OLHAR ECONÔMICO
A mídia, recentemente, comentou que países das Américas têm concluído, de maneira secreta, acordos internacionais sobre vários assuntos. Face a isso, convém relembrar o papel da publicidade, tanto no direito interno, quanto no internacional.
O princípio da publicidade, de reconhecido valor moral, social e jurídico, possui guarida em muitas constituições e Declarações de Direito, sendo característica inerente à própria ideia de liberdade, de direito e de ordem jurídica.
Os ideólogos da Revolução Francesa consideraram tal princípio como expressão mesma da liberdade e como elemento de segurança. Tal princípio espelhava a própria concepção de democracia que não tolerava o segredo por parte das autoridades públicas ou dos cidadãos no exercício de seus direitos. Alguns consideram a publicidade como princípio de direito natural, que tem sofrido certos eclipses no decorrer dos tempos.
Os atos jurídicos praticados por um indivíduo extrapolam sua esfera limitada, atingindo a própria coletividade. Esse fenômeno é denominado repercussão ou eficácia reflexa do negócio jurídico. Daí a importância da norma jurídica, que fixa os limites da licitude e permite o desenvolvimento da vida social. A norma deve ser do conhecimento público para que possa atingir sua finalidade. Os atos por ela permitidos sempre que se revestirem de importância reflexiva também devem sofrer o processo da publicidade. Tanto assim que, consoante Trabucchi, vem diminuindo a importância da forma do negócio jurídico, na mesma proporção em que aumenta o prestígio da publicidade, como seu elemento constitutivo[1].
Em sentido geral, a publicidade relaciona-se com a norma jurídica ou com a atividade do indivíduo, sendo sinônimo de divulgação. Dentro do sistema jurídico entretanto, há a publicidade organizada do sistema, garantindo a autenticidade, a segurança ou a própria validade do ato jurídico; ou servindo de elemento comprobatório de fatos jurígenos e de seus efeitos. Nesse caso a publicidade, feita por meio de Registros Públicos, consubstancia-se em verdadeiro serviço estatal.
A publicidade permeia os mais variados ramos jurídicos.
Corrado, estudando o papel da publicidade do Direito Privado, distinguiu o seu sentido jurídico e o econômico-social. Este procura a afirmação de dado indivíduo ou produto no ambiente social, indo ao encontro de interesses meramente econômicos ou de conteúdo ético-social. Aquele consiste no complexo de meios jurídicos estabelecidos pelo legislador com o intuito de tornar manifestas, situações jurídicas privadas no interesse geral de todos os cidadãos, que poderiam ficar prejudicados ou beneficiados pela constituição, modificação ou extinção de tais situações. A publicidade em sentido estrito e próprio poderia ser definida como o sistema de declaração tendente a assinalar as transformações das situações jurídicas privadas, no interesse genérico de todos os cidadãos[2]
No âmbito do Direito Constitucional, a publicação da lei, como último passo do processo formativo, é princípio pacificamente aceito. Embora a maior parte dos sistemas jurídicos reconheça à promulgação pelo poder competente, o dom de tornar a lei executória, a sua obrigatoriedade é condicionada pela publicação.
Nos últimos séculos, os tratados internacionais tem-se tornado fonte primacial do direito internacional público; bem como do direito uniforme. Na falta de uma autoridade para editar leis com vigência em vários ou muitos Estados; consegue-se esse desiderato por meio da conclusão de tratados multilaterais. Daí a importância da publicidade também no tocante aos tratados internacionais.
Publicidade dos tratados internacionais é a ação pela qual eles são tornados de conhecimento geral, são feitos notórios e patentes, isto é ultrapassam os limites dos Estados que o concluíram, ficando à disposição da comunidade internacional.
Dada a importância capital dos tratados no atual estágio evolutivo da comunidade internacional e como é evidente que, sem comunicação inexiste comunidade, depreende-se a importância da publicidade dos tratados internacionais.
A publicidade dos tratados engloba as publicações particulares que se fizeram no passado e ainda são feitas esporadicamente no presente (o que foi em muito facilitado pela internet); o sistema de registro e publicação instituído pela Sociedade das Nações e continuado pela Organização das Nações Unidas; o registro por outras organizações internacionais e a publicidade especial, mas que não deixa de ser publicidade, feita pelos depositários de tratados internacionais.
Entre os gregos, os tratados eram concluídos publicamente no Senado e na Assembleia Popular, não havendo tratados secretos. Suas cláusulas eram gravadas em bronze, mármore ou madeira e expostos em templos ou lugares públicos, como os de Minerva, de Delfos e no Areópago. Os romanos gravavam também seus tratados e os expunham, inicialmente, em templos como o de Castor e Polux. Mais tarde, estabeleceu-se o costume de depositá-los no templo Fides Populi Romani, no Capitólio, que chegou a abrigar cerca de três mil tábuas. Alguns tratados, contudo, não eram escritos, mas apenas jurados de viva voz.
