sua última morada em Portugal: “Departamento de Psiquiatra, piso 3, extensão 55173.”
O “senhor da pulseirinha” tinha sido encontrado “a vaguear nas ruas, no Estoril, a 12 de Maio de 2014. Era sem-abrigo”.
O SEF levou-o para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde ficou internado um mês, “diagnóstico: episódio depressivo severo com sintomas psicóticos”, lê Nádia Marçal. No dia da alta, a 6 de Junho, o SEF foi buscá-lo, três dias depois, a 9 de Junho, foi enviado de avião para Cabo Verde, conta.
“Foi expulso com a roupa do corpo, psicologicamente perturbado e sob efeito da medicação”, estando apenas acompanhado “de relatório clínico, guia de tratamento, três receitas digitais para aviar e uma saqueta com quatro medicamentos”. Tinha sido servente. Estava há 37 anos em Portugal, para onde tinha ido em criança.
Passou a noite no aeroporto da Praia. A polícia ligou para o Ministério das Comunidades na manhã de 10 de Junho. Tinham perguntado se tinha família, dizia que tinha nascido em São Tomé e Príncipe. “Não sabia o nome de familiares, nem lugares em Cabo Verde. Estava descompensado. Levámos o senhor para o hospital.” Passou lá um mês, mas fugiu.
“Foi encontrado na rua de forma acidental um mês depois, a 6 de Julho, por uma assistente social do hospital, que o reconheceu. Estava com a mesma roupa. Nunca mais soubemos nada do senhor.”
É a ministra das Comunidades de Cabo Verde, Fernanda Fernandes, quem primeiro fala “do senhor que veio com a pulseirinha. Perturbado psiquicamente. Puseram-no no avião e enviaram-no. Estamos a lidar com pessoas e pessoas são pessoas”. O que está em causa são “situações extremamente desumanas. É enviar o problema para o outro”.
“Respeitamos a soberania dos Estados, há situações de criminalidade e de irregularidade documental”, continua a ministra, mas têm-lhes chegado ao conhecimento casos de Portugal em que expulsam pessoas com nacionalidade cabo-verdiana mas que nasceram em Angola, São Tomé e Príncipe. “Nunca aqui estiveram. Como é que vai ser a sua reinserção?” “A deportação acaba por ser uma condenação para a vida.”
“O senhor da pulseirinha” não foi o único caso de uma pessoa que vivia na rua em Portugal e foi deportada para Cabo Verde, conta Nádia Marçal. Em Dezembro de 2014, chegou-lhes o caso de outro sem-abrigo, mas esse nunca tinha estado sequer em Cabo Verde. Também tinha nascido em São Tomé, de onde foi para Lisboa com os pais em criança.”
“Falámos ao telefone com a mãe do senhor, em Portugal. Estava muito aflita, porque ele não tinha qualquer contacto em Cabo Verde. Era um senhor que tinha sido preso em 1996, solto 19 anos depois, vivia na rua. Mandaram-no para cá, porque os pais eram cabo-verdianos. Era indocumentado.”
O máximo que o Ministério das Comunidades conseguiu foi pagar-lhe uma pensão três meses e alimentação durante dois. Também não souberam mais nada deste senhor.
Todos os casos mencionados neste artigo foram mandados com antecedência para que o SEF se pudesse pronunciar. O director nacional adjunto do SEF, Carlos Patrício, diz que não comenta casos particulares. Desconhece o caso do “senhor da pulseirinha”, lembra-se apenas de um caso de expulsão administrativa de um sem-abrigo, mas não tinha esses contornos. “Era uma situação humanitária, não pode estar cá sem família, sem assistência, tem de voltar para Cabo Verde. Supostamente, tinha lá família.”
Nádia Marçal diz que está em causa “uma questão humanitária” e que são situações de “violação dos direitos humanos”. Na forma como se deporta. Exemplos: muitas vezes as pessoas não vão até à ilha de destino final — “há nove ilhas habitadas, quatro aeroportos internacionais” — e é Cabo Verde quem tem, por vezes, de pagar as ligações. E é frequente não serem notificados das expulsões. “Há casos em que somos informados no próprio dia ou depois de a pessoa ter chegado, às vezes três dias depois.”
O responsável do SEF admite que “por vezes não há voos para as ilhas de destino, quando existem não são na data certa. O que pode acontecer é haver ligações internas” e que a notificação é feita com “uma antecedência razoável. Não é certamente quando a pessoa já está no avião”, embora admita que possa haver “casos pontuais em que há falhas”.
