NUNO FOX
Portugal é um dos países onde mais se bebe a nível mundial. O número de alcoólicos em tratamento tem vindo a aumentar nos últimos anos e atingiu agora o valor mais elevado de sempre. E “a exposição dos jovens ao álcool é hoje muito mais arriscada”
Quase 12 mil portugueses estão em tratamento por dependência do álcool, o número mais alto de sempre, segundo o relatório “A Situação do País em Matéria de Álcool”, divulgado na semana passada. Mas o verdadeiro número de alcoólicos é muito superior. Mais de 300 mil portugueses têm consumos de risco e o panorama pode vir a agravar-se, uma vez que os jovens têm hoje uma relação muito mais perigosa com o álcool do que tinham os seus pais, alerta Patrícia António, psicóloga da Unidade de Alcoologia de Lisboa. Em entrevista ao Expresso, a especialista avisa que o alcoólico não é necessariamente aquele que bebe todos os dias, mas aquele que quando começa não consegue parar. Mesmo que só beba ao fim de semana.
D.R.
O número de alcoólicos em tratamento é o mais elevado de sempre. O aumento reflete um agravamento do problema ou apenas uma maior acessibilidade dos serviços?
Penso que pode refletir ambas as coisas. De facto, a acessibilidade aumentou muito, uma vez que há mais técnicos a dar consultas nesta área. A integração do álcool nas equipas de tratamento das outras drogas criou uma oferta nacional que até então não existia e tem havido um trabalho junto dos médicos de família para se conseguir fazer uma deteção mais precoce. Por outro lado, é verdade que não houve uma diminuição dos consumos. Pelo contrário. Vemos, principalmente junto da população jovem, que o consumo não está a abrandar. E, mais cedo ou mais tarde, as pessoas acabam por ser encaminhadas para tratamento.
Além das pessoas com dependência, o relatório refere que cerca de 3% da população – aproximadamente 300 mil portugueses – tem um consumo de risco elevado ou nocivo. Em que é que isso se traduz?
É um padrão de consumo que é caracterizado por um abuso recorrente e regular de álcool. Há alguns sinais que já podem ser considerados críticos: por exemplo, as pessoas apresentarem níveis elevados de tolerância, o que significa que precisam de beber grandes quantidades para conseguir os mesmos efeitos; algumas pessoas já tiveram os chamados blackouts ou perdas de memória. No entanto, ainda não estão numa situação de dependência, uma vez que ainda há algum controlo nos consumos. Segundo os padrões da Organização Mundial de Saúde, beber em média quatro bebidas por dia no caso do homem e duas no caso da mulher já configura um consumo abusivo e de risco.
Há diferenças de género a este nível?
Sim. O organismo da mulher tem menos capacidade, do ponto de vista funcional, de fazer a eliminação da molécula do álcool. Por isso, menores quantidades de álcool produzem efeitos maiores nas mulheres. Elas estão em situação de maior risco e a evolução para a situação de dependência é mais rápida. Um homem pode estar cinco a dez anos num padrão de abuso recorrente, sem perder o controlo, enquanto uma mulher evolui para uma situação de dependência, em média, ao fim de quatro a seis anos.
Ainda associamos muito o alcoólico ao velho que bebe aguardente na taberna às 10h da manhã. É necessariamente assim?
Não. A dependência é um caminho evolutivo que pode chegar a uma situação terminal que são esses casos em que já há a chamada tolerância invertida, ou seja, a pessoa bebe um copo e desorganiza-se logo. Mas isso são situações terminais. Nos primeiros estádios da dependência não há sinais físicos. A pessoa até pode não ter ainda fígado gordo nem qualquer complicação física. O que há é uma compulsão para o consumo, perda de controlo e dependência psicológica, que se traduz, por exemplo, num planeamento dos consumos. A pessoa começa a organizar a sua vida em função de quando é que vai beber e começa a ficar muito ansiosa com o final de tarde ou com o fim de semana.
Mas uma pessoa que bebe apenas ao fim de semana pode estar já numa situação de dependência?
Sim, se se verificar a perda de controlo. Na consulta costumo dizer que a questão não é se a pessoa bebe ou não todos os dias. O que interessa é o que acontece quando bebe. Se quando bebe há perda de controlo, então a pessoa passou a fronteira do abuso ou do consumo nocivo para a dependência.
O que significa, na prática, a perda de controlo?
Há perda de controlo quando a pessoa não consegue parar assim que começa a beber. Não tem aqueles mecanismos internos do próprio organismo que a façam pensar para si mesma “já bebi de mais, vou parar, vou beber água ou vou apanhar ar um bocadinho de ar”. Há uma compulsão para beber. Mais uma, mais uma, mais uma... Já não há capacidade do ponto de vista cerebral para emitir estes sinais de alerta ao indivíduo, o que significa que os recetores para o álcool deixaram de funcionar. Por isso, a pessoa bebe quase até cair. Isso já configura uma situação de dependência. Na consulta, temos pessoas que raramente bebem, mas quando bebem perdem o controlo, começam zaragatas e muitas vezes acabam a noite na polícia, por exemplo.
NUNO BOTELHO
Quais são as principais diferenças entre a relação que os jovens hoje têm com o álcool e a que tinham os seus pais?
Houve uma importação do chamado ‘binge drinking’, um padrão de consumo característico dos países do Norte da Europa e que passa por beber num curto período de tempo mais de cinco a seis bebidas. É um padrão que já está muito disseminado nos jovens portugueses e que é muito preocupante, uma vez que atingem rapidamente grandes estados de intoxicação. O objetivo não é o prazer, o convívio, a conversa ou o divertimento, mas apenas ficar embriagado rapidamente. E os pais tendem a desvalorizar. Pensam “no meu tempo eu também bebi e não me aconteceu nada” ou “faz parte da adolescência experimentar”. O problema é que houve de facto uma alteração do padrão de consumo e a exposição dos jovens ao álcool é hoje muito mais arriscada. Até porque houve uma mudança do tipo de bebidas. Provavelmente, os pais bebiam sobretudo cerveja e ninguém consegue beber cinco ou seis cervejas num minuto. Mas os jovens bebem cinco ou seis shots nesse tempo. E isso muda tudo e aumenta substancialmente a gravidade e o risco.
Socialmente há uma perceção de risco em relação às drogas que não existe em relação ao álcool. Porquê?
Há de facto uma tradição de considerar o álcool como uma substância relativamente inofensiva, quando na realidade o álcool mata mais do que as outras drogas e há em Portugal muito mais alcoólicos do que toxicodependentes. Mas felizmente há alguns sinais positivos de mudança em relação a isso e o álcool começa a ficar na agenda.
Portugal é o 10º país da OCDE onde mais se bebe e é também um dos países europeus com maior consumo de tranquilizantes. O que é que isso diz da nossa cultura?
Há uma necessidade de anestesia e uma intolerância às emoções e à capacidade interna de as expressar e de as entender que é preocupante. Para muitas pessoas o álcool tem sobretudo a ver com o alívio do sofrimento interno, uma forma de deixar de pensar e deixar de sentir. Há razões de natureza depressiva e ansiosa que levam as pessoas a procurar essas formas de anestesia. E é essa sensação de alívio do sofrimento que acaba por colocar muitas pessoas na nota da dependência.
Fonte: http://expresso.sapo.pt/
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