Diverso, contudo, seria o panorama de fins da Idade Média ao início do estabelecimento dos Estados modernos, quando o segredo tomou conta das relações internacionais e, em consequência, os arquivos das nações passaram a ser impenetráveis.
Os constituintes pós-Revolução Francesa execravam os acordos secretos e, por proposta de Mirabeau, a Constituinte inseriu na Constituição de 1791, norma proibitiva de tal espécie de tratado. Entretanto, em 1795, por decreto, abriu-se ao Comité de Salvação Pública a possibilidade de concluir acordos secretos. Por decreto de 1809, o Imperador Napoleão, reservou-se o direito de autorizar a comunicação, no todo ou em parte, dos tratados internacionais. A Constituição de 1848 voltaria a exigir que a Assembleia Nacional aprovasse qualquer tratado internacional. Mas a Constituição francesa de 1852 recolocaria nas mãos do Executivo a conclusão de acordos, sem o controle do poder legislativo.
A maior parte das constituições liberais do século XIX possuía disposições que possibilitavam ao poder executivo a conclusão de acordos, destituídos de qualquer publicidade. Assim, era possível a existência de tratados secretos ou de cláusulas secretas a tratados patentes, inclusive nos tratados de aliança. Os historiadores são unânimes ao afirmar que a suspeita recíproca e a ausência de sinceridade, causas da diplomacia secreta, foram razões fundamentais da Primeira Grande Guerra. Os dois sistemas de aliança que se chocaram então, a Tríplice Aliança e a Entente Cordial, foram mantidas por longo tempo em segredo. O tratado secreto era o meio mais eficaz para a elaboração de alianças com intenções abjetas, de empresas coloniais as mais discutíveis e para as partilhas mais imorais.
Com a queda do governo imperial russo, o governo revolucionário denunciou todos os tratados secretos celebrados pela Rússia; tendo os bolcheviques, logo que tomaram o poder, em dezembro de 1917, tornado público o arquivo secreto do antigo regime, o que causou um grande escândalo, quando o mundo tomou conhecimento, por meio do Izvestia, doThe Guardian, The Herald etc.. Isso propiciou ao presidente dos Estados Unidos da América, Woodrow Wilson, lançar, no pós-guerra, as bases de uma nova ordem, que pressupunha diplomacia aberta. Inobstante não haja menções expressas a tratados secretos, as constituições atuais, no articulado que trata do processo de conclusão de tratados, limitam ou impossibilitam tal espécie de tratado.
O primeiro dos 14 pontos do presidente Wilson, sobre diplomacia aberta, foi consagrado no preâmbulo dos tratados de paz, que puseram fim à Primeira Guerra Mundial e figurou no artigo 18 do Pacto da Sociedade das Nações. Esse artigo, a fim de possibilitar o controle da opinião pública, previu pela primeira vez a necessidade da publicação de tratados. Somente depois do registro e da publicação pelo Secretariado da Sociedade das Nações, o tratado tornar-se-ia obrigatório. A Carta de São Francisco que criou a Organização das Nações Unidas, em seu artigo 102, manteve a obrigação de publicação e registro dos tratados pelo Secretariado da Organização, tendo sido mais brando com relação à pena pela ausência de publicação: o tratado não registrado não poderia ser invocado perante qualquer órgão das Nações Unidas. Outras organizações também estabeleceram sistemas próprios de registro de tratados concluídos por seus membros: Liga dos Estados Árabes, Organização de Aviação Civil Internacional, Agência Internacional de Energia Atômica e Organização Internacional do Trabalho.
Mais do que os efeitos jurídicos estritos de ambos os artigos, interessa, no momento, vê-los como o coroamento por parte da sociedade internacional do princípio de direito internacional, consagrador da necessidade de os tratados internacionais tornarem-se de conhecimento público.
Assim como a maioria dos países americanos, o Brasil agasalha em seu ordenamento interno o princípio da publicidade. Ademais sufragou tal princípio, também, na esfera internacional por ter ratificado, os tratados constitutivos da Sociedade das Nações, da ONU e de várias das organizações especializadas acima citadas; além da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, de 1969[3].
Muito provavelmente, os Estados que, recentemente, se utilizaram de acordos internacionais secretos, inobservaram além do princípio internacional de publicidade dos tratados, o seu próprio ordenamento interno. Esse descumprimento é tanto mais daninho pelos efeitos que podem derivar para eles próprios e para a sociedade internacional, como bem o demonstra o sucedido em passado não tão remoto!
[1] Trabucchi, Alberto, Istituzioni di Diritto Civile, Pádua, Cedam, 1956, p. 216.
[2] Corrado, Renato, La Pubblicità nel Diritto Privato, Turim, Libreria Scientifica G. Giappichelli, 1947, p. 43/46.
[3] Ver Rodas, João Grandino, Urge levar ao Judiciário a validade do acordo em forma simplificada, Revista Eletrônica ConJur, 31 de dezembro de 2015 (leia aqui); e Tratado internacional só é executório depois da promulgação, Revista Eletrônica Conjur, 24 de dezembro de 2015 (leia aqui).
João Grandino Rodas é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.
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