Nádia Marçal não sabe nada acerca dos percursos destas pessoas, além do que escolhem contar, mas sabe que quanto mais informação receberem de Portugal melhores hipóteses têm de se conseguir integrar na sociedade cabo-verdiana: ajuda ter referências dos familiares antes de chegarem, para os poderem localizar, saber há quanto tempo estão emigrados em Portugal, que qualificações e experiências profissionais tiveram, dar-lhes condições para trazerem certificados da escola — “algo que lhes permita ter uma vida cá”.
Portugal sabe, tem essa experiência com os deportados nos Açores, nota. Quando criaram os gabinetes, foram inspirar-se na experiência do arquipélago português, que foram visitar. “O problema é partilhado mas nós não temos os mesmos meios. Cá não temos casas de acolhimento. Talvez quando estamos a lidar com os nossos a tendência é sermos mais sensíveis do que com os estrangeiros”, admite.
Escreveram-se dezenas de notícias sobre os deportados portugueses nos Açores, foi feito um documentário (Deportado), uma peça de teatro (I don’t belong here). Desde 1987 que o arquipélago português recebeu 1292 deportados. Sobretudo dos Estados Unidos.
Em 2014 chegaram a Portugal vindos daquele país 49 portugueses, 12 eram originários dos Açores. A maioria (28) tinha antecedentes criminais por crimes graves como "assalto, roubo, violência doméstica e sexual", quatro por tráfico, apenas 11 foram mandados embora por permanência ilegal, refere o Relatório Nacional de Segurança Interna de 2014.
O director regional das Comunidades do Governo Regional dos Açores, Paulo Teve, diz que as autoridades americanas notificam que vai haver uma expulsão “pelo menos duas semanas antes”. As associações de emigrantes portugueses vão então aos centros de detenção, em território americano, fazer uma “avaliação psicossocial” antes de as pessoas virem. Aos que não têm família, o governo regional dá alojamento, comida, apoios à renda, e tenta ajudar à sua integração profissional, com o apoio de duas associações locais, cujos técnicos vão ao aeroporto quando alguém pede ajuda, explica.
No caso das deportações de Portugal para Cabo Verde, o director nacional adjunto do SEF, Carlos Patrício, explica que é a permanência irregular que justifica as expulsões administrativas, mas que “provavelmente mais de metade das situações de irregularidade serão de pessoas que cometeram crimes. No caso de Cabo Verde, sobretudo tráfico, um crime que causa alarme social”.
O SEF respondeu ao PÚBLICO que não tem dados tratados sobre os perfil das pessoas expulsas de Portugal. O único estudo que aborda o perfil dos deportados de Portugal para Cabo Verde é da Organização Internacional para as Migrações e tem números de 2002 a 2012. Revela que, no caso de Portugal, no grosso das situações “desconhece-se os motivos da deportação”. Mas que a indocumentação justifica mais expulsões do que o tráfico de droga.
Carlos Patrício sublinha que “o SEF tem de cumprir a lei, da forma mais humana e digna que conseguir”. Mas, “ou as pessoas se podem regularizar ou, se não podem, têm de ser afastadas. Não queremos é pessoas que fiquem num limbo, numa espécie de twilight zone. A pior coisa que pode acontecer é ficarem irregulares, sujeitos a serem vítimas de chantagens, pressões e exploração”.
Duas carteiras
“Eu não sou português, não sou estrangeiro, não sou cabo-verdiano, eu não sou ninguém.” Daniel Sousa Varela está preso há dois anos na prisão de Setúbal por furto, roubou uma carteira. Nasceu em Setúbal, em 1981. Disseram-lhe que “era o procedimento normal”, abrirem-lhe um processo de afastamento coercivo do território nacional. Significa que o podem mandar para a sua “terra”.
Quantas ilhas tem Cabo Verde? “Sei lá, umas dez ou 12, acho que são mais de 12 [tem dez, nove habitadas]. De que ilha é a sua mãe? Acho que é da Praia [nome da capital de Cabo Verde, que fica na ilha de Santiago]. O que sabe de Cabo Verde? “Não sei nada, é só as conversas que ouço. Sei que lá não é fácil. As pessoas vivem mais à base da agricultura, das pescas, que são pastores.”
A mãe de Daniel veio de Cabo Verde para Portugal com seis anos, ainda o país africano, descoberto pelos portugueses no século XV, era colónia portuguesa. Daniel conta que Maria Rosa, que agora já é portuguesa e que o criou a ele e ao irmão sozinha, passou mal, “não lhe dávamos vida fácil, faltávamos às aulas”. Tem o nome dela em letras garrafais envolvido numa farfalhuda rosa tatuada no braço.
