Recente decisão proferida pelo juiz de Direito Alberto Salomão, da 33ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, proibiu a venda, exposição e divulgação do livro Minha Luta — Mein Kampf — de autoria de Adolf Hitler. Tal decisão acolheu pedido do procurador-geral do Rio de Janeiro, Marfan Vieira e do promotor Alexandre Themístocles, motivada por queixa crime feita pelo advogado Ary Bergher.
A decisão em questão foi estribada nos preceitos constitucionais e na legislação infraconstitucional — Lei 77.716/89, com a redação dada pela Lei 9.549/97 —, assim como em precedente do Supremo Tribunal Federal, que, ao ensejo da apreciação do Habeas Corpus 82.424/RS, assim chamado Caso Ellwanger, relativizou de forma seminal a garantia de liberdade de expressão quando contraposta a manifestações que implicassem em ilicitude penal, mormente quando se trate esta de incitação ao racismo.
A ordem de busca e apreensão dos exemplares à venda foi expedida, cominando-se a multa de R$ 5 mil por exemplar vendido em descumprimento à lei, sem prejuízo das sanções de ordem coercitivas em caso de descumprimento da decisão.
Nas redes sociais e imprensa, iniciou-se imediato e candente debate acerca da legalidade, conveniência e justiça da ordem judicial em questão, contrapondo-se argumentos quase idênticos, mas que devem merecer atenção.
Contra o argumento que viola a questão de ordem legal, nenhum reparo cabe à decisão em questão, estribada no direito positivo brasileiro e no preceito maior da Constituição Federal que consagra, em seu artigo 4, inciso VIII, o compromisso de que a República encontra-se apoiada em principio de repúdio ao terrorismo e racismo.
Como garantir este repúdio senão com a aplicação da lei singular às violações do mesmo? Na hipótese de Mein Kampf, texto muito falado e pouco lido, as menções aos judeus e negros oscilam entre chamar aos primeiros devermes e aos segundos de animais, além das propostas e promessas pouco sutis de extermínio do que ali se sugere serem raças inferiores.
É sugerida, aqui, a liberação deste texto com edição crítica, como se fosse possível previamente conhecer estas críticas. Trata-se de notável contrassenso e incoerência, pois exigir da editora uma edição crítica contra a obra é, isto, sim, exercer censura. Contrario sensu, permitir a edição com opiniões favoráveis é violar a legislação pátria, a jurisprudência do STF e a Constituição Federal, promovendo a apologia de crime de racismo e da hegemonia racista assassina. De se notar que não se trata de questão em tese, já que Mein Kampf foi a pedra basilar doutrinária do nazismo, distribuída a todos os casais em seus matrimônios na Alemanha nazista, e de leitura obrigatória aos alemães.
Sugerem também ser a media inócua, em razão de ser o texto de fácil obtenção na internet.
É fato, assim como apologias de pedofilia, manuais de suicídio assistido e técnicas de montagem de bombas podem ser obtidos na rede mundial de computadores, este micro cosmos da humanidade.
Não por isso serão permitidos livros que ministrem aulas sobre pedofilia, enforcamentos, suicídios ou montagem de bombas caseiras.
O acesso clandestino é de responsabilidade de quem o pratica. As edições sem comentários que se encontram à venda de Mein Kampf têm em sua capa imagem em pose épica do monstro nazista, uniformizado, com olhar confiante para o futuro, em clara indução de possibilidades de “discussão crítica de seus pensamentos”, como disse alguém na rede.
Proibir sugestão de racismo e de extermínio em massa, afinal praticados pelo autor do livro, não é censura. É uma obrigação dos democratas e dos amantes da defesa da liberdade. Que as tais edições críticas permaneçam à disposição de seus pesquisadores nas bibliotecas e sites próprios, para que não se apague mesmo esta nefanda história.
A proibição de veiculação deste nefando texto é, portanto, legal, jurídica e imperiosa do ponto de vista moral, não se confundindo com cerceamento de liberdade de expressão, senão como profilaxia pontual da veiculação de ideias perversas que dizimaram a humanidade, em verdadeira crônica de morte anunciada.
Aos críticos da proibição não é demais lembrar o que aconteceu no Estado de Israel, que proibiu as obras do compositor Wagner por muitos anos: confrontados com o poderoso argumento de que Wagner já não mais existia quando Adolf Hitler subiu ao poder, explicou-se que suas imperiais obras eram executadas diuturnamente nos campos de extermínio em alto falantes, como pano de fundo da afirmativa da raça superior. E que estes sobreviventes de campos residentes em Israel teriam enorme sofrimento ao serem expostos novamente a esta que se tornara sinistra melodia.
Ouso dizer que aos judeus ofende e agride a venda e exposição de exemplares deste texto nas livrarias do generoso país que os acolheu, inclusive e especialmente quando não dispunham de refúgios outros.
Mein Kampf não é um livro: é um manual de extermínio em massa, de empáfia racista e excludente e propagador deste desvio. Pertencerá aos museus de horrores e emboloradas prateleiras virtuais ou não, nas quais deve ser confinado, quanto mais não seja por amor ao próximo.
Ary Bergher é advogado criminalista e conselheiro da OAB-RJ.
Flavio Zveiter é advogado e conselheiro federal da OAB.
Carlos Roberto Schlesinger é presidente da Associação dos Juristas Brasil-Israel.
Revista Consultor Jurídico, 23 de fevereiro de 2016, 11h48
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