Com 14 anos foi parar, com o irmão, a um centro educativo na Guarda, bem longe de Setúbal. “Lá amadureci. Foi bom.” Foi lá que lhe resolveram o problema do bilhete de identidade português, era menos um problema com que a mãe tinha de se preocupar.
Mas houve um dia, foi em 2008, trabalhava na Portucel, em que Daniel perdeu a carteira com o bilhete de identidade lá dentro. Era preta, da Pull&Bear. São daquelas coisas que acontecem a toda a gente. “Nem tinha dinheiro, nem nada, só as coisas normais que uma pessoa tem dentro da carteira, cartão do utente, cartão de contribuinte.” Deve ter ficado no café Picareta, onde ele passava todos os dias. Nunca ninguém a encontrou. Foi dar baixa na polícia. E foi pedir um novo Bilhete de Identidade (BI).
Na Loja do Cidadão recolheram-lhe as impressões digitais, tirou a fotografia. Mas quando lá voltou para ir buscar o novo BI, disseram-lhe que nunca tinha sido português. “A sua nacionalidade não consta em sistema.” Ele mostrou-lhes a fotocópia do BI português. A senhora olhou para ele e a primeira coisa que disse foi “se teve Bilhete de Identidade é porque era falso”. “Tiraram-me do sério. Expliquei-lhes que “nem tinha sido eu a tirá-lo, que tinha 14 anos, estava num centro educativo”. “A sua nacionalidade não consta em sistema.” A vida dele mudou desde esse dia.
Estava neste imbróglio quando a Portucel começou a levar homens para ir trabalhar em Inglaterra. Mas para ir “só com o documento original”. Tentou noutra conservatória, talvez encontrasse alguém mais razoável, às vezes depende de quem apanhamos à frente. Ali conseguiu um papel a dizer que estava à espera do BI. Mas teve de sair do emprego por falta de documentos. Desde então não conseguiu mais do que biscates, servente de pedreiro, pintura.
“Se me faltava um pacote de leite, de fraldas, dinheiro para pagar a renda, a luz...”, conta Susana Santos, a companheira portuguesa de 29 anos, tinha de sair tudo do seu ordenado, os 618 euros que ganha numa fábrica que faz interiores para Land Rovers e Jaguares, e Daniel sentia-se mal, “dizia-me ‘tu é que és o homem da casa’”.
É dessa altura o seu primeiro furto. Pena suspensa. Depois teve pena suspensa por tráfico de droga. “Tivemos grandes discussões, eu e a Susana.” Voltou a roubar, uma carteira, é por isso que agora está na cadeia. “Eu não o apoio mas não o condeno, porque sei o porquê. Sem documentos não consegue trabalho.”
“Desde que perdi a carteira, a minha vida descambou. Fiz tudo para ter os documentos.” Mandaram-no ir à embaixada de Cabo Verde pedir o registo criminal. “Foi dado como desconhecido em Cabo Verde”, um sorriso, “então se ele nunca lá esteve”, diz Susana. Na junta de freguesia, disseram-lhe que era cidadão português e podia votar com o seu cartão de eleitor.
Decidiu voltar a pedir a nacionalidade. E agora veio indeferida, “por crime de roubo”. A lei portuguesa prevê que está impedido de pedir a nacionalidade portuguesa quem tenha “prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a três anos”. E está impedido de ter autorização de residência quem tenha cometido um crime com pena de prisão superior a um ano.
“Empurraram-me para este lado da minha vida. Estou preso, não culpabilizo ninguém. Errei, estou a pagar o meu crime. Agora, em vez de tentarem ajudar-me, o mais fácil foi contactarem o SEF e instaurarem-me um processo por estar irregular. É mais fácil agarrarem num gajo e mandarem para Cabo Verde do que ajudarem-no. Não quero nada do Estado, não quero dinheiro, só quero o meu BI.”
Dizem-lhe para tratar do passaporte cabo-verdiano. “Não faço nada do que eles dizem, isso é facilitar-lhes a vida, a expulsão.” Para o SEF, ele é “um indocumentado”.
Já pensou em casar com a Susana, mas não conseguem fazer isso porque ele não tem documentos. Quando entrou na prisão, pediu para estudar, tem o 6.º ano, mas foi recusado por não ter documentos. Pediu muito para trabalhar, faz faxina. Quer muito que deixemos esta nota: “Queria agradecer à senhora directora do Estabelecimento Prisional de Setúbal por me deixar trabalhar.”
Uma das coisas que mais o irritam é que nos ofícios do tribunal é sempre Daniel Soares Varela, “titular do bilhete de identidade 14475140”, o que acusaram de ser falso. “Para o tribunal, sou português. Para ser alguém na vida, já não sou.”
A lei de estrangeiros de 2007 previa, no artigo 135, que não podiam ser expulsos de Portugal os cá nascidos, quem aqui vivesse desde antes dos dez anos e aqui residisse e quem tivesse “a seu cargo filhos menores de nacionalidade portuguesa ou estrangeira, a residir em Portugal, sobre os quais exerçam efectivamente responsabilidades parentais e a quem assegurem o sustento e a educação”. A lei mudou em 2012, por iniciativa do Governo de coligação PSD/CDS.
Agora, todos estes limites à expulsão podem ser ignorados, caso esteja em causa “a segurança nacional ou a ordem pública”. A advogada Susana Alexandre chama à expressão “um enorme buraco negro. O entendimento actual do SEF é o de que qualquer pessoa que foi condenada atenta contra a ordem pública”.
Esta e outras mudanças que agora fazem parte da lei de estrangeiros 29/2012, cuja polémica esteve sobretudo centrada na criação dos chamados vistos gold, foram apresentadas no Parlamento pelo então ministro da Administração Interna, Miguel Macedo. Ao PÚBLICO, diz agora que desconhece “que aplicação teve a lei em concreto”, relembrando que a introdução dos limites à inexpulsabilidade “decorreu de questões suscitadas pelo SEF. Algumas propostas foram aceites, outras não.”
O ex-governante nota, no entanto, que, para serem expulsos pelo SEF, “têm de estar em situação irregular”, havendo um processo administrativo que concluiu “que a pessoa não tem condições para se legalizar”. “É preciso sublinhar que não são portugueses” e que a anterior legislação já previa que perdia direito a autorização de residência quem tivesse cometido crimes. A lei foi aprovada com os votos a favor do PS e os votos contra do PCP e do Bloco de Esquerda.
A presidente da Associação Luso-Cabo-Verdiana de Sintra, Rosa Moniz, que teve um gabinete de apoio a reclusos, diz que “a lei actual veio facilitar muito as expulsões”. “A fragilidade está em não terem capacidade de resposta ao SEF. Às vezes, as situações podiam reverter-se se tivessem advogado. O advogado oficioso não faz nada.” Assim, tudo “depende da humanidade da pessoa do SEF que pega no processo”.
O director nacional adjunto do SEF diz que “há sempre uma ponderação”, mas que as excepções à expulsão “permitiam situações limite insustentáveis, em que nascidos em Portugal podiam ter cometido crimes gravíssimos contra a segurança interna e não podiam ser expulsos”. No caso de expulsos com filhos portugueses, nota que “há famílias desestruturadas, situações de violência doméstica”. A unidade familiar não é um princípio absoluto, sublinha.
“As ordens de expulsão falam dos seus antecedentes criminais e três linhas a dizer que não exercem o poder paternal”, conta Susana Alexandre. “Parece óbvio que não pode ser levado literalmente, eles estão na cadeia.”
“Até 2012, havia boa vontade.” A advogada diz que “enviava para o SEF certidões de nascimento dos filhos, comprovativos de visitas aos pais todos os domingos. Cheguei a mandar poemas e desenhos do Dia do Pai, a provar ligação. Agora isso já não chega. Deixou de haver inexpulsáveis”. Como Daniel seria, ao abrigo da lei anterior.
“Vai-te ajudar ser punido duas vezes? Se é para me mandarem para Cabo Verde, mais vale condenarem-me a mais dez anos de prisão. Ao menos fico ao pé da minha família.”
O recluso tem direito a duas visitas por semana. Os domingos são dias em que verdadeiramente não se pode falar de nada importante, de medos e angústias, é o dia de irem as filhas Maria, de três anos, e Bruna, de oito. É o dia de mãe e filhas se levantarem por volta das seis da manhã para conseguirem estar lá às 7h30 e apanharem uma mesa, que é sempre a do canto, para o poderem ver uma hora, a começar às 9h45.
Vão comendo o bolo de iogurte fatiado feito de véspera. Há umas 40 pessoas na sala, para se ouvirem acabam por falar aos gritos. Daniel pergunta-lhes como correu a escola, que músicas é que a Maria já sabe cantar, o Patinho, todas as da Violeta, ralha à Bruna, às vezes aplica-lhe castigos, “não vês mais televisão no quarto”. “A Bruna está a passar por uma fase difícil”, explica. É o dia de pai e mãe agirem como se estivesse tudo bem.
Para falarem de coisas sérias, é à quinta, 15h45, vai só Susana, e aí podem falar do que sentem. Ela chora, às vezes brinca, diz que vão todos para Cabo Verde, como aquelas pessoas que vão lá de férias. “É a mesma coisa que pegarem em mim e mandarem-me para França ou Inglaterra. Não é o meu país. Não tem lógica. Não é justo”, diz Susana.
Daniel tinha direito a uma saída precária para ir a casa em Janeiro, não lha deram por causa do processo de afastamento coercivo, que ainda não tem decisão de ordem de expulsão. A filha mais velha pergunta muitas vezes: “Qual é o dia em que o pai vem? Mostra no calendário, mãe.”
Na cadeia, aos estrangeiros com processo de afastamento coercivo do território nacional, acontece esta coisa que parece estranha, contranatura para um recluso português — vive-se com “medo da soltura”, do fim da pena, ou do meio da pena, porque podem ter “condicional”, liberdade significa serem livres em Cabo Verde. “Muitos recorrem, muitos têm sorte de ficar cá, outros não tiveram tanta sorte.” Faz dois terços da pena em Março, Daniel, 27 anos, pode sair em liberdade condicional.
“Se eu for para Cabo Verde, digam-me lá o que eu que vou fazer? Se for é para ser sem-abrigo. Então se cá eu não consigo trabalho. Muita gente foge de lá para procurar oportunidades cá.” A cadeia está cheia deles. Às vezes, Daniel pergunta-se porque é que há tantos cabo-verdianos presos.
Quase um quinto dos reclusos nas prisões portuguesas são estrangeiros (17,3%), a principal nacionalidade (31%) é a cabo-verdiana, quando os estrangeiros legalizados representavam em 2014 apenas cerca de 3,9% da população residente e a comunidade cabo-verdiana (legalizada) 0,4%. Olhando assim para os números, parece que é justificada a ideia de que a insegurança está associada à vinda de estrangeiros, a chamada “crimigração”. Jorge Malheiros, investigador do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa, remete para um estudo de 2010 que conclui que, em Portugal, os estrangeiros não cometem mais crimes violentos (homicídio, roubo, ofensas à integridade física e violação) do que os portugueses em geral.
No seu estudo “Os cidadãos estrangeiros nas prisões portuguesas: Sobrerrepresentação ou ilusão”, avança com algumas possíveis explicações para o facto de haver tantos estrangeiros nas prisões, nomeadamente cabo-verdianos: ausência de visto de residência, maior dificuldade em obter uma boa defesa, menor conhecimento da lei portuguesa, factores que tornam os imigrantes muito vulneráveis quando conduzidos a tribunal, potenciando, dessa forma, a detenção.
É neste contexto que Jorge Malheiros se habituou a ouvir o já costumeiro argumento, “pois, mas os portugueses quando emigram são ordeiros”. É “o mito do bom emigrante português”. Que também não é verdadeiro. “Se for às prisões luxemburguesas, também há uma sobrerrepresentação de portugueses.”
“Claro que há uma componente de responsabilidade individual”, mas talvez a principal razão para haver tantos estrangeiros nas prisões radique “em situações de exclusão social”. Cabo-verdianos em Portugal, portugueses no Luxemburgo.
Embora os deportados portugueses vindos dos Estados Unidos tenham recebido maior atenção mediática, graças ao caso açoriano, o maior número de deportados portugueses veio, em 2014, primeiro do Canadá (160) e de um dos principais destinos actuais da emigração portuguesa, o Reino Unido, de onde foram expulsos 72 portugueses, refere o Relatório Anual de Segurança Interna desse ano. Há 1658 portugueses presos em todo o mundo.
Tal como Portugal é, ao mesmo tempo, um país de emigrantes e que acolhe imigrantes, também é um país que deporta e recebe deportados. Mas deporta mais estrangeiros do que recebe deportados portugueses: em 2014 recebeu 302 deportados de outros países e expulsou 402 estrangeiros (263 foram expulsões administrativas).
Segundo os números do SEF, Portugal está, em termos gerais, a deportar cada vez menos, a par com o decréscimo do número de imigrantes a viver no país. O Brasil, a principal comunidade estrangeira a viver no país, mantém-se de longe como primeiro destino de expulsão desde há dez anos, a decrescer; Cabo Verde, o segundo.
Mas 2010 marca uma viragem no caso do arquipélago africano, nesse ano, o SEF passa a expulsar mais do que os tribunais. De 2010 a 2014, o SEF expulsou administrativamente 240 pessoas para o arquipélago, quando de 2005 a 2009 tinha expulsado apenas 60. Passa-se de uma média de 12 expulsões por ano para o quádruplo, 48.
Os invisíveis
Apesar de serem cada vez mais, em Cabo Verde ninguém fala dos deportados de Portugal. Nem na rua, nem em jornais, nem em debates políticos. É como se fossem invisíveis. Ao contrário dos deportados vindos dos Estados Unidos. Desses não há quem não tenha ouvido falar. Mal.
“Todos, farinha do mesmo saco.” Foi das primeiras frases que Orlando Barros, deportado dos Estados Unidos, aprendeu em português, ele que continua a exprimir-se em inglês. Eles são supostamente a origem de um fenómeno de criminalidade que em Cabo Verde passou, sintomaticamente, a ser designado pela palavra inglesa “thugs”, ou, em português, “bandidos”, traduz Orlando.
A culpa da violência, dos crimes, da chegada dos gangs é atribuída aos thugs e os thugs são, em teoria, os infames deportados dos Estados Unidos. “Mesmo que os deportados de Portugal cometam crimes, a culpa é sempre nossa. Nós destoamos”, diz Orlando, que nos Estados Unidos esteve preso por assaltar bancos e hoje tira parte dos seus rendimentos de um castelo insuflável azul com princesas da Disney, mandado vir dos Estados Unidos para as crianças locais, um “pula-pula”.
Deve-o ao empurrão de “Donana”, o nome da fundação de inspiração católica que vai buscar o título à forma como é conhecida a sua presidente, “Dona Ana” Hopffer de Almada, professora universitária de Biologia, benemérita nas horas vagas.
Na sede da fundação destaca-se um quadrinho de bordado a ponto cruz “Amar é fazer o bem!... Sem olhar a quem” e uma parede repleta de anjos, mais de mil, dados por uma senhora muito pia, vindos de todas as proveniências da emigração cabo-verdiana, há um anjinho em forma de estátua da liberdade, God bless America, um querubim com uma placa “Em Fátima rezei por ti”. “Donana loves her angels”, comenta Orlando, perante a galeria.
Ali o termo “deportado” está proibido. “Preferimos falar de retornados.” Até agora, a fundação só ajudou pessoas dos Estados Unidos, como Orlando. “Nunca nenhum retornado de Portugal veio ter connosco, mas são bem-vindos. Aceitamos qualquer retornado.” Ela não conhece nenhum. Nem sabia que existiam.
É quase como se os deportados de Portugal fossem uma lenda. “Eu já ouvi falar deles”, diz Orlando. Qual é a imagem dos deportados de Portugal? “Qual imagem, eles não têm imagem, eles não existem”, responde. “Toda a gente sabe quem nós somos, os de Portugal ninguém nota. Eles podem esconder-se, falam português, vestem-se como os de cá, nós não nos podemos esconder.”
“É mais fácil passar desapercebido na cidade. Na aldeia ou na vila, é pior.” José Carvalho de Pina está hoje em negócios na aldeia da sua infância, onde guardava cabras, o Mangue. No meio do campo, abranda o carro para falar com um conhecido de criança vindo do campo, terá a sua idade. “És o filho do Toni.” “Tens boa memória”, responde José a sorrir, agradado por ainda ser recordado. Mas o diálogo que seguia fluido empanca: “Tu estás em Cabo Verde ou estás fora?” — pergunta normal para um país que tem mais população emigrada do que a viver em Cabo Verde — “Eu estava a viajar, mas já vim há três anos.” E José Carvalho de Pina interrompe ali a conversa e despede-se.
Se ele ainda vivesse no Mangue, talvez fosse mais difícil esconder que é deportado. Ele vive na capital. Mas quem o conhece, vizinhos, família, sabe. Os comentários acerca deles, de regressos misteriosos como o dele, acontecem na sua ausência.
“A família tenta esconder. A minha irmã quando me acusam defende-me.” Os que o conhecem ouviram dizer que esteve preso, no caso dele foram muitos anos, não há como esconder e, claro, as pessoas perguntam-se: o que é que este fez?
No caso de José Carvalho de Pina, é uma longa história. “Houve uma situação de envolvência com negócios de amigos. Pediram-me um favor e eu fiz”, maneira enrolada de explicar como, da primeira vez que esteve preso, tinha 21 anos, tinha terminado o liceu, vinha com ideias de ir para a faculdade, se viu envolvido num episódio de tráfico de droga em Faro em que acabou por se entregar à polícia. Apanhou seis anos e meio.
“Da prisão ou sais melhor, ou sais pior. Eu não sabia nada. Aprendi tudo lá dentro. Havia lá um português de 17 anos que roubava muito, era o meu melhor amigo lá dentro, ensinou-me muito.” Por isso, na segunda vez, foi de forma consciente e voluntária que se envolveu em tráfico, com nova prisão, fuga da cadeia com grades serradas com uma lâmina-serra como a que o pai carpinteiro usava, com direito a notícia de jornal, cinco anos fugido, apanhado em França. Prisão de novo, cinco anos, com direito a saída precária em 2010.
E, dessa vez, “Eu regressei a correr à prisão, à hora exacta.” A técnica disse-lhe “achava que não ias voltar”. Três dias depois do pontual regresso, recebeu a ordem de expulsão para Cabo Verde. “Senti-me revoltado.” Ainda saiu em liberdade, tentou legalizar-se, mas nunca conseguiu.
“Uma coisa é castigo, outra é vingança. Joguei, perdi, tem de pagar e eu paguei caro. Não me sinto em dívida com a sociedade. Por que razão tenho de ser expulso?”
“Todo o ser humano é um criminoso em potência”, leu num livro da biblioteca da prisão. Decorou a frase. “Não me vejo como um criminoso, tomei uma atitude errada e paguei. A minha mãe sempre me disse: ‘Paga-se com a consciência.’ Eu não nasci torto, eu nasci direito.”
Nos dois anos que leva de Cabo Verde, depois de 17 em Portugal, conseguiu reorganizar-se. Tem a companheira Amália, e um filho bebé que hoje está febril e que ele quer muito ter ao colo para ficar na fotografia. Faz negócios entre ilhas, trocando o que uma tem com o que a outra não tem. Leva verduras, cebolas, batatas de Santiago para o Sal, e traz de volta búzios para servir de entrada nos restaurantes da Praia.
José, camisa de risquinhas impecavelmente engomada, ténis Ralph Lauren, calça de sarja, conta muitos, muitos pormenores sobre o seu negócio, demasiados, e depois se percebe que não está apenas a falar connosco. A minúcia do relato, o bebé Lucas ao colo, fazem parte de uma história que ele quer contar, à distância, à mãe que vive no Algarve e que teve dois ataques cardíacos quando ele estava atrás das grades, que vivia intranquila com as visitas do filho foragido, que faz hemodiálise dia sim, dia não.
Através de nós quer dizer que ele, o filho mais novo de 11, o único “cadastrola”, agora faz tudo bem. Constança, a mãe de José, tem 86 anos. A ordem de expulsão impede-o de voltar a Portugal durante sete anos. “Faltam quatro.”
Mas essa é uma contagem interior que partilha com muito poucos. O que ele e os que vieram expulsos de Portugal querem é passar despercebidos. “Os de Portugal vêm e calam-se. É tabu. Conheço um deportado que tinha tanta vergonha que não foi ter com a mãe, andou uns dias na rua e teve de se render e teve de ir ter com a mãe”, “tenho um outro amigo que não sai de casa”.
Por mais que tentem camuflar-se, muitos sabem quem eles são. Nota-se. São os que chegam de mãos a abanar. “Por que razão chega uma pessoa de um voo internacional sozinha e sem bagagem sem ser um saco de mão? Se chegas sem nada, é porque és deportado.” José voltou com 200 euros.
É verdade que há a vergonha da expulsão por terem cometido crimes, mas talvez mais pesado do que isso num país como Cabo Verde — meio milhão vive dentro, estima-se que um milhão viva fora — é a vergonha do fracasso. Eles são o sonho da emigração gorado, a viagem ao contrário, eles foram devolvidos sem nada para mostrar pela tentativa.
De quem saiu e regressa espera-se que tenha presentes e coisas para dar, como quando ele era pequeno e “os tios a viver na Europa lhe traziam brinquedos. A pessoa sente-se perseguida pelo sonho do emigrante”.
Nelson e Obikwelu
Quando aceita falar na escuridão do seu café na cidade da Praia, é quase como se António Lopes tivesse cometido um crime mais grave do que o tráfico de droga. Ele voltou por estar ilegal. O seu crime foi não ter conseguido.
Entrou em Portugal com visto de trabalho em 2003, foi expulso a 6 de Dezembro de 2011. Nunca conseguiu ter documentos. Autorização de residência dão ao estrangeiro que dê provas de ter “meios de subsistência” — uma retribuição mínima mensal que ronda os 500 euros com descontos para a segurança social — e ele o máximo que conseguiu “foi biscates nas obras de uma, duas semanas” e a venda de sucata, fogões e frigoríficos velhos.
Foi por isso que, quando numa rusga do SEF, o apanharam em Algueirão (Sintra) e o levaram para o aeroporto da Portela com voo directo para a Praia, sentiu um alívio quase inconfessável. Era um álibi. Não tinha sido ele a desistir, tinham-no obrigado. “Fui directo para a minha casa.”
Chegou a tempo de ver o pai morrer. “Se calhar, estava à espera de mim.” E com a sua morte acabou por herdar pouco, mas o suficiente para montar o seu “café Lapa”, um espaço de paredes toscas e telhado de zinco. “Desculpe de estar tudo velho”, diz sobre o seu café novo.
“Lá já encontrei a crise. Pelo menos cá estou ao pé da família. Tenho oito filhos em Cabo Verde. Pensei que lá estava melhor. Não quero voltar. Talvez se fosse mais novo.” Mas isso é António, 50 anos.
Assomada é a segunda cidade de Santiago, da Praia demora-se a lá chegar uma hora, numa ilha que leva duas horas a percorrer de uma ponta à outra. É início da tarde de uma quinta-feira e há dezenas de jovens na rua com ar desocupado.
Numa esquina há um jovem que destoa dos outros, falta-lhe um dente da frente, mas não é por isso, é pela postura, parece que está pronto a ir em direcção a algum sítio. Tem vestido uns calções pretos e brancos debruados a amarelo, ténis da Reebok. Está trajado para correr, como se estivesse junto a uma meta, pronto a partir para uma prova de atletismo que nunca mais começa.
Chamam-lhe Obikwelu, é a alcunha que trouxe de Portugal e que quase apagou o seu nome de baptismo, Nelson Lopes Tavares.
Obikwelu foi deportado, em 2010, mas é difícil que acreditem que não foi “por ser bandido. Eu não sou traficante, eu sempre trabalhei”. Foi para Portugal com 17 anos, viver com o tio, “trabalhava até ao sábado, ao domingo ia à missa”.
O problema é que em Portugal ele nunca foi Nelson, só foi Obikwelu, que era como o chamavam, por ter a mania das corridas. Francis Obikwelu é um célebre atleta medalhado nascido na Nigéria naturalizado português.
A condição imposta pela senhora amiga que aceitou levá-lo para Portugal, em nome do filho Edmilson, foi não poder levar consigo nenhum documento que pudesse contrariar a história de que ele era Edmilson. “Nem passaporte cabo-verdiano. Não levei nada. Não podia levar nada.”
Sempre que alguém saía das obras, ele ficava a substituí-la, descontou para a segurança social “de um tal João, de um tal Edmilson”, como aquele que ele era suposto ser, e trabalhou em obras em que não se importavam que ele não fosse ninguém.
Arranjou trabalho no Algarve e conheceu Telma, viviam juntos há sete anos. Tudo certinho, a renda sempre em dia, recibos no nome dela. Era um Dia dos Namorados e foram passear a Faro. “Apanharam-me. Tinha de ser recambiado.”
“Disseram-me que eu nunca trabalhei em Portugal.” Como, se ele ajudou a construir o El Corte Inglés, a Gare do Oriente, às vezes jornadas de 19 horas de trabalho. “Os patrões conheciam-me e gostavam de mim. Prenderam-me numa segunda, na sexta estava de volta a Cabo Verde.”
“Os meus pais ficaram abalados. Somos dez filhos, estão todos aqui. Fui eu o único que saí, e não consegui. Havia meses que conseguia mandar 50 a 80 euros por mês, umas migalhas, mas ajudava.”
Mas ele e a namorada portuguesa tinham um plano. Ele veio numa semana, a Telma veio na semana a seguir. Casaram-se por procuração. Estava convencido de que bastaria para ele poder regressar, afinal, ele agora era casado com uma portuguesa.
Era uma questão de tempo. Obikwelu não tinha fracassado. Não era como os outros “recambiados”. Amigos, familiares, pediam-lhe o que tinha trazido, os ténis Puma, os Nike, os Reebok. “Dei ténis, dei roupa, dei tudo, eu ia voltar.” Como é que ele podia negar? Ele ia voltar para Portugal, para a Europa, lá ia poder comprar outros Puma, outros Nike, outros Reebok, não era como eles, que iam ficar sempre em Cabo Verde. “Quando vi que não dava para voltar... Fiquei sem nada.”
Para continuar a correr em Cabo Verde, um amigo português com quem fala por messenger, o Tiago, mandou-lhe pelo correio os únicos ténis que tem agora, os Reebok pretos e verdes que traz calçados. Treina quatro horas por dia, já tirou passaporte cabo-verdiano no seu nome verdadeiro. Nelson Lopes Tavares está pronto para voltar.
Fonte: http://www.publico.pt/
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